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Luzia De Seta levou um susto quando viu o raio-x do seu pulmão. As marcas indicavam uma possível tuberculose (TB), doença infecciosa transmitida pela bactéria mycobacterium tuberculosis, conhecida como bacilo de Koch. Ela não tinha apresentado os sintomas mais comuns da doença, que são tosse, febre e grande perda de peso, apenas percebeu uma rouquidão. A assistente social de 62 anos trabalha diretamente com o encaminhamento de pessoas para cuidados médicos pelo SUS e sabia que deveria ser feita a investigação imediata com o teste de escarro.

Posteriormente, veio a confirmação do diagnóstico, com o agravante de ser a forma resistente à rifampicina — um dos principais medicamentos utilizados para o tratamento da enfermidade. A tuberculose resistente ocorre quando a bactéria causadora da doença se torna imune a um ou mais medicamentos utilizados no tratamento convencional.

Com esse diagnóstico, Luzia não poderia fazer o tratamento na Unidade Básica de Saúde (UBS), mas seria acompanhada por um centro especializado. A atenção primária à saúde é a principal responsável por diagnosticar e acompanhar pessoas com tuberculose durante todo o tratamento — que dura seis meses, em geral. Já com a resistência a um dos medicamentos, a assistente social foi encaminhada para o Centro de Referência Professor Hélio Fraga (CRPHF), vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).

Luiza relembra o acompanhamento que teve em todas as etapas pelo SUS. “O acolhimento foi emocionante porque, sendo eu servidora municipal, senti na pele a diferença que o SUS faz para um paciente em tratamento de uma doença ainda tão preocupante”, afirma.

Sua maior preocupação era por trabalhar diretamente com pessoas em situação de rua na Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro, além de fazer uso de medicamento imunossupressor por conta de uma doença autoimune, a artrite reumatoide — o que a colocava diretamente no grupo de risco. Esses foram os principais motivos para levar o tratamento à risca, além do fato de querer preservar seus familiares.

Livre da doença, Luzia persiste na defesa do SUS. “Dou meu depoimento, porque acho que o SUS precisa ser ainda mais valorizado e ter sempre investimento para melhorar cada vez mais”, diz. Assim como Luzia, a maioria dos pacientes recebe o tratamento e chega à cura, segundo dados do Ministério da Saúde (MS). Contudo, existe uma parcela da população para qual a doença chega a ser fatal.

“Considero inadmissível que ainda morram cerca de seis mil brasileiros por ano de tuberculose”, disse a pneumologista, professora, escritora e pesquisadora da Ensp/Fiocruz, Margareth Dalcolmo, em entrevista à Radis, em maio de 2008. Atualmente, 17 anos depois, de acordo com o “Boletim Epidemiológico — Tuberculose 2025”, do MS, ainda morrem seis mil pessoas por ano de TB no Brasil. 

Novamente em entrevista à Radis, Margareth retoma a fala de que o índice de morte é “totalmente inadmissível”, “considerando que estamos falando de uma doença benigna, tratável, com remédio de excelente qualidade, diagnosticável e curável em 100% dos casos”, afirma.

Doença negligenciada 

A tuberculose é uma doença endêmica no Brasil e problema de saúde pública há séculos. Entre 2013 e 2019, o coeficiente de mortalidade por TB manteve-se relativamente estável no país. No entanto, a partir de 2020, com a pandemia de covid-19, os números têm aumentado progressivamente, retornando para seis mil óbitos, com 2,8 mortes por 100 mil habitantes.

Em 2024, o Brasil notificou mais de 84 mil novas ocorrências, o que corresponde a uma incidência de 39,7 casos a 100 mil pessoas. O Rio de Janeiro é um dos estados com o índice mais preocupante, por conta do pequeno tamanho territorial enquanto é um dos mais populosos do país, além da grande concentração de pessoas em favelas [Leia mais aqui]. Com a incidência de 75,3 casos por 100 mil habitantes, o indicador estadual é quase duas vezes maior do que o nacional.

A região Norte do país também preocupa. Pará, Amazonas, Acre, Roraima e Amapá têm índices bem acima do nacional, com o Amazonas chegando a 94,7 casos por 100 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde. Esses mesmos estados (RJ e AM) também estão entre os maiores índices de mortes por TB.

Os dados demonstram que a condição ambiental afeta diretamente a incidência de transmissão da TB, por isso o Rio de Janeiro é considerado uma prioridade no enfrentamento à doença. A pneumologista Margareth Dalcolmo lembra que no estado existem cerca de duas milhões de pessoas vivendo em favelas, em que as casas em geral são pequenas e não possuem boa circulação de ar. “Em comunidades onde a vida é muito concentrada, a transmissão se dá de maneira quase que compulsória”, afirma. 

O perfil dos casos também revela desigualdades importantes: 68,2% das pessoas diagnosticadas são homens e 65,8% se declaram pretas ou pardas, segundo o Boletim Epidemiológico 2025. Os dados demonstram que a tuberculose está diretamente associada aos indicadores socioeconômicos, tanto em nível individual quanto coletivo. 

As populações em maior vulnerabilidade apresentam taxas significativas: em 2024, 8,1% dos casos ocorreram em pessoas privadas de liberdade, 3,6% em pessoas em situação de rua, 1% em indígenas e 0,6% em imigrantes. Esse percentual revela que, proporcionalmente, pessoas em situação de rua têm 54 vezes mais chances de contrair a doença; já a população privada de liberdade, 26 vezes. A coinfecção com HIV é outro fator preocupante — 11,4% dos casos de TB apresentam associação com o vírus, e entre essas pessoas, apenas 57,3% estavam em tratamento antirretroviral (TARV).

O infectologista e mestre em Saúde Pública pela Fiocruz, Bruno Ishigami, avalia que a incidência da tuberculose em populações vulnerabilizadas é um sistema que se retroalimenta. Ele comenta que os altos índices no sistema prisional acabam impulsionando os casos em comunidades e favelas, uma vez que a grande maioria das pessoas privadas de liberdade são pessoas da periferia e recebem visita de familiares. “[São] 10 mil pessoas circulando no final de semana no presídio e vão voltar para as suas casas”, aponta.

“Tento enxergar hoje o sistema prisional como um reservatório de doença infectocontagiosa. São pessoas que estão confinadas e não têm acesso a serviço de saúde de forma adequada. Isso dificulta a melhora dos índices de tuberculose como um todo”, declara. O infectologista avalia que o perfil da TB no Brasil é “triste” e “diz muito sobre a dificuldade de acesso”. No caso da população em situação de rua, ele aponta que existe chance de haver subnotificação. “É uma população que dificilmente tem uma rede de acesso à saúde para conseguir ser diagnosticada”, comenta.

Já Margareth Dalcolmo relembra que a TB é uma doença urbana, com transmissão de pessoa a pessoa e depende das condições de vida. “É uma doença da exclusão social, predominantemente. Não há dúvida”, observa.

O raio-x é o primeiro passo para o diagnóstico, que deve ser acompanhado pelo exame de escarro – Foto: Fernanda Andrade

Tratamento em menos tempo

Desde janeiro de 2025, o SUS adotou o tratamento para tuberculose em um curto intervalo de tempo, reduzindo drasticamente o tempo de 18 ou 24 para apenas seis meses, o que aumenta as chances de adesão e diminui as taxas de interrupção. Com a Nota Informativa Nº 1/2025 do Ministério da Saúde, foram atualizadas as recomendações do tratamento da tuberculose resistente, autorizando o uso do medicamento pretomanida. O antibiótico oral é inovador para o tratamento porque faz parte dos esquemas encurtados BPaL (bedaquilina, pretomanida e linezolida) e BPaLM (bedaquilina, pretomanida, linezolida e moxifloxacino).

Para Margareth Dalcolmo, esse foi um dos avanços recentes do Brasil. Ela relembra que o país foi pioneiro na adoção dos melhores tratamentos desde 1980, com os esquemas de curta duração. A pneumologista ressalta que a novidade reduz o sofrimento humano com a exclusão de medicamentos injetáveis.

A paciente Luzia De Seta foi a primeira a ter alta utilizando o tratamento BPaL para TB resistente no Centro de Referência Hélio Fraga, tendo começado o tratamento em janeiro. O tisiologista (especialista em TB) e chefe do ambulatório do Hélio Fraga, Jorge Luiz da Rocha, ressalta que a diminuição do tempo do tratamento é positiva tanto para o paciente quanto para a equipe. “É um tratamento de menor tempo de duração, eficaz, com pouco efeito colateral. A chance de cura é muito maior”, explica.

Avanços e entraves

Outro fator importante é a alta cobertura vacinal da BCG, tradicionalmente contra as formas graves e disseminadas da TB, além de outras doenças. “O Brasil vacina todo recém-nascido desde 1972, por força de uma portaria do Ministério da Saúde. Então, temos alta cobertura de vacina BCG”, pontua Margareth.

Em relação ao diagnóstico, de acordo com o Boletim Epidemiológico do MS, em 2024, 73,9% dos casos pulmonares foram confirmados por exames laboratoriais. Destaca-se o aumento de 60% no uso do teste rápido molecular (TRM-TB) entre 2021 e 2024, ampliando o acesso a diagnósticos mais precisos. Enquanto no campo da prevenção, o país registrou 11.804 tratamentos preventivos de tuberculose (TPT) em 2024.

Os avanços científicos se devem, na perspectiva da pneumologista, ao grande engajamento acadêmico na produção de conhecimento. No entanto, ela faz a crítica de que “a participação da sociedade civil ainda está longe do desejável”. “A sociedade civil brasileira precisa participar mais das lutas contra a tuberculose”, convoca. “O próprio Banco Mundial reconhece que a incidência de tuberculose é um indicador econômico de um país, exatamente pelo número de casos e pelo acesso aos melhores tratamentos”, explica. 

Para ela, a TB representa vários paradoxos do Brasil. “Nós temos programas muito bem controlados, temos acesso aos melhores tratamentos. O Brasil é um país que tradicionalmente vem participando dos ensaios clínicos que validaram, ao longo do tempo, as modificações implementadas nos tratamentos”. Contudo, os indicadores continuam subindo, relata a pesquisadora.

Dentre os pontos positivos, está a notificação compulsória, independentemente da consulta ter acontecido na rede pública ou privada de saúde. Todas as pessoas que testam positivo para tuberculose têm direito a receber toda a medicação de forma gratuita e são acompanhadas pela Estratégia Saúde da Família (ESF) durante os meses do tratamento. Os medicamentos e a assistência para a TB ocorrem somente pelo SUS.

No entanto, com todos esses avanços, por que o problema ainda é tão grande? Entre os principais motivos, Margareth aponta o diagnóstico tardio, quando o paciente já apresenta a forma grave da doença; e a extensão territorial do Brasil, pois nem todos os lugares têm referências de boa qualidade para o tratamento. A pneumologista ainda acrescenta que o fato de que a TB é uma doença transmitida de uma pessoa para outra. “Se você é uma pessoa doente de tuberculose e mora em condições inadequadas, convivendo diretamente com uma criança, ou um idoso, ou um cônjuge, você vai transmitir forçosamente a doença”, comenta.

O coordenador e pesquisador do Centro de Referência Hélio Fraga, doutor em Epidemiologia em Saúde Pública pela Fiocruz, Paulo Victor Viana, acrescenta que a cadeia de transmissão de pessoa a pessoa pode, ainda, aumentar os índices de TB resistente a medicamentos. Ele explica que a pessoa que tem tuberculose resistente e não está em tratamento também pode transmiti-la aos outros. “Essa pessoa adquire o bacilo resistente, ou seja, já é uma doença com resistência às drogas”, esclarece, acrescentando que são casos com manejo mais difícil. 

Atraso de 10 anos

A pandemia de covid-19 causou um grande impacto no acesso a tratamento e diagnóstico de tuberculose no Brasil. O Boletim Epidemiológico sobre a TB de 2025 aponta que no período pós-pandemia, entre 2020 e 2024, houve um aumento de 21% no número de casos novos, além de crescimento de 3% nas mortes entre 2022 e 2023.

Margareth ressalta que as mortes aumentaram muito com a pandemia, retornando a índices superados. Até 2019, o país estava declinando cerca de 2% ao ano, segundo a pesquisadora, longe dos desejáveis 15% para eliminar a doença, mas ainda em queda. Agora, os números continuam crescendo. “Com a pandemia de covid-19, o retrocesso ocorrido foi enorme, porque atrasou o controle da tuberculose no mundo inteiro em cerca de 10 anos”, afirma. 

Em relação ao Brasil, a pesquisadora aponta que o impacto no país foi enorme porque serviços deixaram de funcionar, pessoas que ficaram doentes de TB não tiveram acesso aos tratamentos, muitas das que estavam em acompanhamento abandonaram, aqueles que tinham necessidade de um cuidado especial deixaram de ter, entre outras situações.

Paulo Victor aponta que, para além do crescimento dos índices, no pós-pandemia os pacientes também têm relatado muito sofrimento psíquico. “Por conta de todo o estresse que foi o período pandêmico, quando a pessoa recebe um diagnóstico de tuberculose, isso traz um impacto na vida”, analisa. Por causa dos estigmas em torno da doença, muitas pessoas acabam sendo rejeitadas pelo seu círculo social por medo da infecção — “principalmente quando se trata de tuberculose resistente”, pontua. 

Como alerta, Margareth afirma que “tosse não é normal” e que a principal forma de combate à doença é a detecção precoce e o encaminhamento correto para o tratamento. A pneumologista afirma que quando se tem tosse por mais de duas semanas, já é necessário buscar atendimento.

Ela ressalta que os sintomas não são valorizados: muitas pessoas consideram tosse e, eventualmente, febre como coisas “comuns”. Com isso, nem sempre o diagnóstico é realizado da maneira mais rápida possível. Outro desafio é a falta de saneamento básico, um grave problema no Brasil, principalmente em populações mais vulnerabilizadas. Margareth afirma que isso impossibilita que essas pessoas tenham uma condição de autocuidado adequada.

“É preciso que as ações nesses locais sejam muito bem cuidadas, que a participação das representações de Clínica da Família, da atenção primária, sejam muito estimuladas e que haja investimento nessas pessoas, porque o agente de saúde é a pessoa mais crucial para a detecção precoce e oportuna da doença e o encaminhamento correto dessas pessoas para tratamento”, elucida Margareth.

Fatores de risco

  • Imunossuprimidos: pessoas vivendo com HIV/aids ou que fazem uso de terapias imunossupressoras com uma menor capacidade de combater a infecção
  • Populações vulneráveis socialmente: pessoas em situação de rua, privados de liberdade, indígenas, migrantes, moradores de favelas/habitações precárias
  • Crianças até 5 anos e idosos: crianças pequenas têm imunidade menos desenvolvida, enquanto pessoas com a idade avançada têm um enfraquecimento do sistema imunológico 
  • Contato próximo com casos ativos: profissionais da saúde, pessoas que trabalham com população em situação de rua ou privada de liberdade

* A Organização Mundial da Saúde (OMS) também inclui entre os fatores de risco tabagismo, diabetes, desnutrição, uso de álcool/substâncias e condições socioeconômicas.

Fontes: Ministério da Saúde e OMS

O Centro de Referência Professor Hélio Fraga (CRPHF/Ensp) éespecializado no tratamento da tuberculose, incluindo a forma resistente. — Foto: Fernanda Andrade.
O Centro de Referência Professor Hélio Fraga (CRPHF/Ensp) é especializado no tratamento da tuberculose, incluindo a forma resistente — Foto: Fernanda Andrade

Quando a pessoa deve procurar atendimento médico?

Se apresentar os sintomas:

  • Tosse persistente (a partir de 3 semanas)
  • Febre vespertina
  • Cansaço
  • Perda de peso e apetite
  • Sudorese noturna

Fonte: Ministério da Saúde

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