Os lixões a céu aberto ainda são o destino final dos resíduos sólidos em 50,8% dos municípios brasileiros, ou em 2.810 cidades. O dado é da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) 2008, do IBGE, que afere a oferta de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de águas pluviais e manejo de resíduos sólidos. Responsáveis pela decomposição da matéria orgânica, liberando os gases carbônico e metano na atmosfera e poluindo o solo e os lençóis freáticos, esses vazadouros de resíduos sólidos a céu aberto provocam fortes impactos ambientais e estão diretamente associados a doenças como leptospirose, leishmaniose, cólera, salmonelose, desinteria, e à proliferação de vetores, como moscas, baratas, ratos, pulgas e mosquitos. “Outros problemas ligados ao destino inadequado do lixo são a poluição dos mananciais, pelo chorume (líquido escuro que escorre do lixo), e a contaminação do ar, pela queima do lixo, provocada ou natural”, aponta a pesquisadora Débora Cynamon Kligerman, do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Débora explica que o lixo foi durante muito tempo o primo pobre do saneamento básico. “Na década de 70, época de forte investimento feito na área e com o advento do Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa), destinaram-se mais recursos ao abastecimento de água, componente que estava diretamente ligado à mortalidade infantil, depois em esgoto e, por fim e muito pouco, em lixo”, disse. “Foi somente no fim da década de 80 que se começou a falar de saneamento ambiental, englobando água, esgoto, lixo e drenagem, ou seja, todos os braços do saneamento”.
Nos últimos 20 anos, o panorama do destino dado ao lixo veio mudando para melhor. Essa trajetória ascendente culminou com a recente Política Nacional de Resíduos Sólidos, criada pela Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, e regulamentada em decreto de 23 de dezembro de 2010, do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O texto, que tramitou durante duas décadas no Congresso, é considerado um marco, pois propõe melhorar a gestão do lixo a partir da divisão de responsabilidades entre a sociedade, poder público e iniciativa privada. No compartilhamento das tarefas, cabe ao poder público apresentar planos para o manejo correto dos materiais; às empresas, o recolhimento dos produtos após o uso; e, à sociedade, participar dos programas de coleta seletiva e reduzir o consumo. Entre outras determinações, a lei obriga a substituição de lixões por aterros, até 2015, e proíbe a importação de resíduos. Segundo a PNSB 2008, em 1989, os lixões representavam o destino final de resíduos sólidos em 88,2% dos municípios; em 2000, o índice caiu para 72,3%, chegando aos 50,8%, em 2008. Já os aterros controlados — espaços remediados, adjacentes aos lixões, que recebem cobertura de argila e grama para proteger o lixo da água da chuva, e podem captar o chorume — representavam o destino de 9,6% do lixo, em 1989, subindo para 22,3%, em 2000, e para 22,5%, em 2008. Os aterros sanitários, medida mais adequada para o despejo do resíduo sólido — preparados previamente, com nivelamento de terra e selamento da base com mantas de PVC, impedindo que o lençol freático se contamine com chorume (como informa o site lixo.com.br) — saltaram de 1,1%, em 1989, para 17,3%, em 2000, e 27,7%, em 2008. As regiões que mais destinam seus resíduos aos lixões, segundo dados de 2008, são Nordeste (89,3%) e Norte (85,5%). Já as regiões Sudeste e Sul apresentaram os menores percentuais: 18,7% e 15,8%, respectivamente.
Iniciativas bem-sucedidas O avanço no que se refere à destinação correta do lixo, ainda que insuficiente diante da demanda, pode ser observado em algumas experiências bem-sucedidas, como a extinção do antigo lixão da Marambaia e a criação da Central de Tratamento de Resíduos (CTR), em Nova Iguaçu, a revitalização do antigo lixão de Gramacho, localizado em Caxias (RJ), e a criação da Usina Verde, próxima ao Hospital Universitário da UFRJ, todos no Estado do Rio de Janeiro, e o projeto Catadores Encantadores, que se desenvolve em Campinas (SP). Em Nova Iguaçu, a 50 quilômetros do Rio de Janeiro, o lixão da Marambaia foi extinto em 2003. No mesmo ano, começou a funcionar a Central de Tratamento de Resíduos Nova Iguaçu S.A., fruto de investimentos do Grupo S.A. Paulista. A central compõe-se de aterro sanitário e industrial que permite o confinamento seguro do lixo, garantindo controle da poluição ambiental e proteção da saúde pública, uma unidade de tratamento de resíduos de serviços de saúde, uma unidade de tratamento do chorume e aproveitamento energético do biogás, uma unidade de britagem de entulho e uma unidade de gerenciamento de resíduos industriais que inclui um laboratório. Além disso, conta com um centro de educação ambiental e viveiro de mudas de Mata Atlântica (ver matéria na pág. 11). Maior aterro sanitário da América Latina, Gramacho recebe, por dia, mais de 7 mil toneladas de lixo proveniente de três municípios da Baixada Fluminense e, também, da cidade do Rio de Janeiro. O agora chamado aterro de lixo controlado, possui uma usina de biogás. O chorume produzido pelo lixo está sendo bombeado para a usina, que vende o biogás para a Refinaria de Duque de Caxias (Reduc), da Petrobras (ver box na pág. 10).
Já a Usina Verde, que teve parte da tecnologia desenvolvida pela Coppe/UFRJ, trabalha com a incineração de lixo urbano. Considerada tecnologia limpa, por destruir termicamente os gases poluentes produzidos no processo, liberando na atmosfera apenas vapor de água e CO2, sem causar danos ambientais, a usina foi inaugurada em 2004, na Ilha do Fundão, próximo ao Hospital Universitário, e recebe diariamente 30 toneladas de resíduos sólidos, já pré-tratados, provenientes do aterro sanitário da Companhia de Limpeza Urbana do município, no bairro do Caju. Na unidade, os resíduos passíveis de reutilização ou de reciclagem são retirados; o restante é incinerado. Os gases ácidos resultantes da incineração do lixo são lavados com água alcalinizada, ocorrendo, então, uma reação química que transforma as substâncias em sais minerais e água. Gestão do lixo em lei Para Débora Cynamon, a Política Nacional de Resíduos Sólidos representa uma alteração da postura nos padrões de produção e consumo, prática do princípio dos 3 Rs (redução, reutilização e reaproveitamento dos resíduos), prevendo gestão integrada de resíduos sólidos e responsabilidade compartilhada, além de incentivos creditícios, fiscais e financeiros e inclusão das organizações formais de catadores. A pesquisadora destaca também na nova política a logística reversa, em que o fabricante do resíduo sólido é também responsável pelo seu descarte. “Ou seja, o gerador é responsável por recolher o próprio lixo”, observa. Em sua avaliação, isso representa um avanço e quem sabe mudança no padrão de consumo. “A política dá maior responsabilidade a quem gera o lixo”, elogia Débora. Ela explica que se levou muito anos para aprovar o novo código, pois havia por trás interesses de mercado. “A política reorganiza a produção e isso significa gastos que os geradores não queriam ter”, analisa.
Cabe aos geradores, ainda, garantir segurança dos processos produtivos, manter informações atualizadas, permitir a fiscalização, recuperar áreas degradadas e contaminadas sob sua responsabilidade e desenvolver programas de capacitação continuada. Ao Distrito Federal e aos municípios, cabe adotar tecnologia para absorver ou reaproveitar os resíduos sólidos reversos dos sistemas de limpeza urbana e dar disposição final ambientalmente adequada aos dejetos, bem como articular com os geradores a estrutura necessária para garantir o retorno dos resíduos sólidos reversos sob sua responsabilidade. Fabricantes e importadores Aos fabricantes e importadores, cabe adotar tecnologia para coletar, absorver ou reutilizar os resíduos e informar ao consumidor sobre as possibilidades de reutilização e tratamento dos produtos, advertindo sobre riscos ambientais resultantes do descarte inadequado. Aos revendedores, comerciantes e distribuidores, a nova política propõe receber, acondicionar e armazenar temporariamente os resíduos sólidos do sistema reverso sob sua responsabilidade, criar e manter centros de coleta para garantir o recebimento dos resíduos, informar ao consumidor a indicação dos pontos de coleta e divulgar mensagens educativas de combate ao descarte indevido e inadequado. Já ao consumidor, cabe acondicionar adequadamente e de forma diferenciada os resíduos sólidos, atentando para as práticas que possibilitem a redução da geração de lixo e, após a utilização do produto, efetuar a entrega dos resíduos sólidos reversos aos comerciantes e distribuidores, ou encaminhá-los aos postos de coleta. A lei dispõe também sobre a formalização do trabalho dos catadores. Cerca de 60 mil catadores trabalham formalmente, mas o número de informais chega a um milhão. De acordo com a PNSB de 2008, em todo o país, 26,8% dos municípios com serviço de manejo de resíduos sólidos sabiam da presença de catadores nas unidades de disposição final desses resíduos, a maioria nas regiões Centro-Oeste e Nordeste — 46% e 43%, respectivamente. Destacam-se os estados do Mato Grosso do Sul (57,7% sabiam da existência de catadores), Goiás (52,8%), Pernambuco (67%), Alagoas (64%) e Ceará (60%). Na antevéspera do Natal do ano passado, o então presidente Lula esteve com catadores, como faz nessa data, desde 2003. Acompanhado da presidenta eleita Dilma Rousseff, assinou decreto que institui o Programa Pró-Catadores, ao qual cabe articular as ações do governo federal voltadas para esse grupo. Foram firmados, ainda, o convênio para aquisição de carrinhos elétricos pelas cooperativas de catadores, acordo de cooperação técnica para estruturar o Programa de Atendimento Jurídico da População em Situação de Rua no Estado de São Paulo e o Programa de Efetivação dos Direitos da População em Situação de Rua.
A montanha de resíduos que durante duas décadas formava o antigo lixão da Marambaia, no bairro de Adrianópolis, em Nova Iguaçu (RJ), trazendo malefícios ao meio ambiente e à população da redondeza, bem como aos cerca de cem trabalhadores que viviam daqueles resíduos, deu lugar a uma área reflorestada por mudas de Mata Atlântica. A mudança, iniciada em 2003, foi fruto de concessão da Prefeitura de Nova Iguaçu ao grupo S.A. Paulista que, em contrapartida, tornou-se responsável pela revitalização da área do antigo lixão e pela criação da Central de Tratamento de Resíduos Sólidos (CTR) Nova Iguaçu S.A. Construída em uma área de 1,2 milhão de metros quadrados, a central é composta por um aterro sanitário e industrial (que recebe também resíduos de indústrias), de grande porte, uma unidade de tratamento de resíduos de serviços de saúde, uma unidade de tratamento de chorume e aproveitamento energético do biogás, uma unidade de britagem de entulho e uma unidade de gerenciamento de resíduos industriais que inclui um laboratório. “Aqui temos 250 trabalhadores diretos, em média, e uns 100 trabalhadores indiretos”, informa o analista de Sistema de Gestão Integrada da CTR Nova Iguaçu, Aurimar Carvalho de Faria. A unidade, destaca, recebe de 3 mil a 4 mil toneladas de lixo, por dia, o que representa 400 caminhões de resíduos sólidos. O lixo, que chega nos caminhões, passa por controle de pesagem informatizado, e por controle da qualidade dos resíduos, realizado pelo laboratório instalado dentro da central, em parceria com o Centro de Tecnologia Ambiental (CTA) da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). Se não for infectante, o lixo é encaminhado ao aterro sanitário. Licenciado pela Secretaria de Meio Ambiente de Nova Iguaçu, pela agência estadual de controle ambiental (Feema) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para operar no Estado do Rio de Janeiro, o aterro é formado por terreno de dupla impermeabilização, com camada de 1,10 metros de solo argiloso compactado com baixíssima permeabilidade, protegida por manta de polietileno de alta densidade (Pead), o que impede qualquer passagem do chorume para o solo e o lençol freático.
“Quando o lixo é jogado sobre o terreno preparado, vem o trator que espalha os resíduos e, em seguida, um rolo compressor que compacta o lixo no solo, para não deixá-lo instável. No terreno do aterro, são formadas camadas com platôs, a cada cinco metros, chamadas de cotas, e o lixo ali depositado tem que ser coberto num prazo máximo de 24 horas, evitando qualquer exposição”, explica Aurimar, no que se refere ao processo de tratamento dos resíduos sólidos. A vida útil do aterro termina em 2036. Ou seja, a área tem capacidade de receber e tratar os resíduos provenientes das residências e das indústrias por mais 25 anos. No tratamento dos resíduos dos serviços de saúde, o CTR Nova Iguaçu utiliza tecnologia alemã de desinfecção térmica, substituindo assim a incineração. Os resíduos, nesse caso, vão para um equipamento compacto, que primeiramente tritura a massa para depois realizar uma desinfecção térmica contínua. Uma vez desinfectados, os resíduos podem ser destinados ao aterro sanitário. Do chorume à água O chorume, líquido que nos lixões a céu aberto é responsável pela poluição dos lençóis freáticos e de águas subterrâneas, devido a sua elevada carga orgânica — sua aparência é bem escura e seu odor nauseante —, recebe tratamento na Estação de Tratamento de Efluentes (ETE), instalada na CTR Nova Iguaçu, próxima à área do aterro. O cuidado com esse líquido exige tecnologia sofisticada, mas o resultado é simples: o chorume vira água que serve para hidratar plantas e vias. São dois sistemas de tratamento, o primeiro, responsável pela nitrificação do chorume, ou seja, pela oxigenação da amônia em nitrato. O segundo é responsável pela desnitrificação do chorume, ou seja, pela transformação dos nitratos e outras substâncias em gás nitrogênio (N2). “O nitrogênio é liberado na atmosfera sem problema, pois é um gás inerte”, explica Marcelo Toste, químico e pós-graduado em Biologia Molecular, encarregado da ETE. O nitrogênio é um dos componentes da vida, para a produção de moléculas complexas necessárias ao desenvolvimento dos seres vivos, tais como aminoácidos, proteínas e ácidos nucleicos. Na etapa seguinte de tratamento, o produto segue para o sistema de ultrafiltração e nanofiltração. De acordo com Marcelo, são tratados 600 metros cúbicos por dia de chorume na ETE. “Como a produção no aterro, sazonalmente, é de mil metros cúbicos, o excedente é depositado em uma lagoa de equalização, de 4 mil metros cúbicos. Nas épocas de estiagem, quando tratamos em média 400 metros cúbicos de chorume, pegamos aquela reserva e completamos os 600 metros cúbicos”, explica.
Do lixo à eletricidade Na CTR, funciona ainda o projeto Novagerar, primeiro empreendimento do mundo a ser oficialmente inscrito no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto — assinado em 1997, e que conta com a adesão de 189 países, estabelecendo que os países ricos signatários reduzam suas emissões de gases de efeito estufa em 5% até 2012. De acordo com a norma MDL, os países comprometidos com o acordo poderão cumprir suas metas no país de origem ou fora, financiando e comprando créditos de carbono pela redução de emissões de gases do efeito estufa nos países em desenvolvimento. Pelo projeto Novagerar, a CTR Nova Iguaçu vende créditos carbono ao governo holandês. Na central, funciona ainda um viveiro de mudas de Mata Atlântica, onde trabalham ex-catadores do extinto lixão da Marambaia, e o Centro de Educação Ambiental, aberto à comunidade, às escolas e aos colaboradores, onde são realizadas palestras, cursos, oficinas e eventos.
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