A

Menu

A

A princípio era uma doença distante que, na opinião de especialistas, não chegaria ao Brasil — e se chegasse não resistiria ao calor tropical; após o registro dos primeiros casos em solo nacional, algumas autoridades insistiram que a ameaça era infundada: tudo não passava de uma “gripezinha”, chegou-se a dizer; a imprensa também foi cética ao noticiar os primeiros casos, até render-se à inevitável exigência de aumentar o espaço para os obituários nos jornais; nas grandes cidades, boa parte da população se refugiou no discurso do negacionismo — incentivada pela postura pública de certos políticos — ou na confiança em medicamentos ineficazes ou soluções “mágicas” que prometiam proteção e cura contra o mal, que foi impiedoso com a população mais pobre. Ao fim, o que se viu foi uma crise que ceifou milhares de vidas e impactou diversos setores da sociedade pelos anos seguintes.

Não, este não é um exercício de futurologia sobre a realidade brasileira pós-pandemia de covid-19, em pleno século 21, mas sim uma descrição resumida do que aconteceu há mais de 100 anos, quando o país foi assolado pela gripe espanhola, em 1918. A trágica e assustadora semelhança entre os dois períodos históricos é o eixo condutor do livro “A bailarina da morte — A gripe espanhola no Brasil”, fruto da pesquisa empreendida pelas historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, lançado em outubro de 2020 pela editora Companhia das Letras — e que tem sido ponto de partida para inúmeras reflexões sobre o momento atual e seus reflexos na saúde, nas práticas de desinformação e no exercício da cidadania.

Super requisitada para debates na imprensa, nas redes sociais e, também, no mundo acadêmico, Lilia Schwarcz, professora das universidades de São Paulo (USP) e de Princeton, nos Estados Unidos, ministrou a aula inaugural do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), da Fiocruz, dia 16 de março, quando propôs reflexões a partir dos achados do livro. Ela já havia falado sobre o tema na instituição no fim de 2020, quando participou de uma sessão do Centro de Estudos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), mas neste segundo momento destacou a importância do combate à desinformação: “Nestes tempos de fake news, considero que ocupar os meios com a boa informação é um ato de resistência”, salientou. Lilia chamava atenção para o fato de que a informação é parte da crise instalada no país — que, segundo ela, não é apenas sanitária, política e econômica, mas também ética e moral. 

A professora mencionou inúmeras situações em que a falta de informação (ou a desinformação) tem consequências diretas nas ações de enfrentamento da pandemia. Segundo ela, negacionismo, xenofobia, desinformação, censura e invisibilidade — nada disso pode ser considerado “novidade” da pandemia de covid-19. Ao citar o pensamento do historiador britânico Eric Hobsbawm, que defendeu que o século 20 só começou depois do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ela arriscou a dizer que só estaremos na realidade no século 21 quando superarmos o desafio da pandemia de covid-19. “Nosso presente está cheio de passado”, argumentou.

Vida e morte

Lilia lembrou que a palavra “crise” vem do termo “decisão”. Na acepção médica, descreve um momento que tanto pode levar o paciente à morte quanto à sua recuperação. “Nós estamos neste momento ambivalente de morte e vida”, definiu, referindo-se às vidas perdidas pela covid-19. “Como diz [o pensador indígena] Ailton Krenak, aqueles que não podem tratar da morte não podem tratar da vida”, observou.

“É preciso falar da morte”, afirmou a pesquisadora. Depois de um ano de isolamento, a negação pode ser considerada “normal”, numa sociedade preparada exclusivamente para a vida. “O problema não é exatamente o negacionismo, mas sim quando a negação se torna política de Estado”, avaliou. Segundo ela, já em 1918, havia uma expectativa em relação aos avanços da tecnologia em relação à saúde, e no Brasil as cidades passavam por transformações que visavam sua modernização. A morte não combinava com este cenário. Hoje, mesmo com tantos avanços, ressaltou, vivemos situação parecida, mas as causas podem ser diferentes. “Toda crise sanitária escancara as nossas desigualdades. O Brasil sairá mais pobre e mais desigual depois desta pandemia de coronavírus”, afirmou.

Repetir o passado

Além do negacionismo e da exposição indubitável das desigualdades, as duas pandemias também têm em comum a criação de teorias da conspiração e de bodes expiatórios, assinalou a pesquisadora. Se hoje há quem creia que o coronavírus é criação dos chineses, em 1918 acreditava-se que a gripe era espanhola — pelo simples fato de a Espanha ter sido o primeiro país a noticiar a doença. “Diante do infortúnio e da extrema insegurança, é melhor criar culpados”, frisou. Outra similaridade identificada pelas autoras é a prova de como as duas pandemias não são “democráticas”, como advogam alguns. Ao resgatarem os contextos da época, elas destacam o peso da gripe entre ex-escravizados e imigrantes, no Sudeste, e indígenas, na região Norte. “Não há dados seguros, mas é possível dizer que muitas populações indígenas foram dizimadas”, destacou Lilia. 

Outra similaridade entre os dois tempos, disse a professora, é a propagação de um certo “pensamento mágico”, capaz de impulsionar propostas de curas miraculosas e resgatar antigos remédios para novos usos. Também em 1918 tentou-se enfrentar a gripe espanhola com sal de cloroquina, chamado de sal de quinino, que já era usado contra a malária. A diferença é que não era o governo que receitou o medicamento, mas sim os anúncios colocados em jornais e revistas à profusão. “Nenhum presidente fez propaganda do sal de quinino”, assegurou.

Ela também destacou o uso político da pandemia, observado nos dois momentos históricos, sendo responsável, no tempo da espanhola, por um episódio controverso, relacionado à morte de Rodrigues Alves. Eleito presidente do Brasil pela segunda vez em 1918 (ele havia governado o país entre 1902 e 1906), o político paulista morreu em 1919, antes de assumir o segundo mandato (que iria até 1922). No livro, Lilia e Heloísa mostram como a verdade sobre o episódio foi usada para manter a estabilidade cafeeira de Minas Gerais e São Paulo no governo federal, comprovando que este não teria sido vítima da espanhola, como naquele momento se fez crer.

A obra resgata, com riqueza de detalhes e comprovação documental, hipóteses sobre a chegada do vírus ao país e o impacto das medidas impostas pelos governos. Também faz um registro importante sobre os desafios impostos aos “sanitaristas” e demais profissionais de saúde da época, diante de uma ameaça que dizimou milhares de pessoas em todas as cidades. Outro aspecto interessante do livro é avaliar os impactos das notícias no cotidiano das cidades e da censura praticada pelos governos, ora escondendo ou maquiando dados, ora manipulando informações sobre a pandemia. O livro mostra que havia um esforço coletivo mais concentrado e solidário, em 1918, quando a população não questionou as medidas adotadas para conter a disseminação da gripe, muito similares às recomendadas hoje: distanciamento social; fechamento de escolas, comércio, igrejas, teatros e cinemas; e higiene das mãos. 

Lilia destacou que é preciso aprender algumas lições úteis um século depois: combater o negacionismo; não politizar a doença; evitar a criação de bodes expiatórios e/ou xenófobos; investir nas políticas de solidariedade e, por fim, fortalecer as instituições democráticas, responsáveis pela manutenção da cidadania: “Cuidar do SUS é como cuidar dos direitos humanos no Brasil”, recomendou. “Escrever sobre a pandemia de 1918, no momento de uma outra pandemia, foi um ato político de duas historiadoras, na tentativa de revelar as lições que ela poderia nos dar”, sintetizou.

Sem comentários
Comentários para: O futuro repete o passado

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Radis Digital

Leia, curta, favorite e compartilhe as matérias de Radis de onde você estiver
Cadastre-se

Revista Impressa

Área de novos cadastros e acesso aos assinantes da Revista Radis Impressa
Assine grátis