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Quem nunca ouviu que chá de quebra-pedra auxilia no tratamento de cálculo renal? Ou que a pomada de arnica é “tiro e queda” para contusões como as do futebol de fim de semana? Ou ainda tenha recorrido à horta no quintal daquela vizinha para colher umas folhinhas de boldo, em dias em que o estômago e o fígado pedem ajuda na digestão? Esses e centenas de outros saberes populares e tradicionais remontam a gerações passadas e são utilizados como práticas terapêuticas.

Trata-se do uso das chamadas plantas medicinais: folhas, talos, raízes, cascas, sementes e frutos cujos componentes têm poder de alívio de sintomas, cura e prevenção de doenças. Esses vegetais podem ser consumidos em sua forma natural ou após passarem por algum processo de preparação e produção, quando se tornam medicamentos fitoterápicos.

Embora a prática seja fundamentada em conhecimentos ancestrais, registros indicam que só na década de 1980 ela começou a ser aplicada nos serviços de saúde pelo Brasil afora. E apenas no século 21, em 2006, ganhou uma política institucional: a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF). Ainda assim, a publicação tem limitações e reflete disputas a serem enfrentadas.

A constatação é do sanitarista Pedro Carlessi, que estudou o tema em sua tese de doutorado, pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (PPGSC/FMUSP), defendida em 2023. De acordo com sua pesquisa, em um país tão diverso como o Brasil,  a homogeneização de condutas que vem junto com a normatização pode significar o apagamento e o silenciamento de algumas práticas.

São principalmente essas lacunas que Pedro aborda em sua tese — indicada pela USP para o Prêmio de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), na categoria Saúde Pública — e no livro decorrente dela, em vias de ser lançado. Ambas as publicações receberam o mesmo nome: A institucionalização da fitoterapia pública brasileira. Sobre suas descobertas e impressões, o autor revela um distanciamento entre aquilo que se tem e sua origem: “Hoje temos no SUS, por exemplo, os ‘produtos tradicionais fitoterápicos’, que por mais estranho que pareça, não guardam relação com os direitos relativos a povos ou comunidades tradicionais”, explica.

“Acompanhar essa política e olhar para a fitoterapia pública no Brasil é uma forma de compreender como essa relação — entre universalização da saúde e a diversidade dos cuidados —, muito presente nos debates do SUS, é também acompanhada por mecanismos de marginalização, exclusão e deslizamentos categóricos”, afirma. Segundo ele, os movimentos sociais por vezes estão falando uma coisa, mas quando vira política pública, não se sentem contemplados por aquela categoria.

Pedro, que atualmente é pesquisador do Núcleo de Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), esclarece que seu estudo não teve como foco a política de institucionalização em si. “A minha ideia foi acompanhar esse tema a partir do conceito de tradição ou tradicionalidade. Trabalhei mais próximo da antropologia, interessado em ver como as ideias de tradição ou de tradicionalismos, identidade e de cultura, no sentido amplo, foram mobilizadas para se tornarem um discurso terapêutico”, explica.

Além da tese de doutoramento e do livro, com publicação prevista para dezembro de 2024, pela editora Hucitec, a pesquisa de Pedro resultou ainda em uma coleção que reúne itens vindos de Norte a Sul do país, doados por trabalhadores da saúde pública que atuaram desde os anos 80 nessa prática, e que será disponibilizada à população como um grande acervo museológico da fitoterapia pública brasileira, sob curadoria do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP. “Uma iniciativa inédita na preservação da memória e salvaguarda do patrimônio cultural do SUS”, diz. A previsão é que o material esteja todo reunido e catalogado para consultas até o início de 2025.

Um acervo do povo e para o povo

Ao longo da pesquisa, Pedro conversou com servidores municipais de cidades pequenas, espalhadas pelo país, que tinham em seus planos de governo a pauta das plantas medicinais e desenvolviam esse trabalho há anos, bem antes da política nacional. “Ele [o gestor municipal] tinha lá uma comunidade pastoral ou uma comunidade quilombola e começou a ter contato com a ‘fitoterapia’ não institucionalizada, vamos dizer assim”, explica.

Foi a partir dessas vivências que as prefeituras criaram seus programas e propostas: “O Brasil está cheio de experiências desse tipo, ou seja, tinha o governo federal dando uma recomendação muito farmacológica, mas havia gente ali fazendo coisas diferentes”. Foram nessas interações que o pesquisador começou a ter acesso ao material que agora será reunido em acervo para consulta pública e preservação dessa memória.

“Quando comecei a entrevistar essas pessoas, que hoje basicamente estão se aposentando, elas compartilharam comigo um monte de fotografias, matérias de jornais, documentos que estavam guardados em casa e disso surgiu um interesse de registro e salvaguarda dessa memória, que a gente está chamando: Acervo Museológico da Fitoterapia Pública Brasileira”, resume.

O sanitarista diz ter percebido uma predominância da narrativa do Estado em estudos sobre as plantas medicinais e fitoterápicos. Notava a voz do Ministério da Saúde, do Departamento de Assistência Farmacêutica, mas também sentia a ausência das demais pessoas envolvidas. “A ideia desse acervo é documentar essas histórias ‘menores’ que ficaram marginalizadas e esquecidas, de gente que trabalhou a vida inteira nesse tema e não viu os seus programas sendo reconhecidos”, relata.

“Tem muita história nisso [no acervo], é um pouco a história de vida e memória das pessoas e das instituições. São secretarias municipais, planos de governos estaduais”. Para a guarda do acervo, a escolha pelo Museu Histórico da FMUSP foi natural: “Ele já tem uma metodologia de salvaguarda da memória das instituições de saúde no Brasil bem elaborada e é uma metodologia bastante cuidadosa quanto ao acesso à informação”, detalha Pedro.

Já a consulta ao material ocorrerá da seguinte forma: o acervo físico ficará no museu. São documentos textuais, fotografias, filmes em VHS, documentos visuais, dentre outros itens. Essa relação será disponibilizada em um catálogo virtual, no site do próprio museu, e a partir dele os interessados poderão consultar o acervo e agendar uma visita para ver o documento físico ou enviar um e-mail solicitando uma cópia do item selecionado.

Coleção coletiva e contínua

A proposta de composição desse acervo é ser o mais participativo e democrático possível: as doações devem continuar à medida que outras pessoas, que também tenham materiais de memória conheçam a iniciativa. Para isso, a orientação é que o próprio museu seja contactado a partir da liberação do acervo. “Muita gente tem me procurado para fazer doações porque são documentos que estão nas casas das pessoas e elas reconhecem o valor histórico nisso, mas como acervo privado tem pouca possibilidade”, afirma.

Pedro ressalta que o protagonismo não é seu, embora tenha articulado a iniciativa e esteja à frente da coordenação desse trabalho. “Essa história é deles, ela já estava acontecendo, eu só estou intermediando”, diz, antes de emendar: “A história desses sujeitos, assim como a memória mantida em forma de fotografias, recortes de jornal, filmes e documentos amarelados pelo tempo, mostram como a biografia dessas pessoas é fortemente implicada com a consolidação do SUS e especialmente com a diversificação das modalidades terapêuticas no Brasil”, reflete.

O sanitarista conta ainda que a recepção foi a melhor possível ao consultar suas fontes de pesquisa. “Muita gente está se aposentando, reformando a casa, vê lá aquela caixa cheia de memória e é importante porque não são memórias privadas, elas contam a história do SUS”, narra, sem fechar a porta para que o acervo institucional dessa memória também se una à coleção. E lança o convite:

“Nossa ideia agora é contar com a parceria do Ministério da Saúde para incorporar o acervo deles também. Eles têm um material muito vasto, que é de interesse historiográfico, para trabalharmos todos juntos”, frisa. Dessa forma, além de preservar a memória, o acervo museológico da fitoterapia pode servir também como inspiração e novas possibilidades de uso das plantas medicinais na saúde pública brasileira.

Vazios deixados pela PNPMF

Pedro aponta que um dos problemas que ele identifica na Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) é sua limitação em relação à incorporação dos saberes populares e tradicionais nas práticas de saúde. “Para se chegar até a política há disputas sobre o que é ou não legítimo perante o Estado. Ou melhor, quem é legítimo ou não para curar a partir de plantas, de utilizar plantas como recurso terapêutico, perante o Estado”. Para o sanitarista essa construção é parte da identidade nacional, dentro de uma memória segregacionista. 

“É pensar nessas práticas como práticas de saberes marginalizados, de corpos marginalizados, de identidades que precisaram se tornar outra para poder ser cidadã. E esse tema, dos fitoterápicos e plantas medicinais, recupera muito esse tipo de discussão, sobre que tipo de Brasil o Brasil institucional deu conta de fazer”, analisa, afirmando que com as políticas públicas chegam também os regramentos sanitários, os acordos internacionais e as pautas comerciais.

Ele acredita, porém, que a coleção reunida vai na contramão dessa tendência: “Esse é um aspecto interessante desse acervo, de mostrar como no Brasil, quando a gente está olhando lá para os municípios, sobretudo para os pequenos, de baixa densidade populacional, rurais, em regiões eventualmente isoladas, tem uma criatividade para criar soluções originais baseadas em experiências concretas”.

E entende que uma formalização que agregue políticas públicas e instituições e acolha a sociobiodiversidade é um passo que deve ser dado, mas com ressalvas: “Sem homogeneizar tudo. Sem ter modelo restritivo. A sociobiodiversidade da Amazônia não é a mesma do Cerrado. Quando você vai para os Pampas, no Sul, é totalmente diferente. São outras pessoas, outras plantas, outra forma de sociabilizar”, alerta.

O pesquisador avalia, portanto, que a expressão dessa diversidade na PNPMF deve ampliar as práticas de cidadania. Como? “A gente deve pensar em como a sociobiodiversidade pode ser indutora de novos direitos. Que tipo de direito estou falando? Direitos culturais, em que as pessoas se veem representadas e têm participação nas esferas decisórias, ou mesmo naquela unidade de saúde do seu bairro, ou ainda direitos de propriedade intelectual, ou relacionados à possibilidade de manutenção ecossistêmica, direitos ambientais”, elenca.

Para Pedro, com o devido planejamento e incorporação na PNPMF, deve haver espaço para todos os atores sociais que atuam no tema: “Penso que há espaço para participação de todos, vale indústria, vale povos tradicionais, vale agricultor familiar. Tudo numa democracia vale. Desde que a gente esteja avançando nessa perspectiva de direitos, nessa ideia de democracia continuada. A proposta da universalização e da equidade, que está no SUS, é um processo contínuo”.

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Leia também no site: O dilema da industrialização na fitoterapia brasileira

O desafio das Farmácias Vivas no SUS

Para o pesquisador Pedro Carlessi, que também é farmacêutico, a Farmácia Viva é um exemplo de institucionalização dessa prática do manejo das plantas para fins curativos em uma escala ampliada. “Hoje, ela é um programa que integra essa política nacional”. Ele explica que qualquer município brasileiro hoje pode ter sua farmácia viva, mas adverte — não é barato. “A Farmácia Viva surgiu dentro de um contexto muito específico de desabastecimento e ineficiência do Estado, no Semiárido cearense, nas décadas de 1970 e 80. O Brasil se transformou. E as farmácias vivas também se transformaram. Então, o desafio é justamente essa transposição de escala”.

Idealizado pelo professor José Francisco de Abreu Matos, um farmacêutico cearense, que em 2024 completaria 100 anos, o projeto das farmácias vivas tem hoje como maior desafio se manter financeiramente. Trata-se de um projeto caro, mas que segundo Pedro vale o investimento: “Ter fitoterápicos no SUS não significa tornar a saúde mais barata, pelo contrário, é caro produzir fitoterápico. Só que a qualidade disso que você oferece para a população é, de fato, um diferencial”, constata.

Atualmente existem mais de 80 farmácias vivas institucionalizadas pelo SUS. E o desejo é que haja muito mais: “Não tenho nenhuma dúvida que esse é um dos temas mais vivos que há, sobretudo na atenção primária. Os gestores municipais querem muito implementar, só que o tema é espinhoso”, adverte com a bagagem de quem se debruçou muito sobre o assunto e enxerga com clareza suas contradições, gargalos e potências.

10ª Conferência Nacional de Saúde e Práticas Integrativas Complementares

A Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos foi criada dez anos após a recomendação de adoção da prática no âmbito do Sistema Único de Saúde, na 10ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1996, como demonstra o texto do próprio documento: “A 10ª CNS recomendou a incorporação, no SUS, das práticas de saúde como fitoterapia, acupuntura e homeopatia, contemplando as terapias alternativas e práticas populares. Recomendou, também, que o gestor federal da Saúde incentivasse a fitoterapia na assistência farmacêutica pública, com ampla participação popular para a elaboração das normas para sua utilização”, afirma a publicação.

O dilema da industrialização na fitoterapia brasileira

Outra abordagem tecida pelo doutor em Saúde Coletiva pela USP e pesquisador do Cebrap, Pedro Carlessi, é a relação entre a industrialização do país e a produção de medicamentos fitoterápicos. A seu ver, a primarização da economia brasileira, intensificada nos anos 1990, resulta de uma escolha econômica de investir em commodities em vez de inovação tecnológica. E essa precarização industrial prejudicou o desenvolvimento das tecnologias de saúde, que incluem fitoterápicos.

“É interessante olharmos nesse ramo em que houve propostas contrárias a um movimento de industrialização, mas quem fez essas propostas rapidamente percebeu que não tem como jogar fora a indústria dentro de um projeto nacional. Como é que se garante seguridade social para as pessoas sem gerar riqueza? Quem gera riqueza são as indústrias”, comenta. O pesquisador alega ser possível pensar numa indústria dissociada do pensamento privatista, de concentração de capital e precarização do trabalho: “Existem alternativas, inclusive populares, para projetos de industrialização”.

Pedro justifica seu argumento de carência do setor industrial ao mencionar a baixa quantidade de medicamentos fitoterápicos no SUS: “Se fossem muitos, significaria que nós teríamos muitas indústrias e muita produção, não é o caso”. Para o pesquisador, tanto a indústria quanto os agricultores entenderam que precisariam se movimentar e o ente que ficou estagnado foi justamente o Estado. 

“O que é curioso é que as indústrias aprenderam que elas precisavam se transformar para sobreviverem no mercado brasileiro. Então, elas criaram as suas cooperativas, suas associações de agricultores, para alimentar a sua produção. As associações de agricultores também aprenderam com essas indústrias. Elas viram que precisavam se organizar, ter CNPJ, ter sindicato, se resguardar politicamente para conseguir sobreviver nesse novo mercado”.

E prossegue: “Agora, o Estado, ao invés de olhar para esses dois e falar ‘Opa! A indústria está se transformando, a sociedade civil está se transformando, eu também preciso me transformar’. O que ele fez foi se manter no monolito de um Estado conservador, regrado, que fala assim: ‘Não, fitoterápico é medicamento, então é isso e pronto!’ E colocou tanto na indústria como na sociedade civil entraves que são muito retrógrados”, analisa.

Ele afirma também que quando as plantas medicinais passam a fazer parte da economia de mercado aberto esse processo se transforma, numa perspectiva neoliberal, e novos atores tentam se integrar. Daí, o Estado deve sim atuar nessa regulação, mas da forma adequada. “O problema é que essa regulamentação não deu muito espaço para a diversidade. Essa é a disputa hoje em dia”, pondera.

“Hoje existe a agricultura familiar que quer entrar nesse mercado, existem os municípios que estão tentando implementar farmácias vivas, que tem muita dificuldade de implementar como modelo. Existem as empresas e indústrias que querem produzir, mas dentro desse aparato têm dificuldades. E aí a gente tem um Estado que deveria estar escutando mais as pessoas, olhando mais para sua própria história, para se renovar”, completa.

Serviço

Acervo museológico da fitoterapia pública brasileira (previsão de abertura – início de 2025): Curadoria do Museu Histórico da FMUSP – https://fm.usp.br/museu/portal/ 

Livro: A institucionalização da fitoterapia pública brasileira (previsão de lançamento – dezembro de 2024): Hucitec Editora – https://lojahucitec.com.br/

Tese: A institucionalização da fitoterapia pública brasileira (PPGSC/FMUSP, 2023). Disponível em https://bit.ly/tesehistoriafito.

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