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Adesigualdade de gênero afeta o mundo das mulheres desde cedo. E impede muitas delas de se tornarem cientistas. Para celebrar o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência (11/2), a Fiocruz, que comemora a data desde 2019, preparou uma programação online durante os dias 10, 11 e 12 de fevereiro relacionada à temática de gênero e ciência. Em três dias de debates, a instituição, que tem mulheres como maioria entre os seus trabalhadores, lembrou da importância da equidade na ciência.

Instituída em 2015 pela Assembleia das Nações Unidas, a data lembra que a desigualdade entre homens e mulheres deixa sua marca no universo científico: de todos os cientistas do mundo, apenas um terço são mulheres, embora elas representem cerca de metade da população mundial. Durante a mesa virtual “Mulheres e Meninas na Ciência”, Cristina Araripe, coordenadora de Divulgação Científica da Vice-presidência de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz (Vpeic/Fiocruz), citou dados importantes para entender a desigualdade de gênero na ciência. Entre eles, um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2018 que mostra que um terço das meninas não tem acesso à educação de qualidade, que mulheres representam 33,3% da força de trabalho na pesquisa científica no mundo, mas que somente 12% das mulheres cientistas participam das academias nacionais. Ela acrescenta que na área da inteligência artificial, considerada de prestígio hoje, apenas 22% dos pesquisadores são mulheres.

“Fato é que em pleno 2021, depois de mais de um século de lutas por direito, que começou lá atrás com o voto feminino, pelo direito de ter acesso à educação, depois de tantas lutas tão importantes nós ainda precisamos buscar inspirações para continuarmos lutando”, defende a também coordenadora do projeto Mulheres e Meninas na Ciência. Cristina também recordou a luta iniciada por Bertha Lutz (1894-1976), que organizou e mobilizou outras mulheres para que houvesse mudanças no comportamento em relação ao papel das mulheres na sociedade. “Mulheres sofrem preconceitos, sim. Ouvimos piadas machistas, convivemos com a misoginia [desprezo às mulheres]. É uma pena, mas isso acontece. E não vamos esquecer que as meninas ainda são impedidas de ter pleno acesso às oportunidades de estudo e carreiras científicas”, enfatizou.

A vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiane Vieira Machado, lembrou do sentido do dia, explicando que a data sobretudo chama atenção para o fato de que desigualdades de gênero que se expressam em diversas sociedades, inclusive no Brasil, “também se manifestam de forma contundente na ciência”. “Repercutem na possibilidade de inserção das meninas na ciência, na trajetória das mulheres cientistas, nas possibilidades que elas têm de ascensão profissional de diversas formas”.

As pioneiras da Fiocruz

Se em 2021, ainda é preciso lutar pela maior equidade de gênero na ciência e para que não ocorram retrocessos na participação das mulheres, há mais de 50 anos, pioneiras abriram caminho dentro da Fiocruz. No dia 11 de fevereiro, em meio às comemorações do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, foi lançado o documentário “Mulheres na Fiocruz: Pioneiras”, de Cristiana Grumbach. Em 15 minutos, a obra relembra a história das primeiras gerações de mulheres cientistas que chegaram à instituição.

O documentário ressalta que, durante os anos 1950, as brasileiras, principalmente das classes médias urbanas, ingressaram no mercado de trabalho. Elas formaram as primeiras gerações de mulheres a terem acesso ao ensino secundário e às universidades. Entre as profissionais que surgiram nesse movimento, apareceram também cientistas. Em 1950, comemorou-se o aniversário de meio século do Instituto Oswaldo Cruz e, “nesse ambiente de otimismo e renovação institucional”, ampliaram-se as oportunidades para a entrada de mulheres, jovens que eram formadas em cursos de Medicina, Química, Farmácia e História Natural, como destaca o documentário.

As trajetórias das zoólogas Dyrce Lacombe, Anna Kohn, Luiza Krau e Delir Corrêa Gomes; da química Ottilia Mitidieri e da bióloga Monika Barth são contadas por elas mesmas. Desde a infância, passando pela entrada no mundo científico e no Instituto Oswaldo Cruz até o desenvolvimento de suas carreiras, seus depoimentos ilustrados por acervos pessoais e históricos.

“Escolheu a profissão do futuro”. Foi o que Ottilia Mitidieri ouviu de seu pai, quando ela disse que iria estudar química. Estudou no Instituto Lafayette e depois fez vestibular para a Escola de Química. “Entrei em 1953, fazendo um curso, em 54 outro curso. Isso aqui representava a ciência; representava os sábios, os mestres. O meu coração batia, eu fiquei deslumbrada”, conta. “Não era nem nervoso. Era emoção”, completa. Se o fato de casar atrapalhou a sua vida, Ottilia diz que foi a melhor coisa que fez. “Tenho três filhos maravilhosos, a família da gente é fantástica. Mas acho que se não tivesse me casado, teria me dedicado só ao trabalho. E eu fiquei dividida”, relata.

Dyrce Lacombe nasceu no Rio, em uma família muito pobre. Foi o professor Newton Santos que começou a lhe dar apoio com livros e cadernos, e a partir daí ela conseguiu acesso ao laboratório. Ela começou no Museu Nacional, vendo libélulas — e “uma coisa e outra”. Foi também esse professor que deu apoio em suas pesquisas e trabalhos, para que ela entrasse no Instituto Oswaldo Cruz. Sempre trabalhou com o histologista Rudolf Barth e começou a atuar também em histologia. Em seu depoimento, ela conta ter muito amor por aquilo que faz e que, em toda a sua vida, dedicou-se demais aos estudos. “Era uma CDF, eu ficava a noite inteira estudando, só gostava de estudar. Hoje em dia vejo a minha neta, ela é igualzinha a mim”, diz.

Essas são apenas duas das seis histórias de mulheres pioneiras apresentadas no documentário. Para conhecer mais a trajetória delas, “Mulheres da Fiocruz: Pioneiras” está disponível no canal da Fiocruz no Youtube. Acesse https://bit.ly/3kfOteL.

Os efeitos de gênero na pandemia

Durante a mesa virtual “Mulheres e Meninas na Ciência”, a jornalista do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict) e da coordenação colegiada do Comitê Pró-equidade de Gênero e Raça da Fiocruz, Marina Maria, lembrou de uma série de estudos que mostram como o cotidiano das mulheres foi devastado com a pandemia, com carreiras e produtividade comprometidas. Ela também mencionou dados de pesquisas do movimento “Parent In Science”, que mostram como a trajetória e a produtividade de mulheres cientistas negras foi impactada pela covid-19, revelando toda a desigualdade que já se conhece e que se expressa no contexto da produção científica. “Para além da sobrecarga e exaustão que a gente tem falado que impacta o dia a dia das mulheres, tentando conciliar trabalho remoto e atividades de cuidado, sejam com filhos e familiares, a gente tem essa desigualdade nas tarefas domésticas que acaba afetando ainda mais o nosso nível de cansaço e saúde mental”, explica.

O estudo “Produtividade Acadêmica Durante a Pandemia: Efeitos de gênero, raça e parentalidade” foi realizado pelo Movimento “Parent in Science”, durante os meses de abril e maio de 2020. Os questionários foram respondidos por quase 15 mil cientistas, entre discentes de pós-graduação, pós-doutorandas e pós-doutorandos, docentes e pesquisadores. A partir dos dados, o movimento fez um panorama dos impactos da pandemia na ciência nacional.

Entre os 9.970 alunos de mestrado e doutorado de instituições de ensino superior (IES) do Brasil, 27% das mulheres conseguiam trabalhar remotamente. Quando analisado gênero e parentalidade, 11% eram mulheres com filhos, número que saltou para 34,1% quando se tratava de mulheres sem filhos. Além disso, a pandemia impactava o progresso da dissertação ou tese de 83,4% das mulheres contra 77,5% dos homens.

No caso de alunos de pós-doutorado, entre aqueles que submeteram artigos científicos como planejado, as mulheres representavam 41,5%, enquanto os homens, 65%. As mulheres com filhos marcavam apenas 34%, contra 49,2% das mulheres que não eram mães. Entre os homens que submeteram artigos como planejado, 58,4% tinham filhos, enquanto 67,6% não tinham. Ao todo, 619 pós-doutorandos brasileiros responderam à pesquisa.

A pesquisa do “Parent in Science” também avaliou recortes de raça. Nas análises dos pós-doutorandos negros que submeteram artigos científicos como o planejado e os efeitos de raça, mulheres negras representavam 31,1%, enquanto as brancas, 38%. Entre os homens, homens negros marcavam 61%, enquanto os homens marcavam 54,2%. Quando são avaliados os alunos de pós-graduação que conseguiram trabalhar remotamente, as mulheres negras eram 25,7%, enquanto as brancas 27,8%. A diferença aumenta quando comparadas aos homens brancos. Eles pontuaram 38,7%, enquanto os homens negros, 32,4%.

Um dos eventos das comemorações do Dia Internacional das Mulheres e Meninas lembrou da importância das questões raciais no debate sobre a participação das mulheres na ciência. A live “O que você quer ser quando crescer?” convidou as meninas negras para falarem a partir de sua perspectiva e sobre a igualdade de gênero e raça na ciência. Elas fazem parte do “Meninas Negras na Ciência”, projeto do Museu da Vida da Fiocruz e que tem a intenção de trabalhar a divulgação científica como estratégia de promoção da cidadania e da saúde, voltada para meninas negras estudantes do ensino médio e principalmente de periferias das Zonas Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Para conhecer mais sobre o projeto, acesse as páginas no Facebook e no Instagram (@meninasnegrasnaciencia).

Lideranças de hoje

Durante a mesa virtual “Mulheres no enfrentamento da pandemia da Covid-19 na Fiocruz”, Cristiane explicou que a data foi instituída pela ONU como uma forma de lembrar que as marcantes desigualdades de gênero presentes em várias sociedades ainda se expressam também de forma relevante no campo científico. “Assim, é muito importante que nós tenhamos políticas públicas e estratégias institucionais de valorização das mulheres cientistas e de inclusão das meninas na ciência”, destacou. Foi também nessa mesa, que mulheres contaram suas experiências de liderança à frente da pandemia. Entre elas, estavam Marilda Siqueira, Valdiléia Veloso e Rosane Kuber.

Marilda Siqueira, coordenadora do Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), iniciou seu trabalho contra o coronavírus antes mesmo dele chegar ao Brasil. “Quando a OMS anunciou que tinha um surto de pneumonia não característico, com várias mortes ocorrendo na China, aquilo ligou o nosso sinal de alerta”, lembrou. Dali para frente, seu laboratório se preparou para conseguir identificar qualquer coronavírus, para depois partir para o coronavírus específico; organizou um treinamento para nove países latino-americanos; também foram convidados para ir à Goiânia auxiliar o Laboratório Estadual de Saúde Pública (Lacen) de Goiás nos diagnósticos dos repatriados da China, ainda em fevereiro de 2020. Fez, também, o treinamento de todos os Lacen’s do Brasil e, em março, a unidade que coordena foi escolhida para fazer parte da rede de laboratórios de referência da OMS e participar da criação junto com a vice-presidência de pesquisa da instituição de uma rede genômica.

À frente do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI), da Fiocruz, de referência nacional, está Valdiléia Veloso. Quando a chegada do coronavírus ao Brasil ainda era apenas uma expectativa, seu instituto começou a se preparar. Antes do primeiro caso, a área de isolamento no centro hospitalar e os equipamentos já estavam preparados, intensificando também o treinamento de pessoal. No início da pandemia, começaram a receber pacientes que, em pouco tempo, extrapolaram o número de quartos de UTI e o número de respiradores disponíveis no INI para atender esses casos, sendo necessário pedir respiradores emprestados. Surgiu, então, a possibilidade de construir um centro hospitalar dedicado à covid-19, por iniciativa da Presidência da Fundação.

“Vocês devem imaginar o que foi isso em um momento em que o mundo inteiro estava em busca de respiradores e equipamentos de proteção individual (EPI) para os profissionais de saúde e a gente precisando comprar tudo”, lembra. Em um esforço do INI, junto à equipe da Presidência e com a ajuda da Fundação de Apoio à Fiocruz (Fiotec), o centro hospitalar da Fiocruz foi construído em sete semanas e iniciou a internação dos primeiros pacientes. Viriam, ainda, pesquisas e ensaios clínicos, estudos de vacinas e de outros medicamentos.

Já Rosane Kuber está à frente da vice-direção de qualidade do Instituto de Tecnologia e Produção em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos). O instituto começou sua participação na pandemia com o suprimento de kits para diagnósticos. Após o desenvolvimento do insumo, em 12 de março, Rosane estava na Anvisa discutindo pela primeira vez o registro desse kit. Atuaram também no suporte dos Lacen’s, com a instalação de unidade apoio aos diagnósticos; registraram testes de diagnóstico para a doença, no Solidarity [estudo sobre a eficácia de medicamentos no tratamento da covid-19]; organizaram um grupo de prospecção relacionado às vacinas e iniciaram os preparativos da área fabril para a produção do imunizante no país, entre tantas ações que foram e ainda são desenvolvidas até hoje. Rosane também foi uma das pessoas escolhidas para ir à China para participar da inspeção na fábrica que estava entregando o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) a Bio-Manguinhos e entender o processo de produção. Agora, ela conta que o objetivo é a produção do IFA nacional, até dezembro. “E é importante frisar que muitas das nossas gestoras, das pessoas que estão à frente desse trabalho aqui são mulheres, muito dedicadas, e todo mundo com muita garra para que a gente consiga alcançar esse nosso objetivo”.

A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, ressaltou que é um momento de pensar nas conquistas e reivindicações, mas também de falar sobre obstáculos e dificuldades, porque assim se tem um caminho mais consistente em prol da equidade. Ela lembrou que as mulheres são historicamente marcadas por essas desigualdades de diferentes formas nas sociedades. A luta histórica, segundo ela, teve avanços nos últimos tempos, com muita dificuldade, mas vive um período de retrocessos.

Nísia também ressaltou que, embora se observe hoje uma maior participação das mulheres no campo científico no Brasil, inclusive nos grupos de pesquisa, sabe-se que isso é aquém do que é desejável e do que é possível. Ela refletiu sobre a própria Fiocruz que, a despeito da projeção na liderança de grupos de pesquisa, tem apenas um terço de mulheres entre os cargos de direção mais elevados da instituição. “Também tem que ser uma política institucional criar condições, estimular e valorizar que mais mulheres estejam nas posições de direção”, ressaltou.

* Estágio Supervisionado
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