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“O médico é onipresente, do berço à cova, e toda a existência é medicalizada”. A frase do médico belga Marc Jamoulle, muito utilizada nos livros da chamada “medicina centrada na pessoa”, foi utilizada por Raquel Vaz Cardoso, da Secretaria Estadual de Saúde do Distrito Federal, ao discutir a medicalização e estabelecer a origem do fenômeno ao nascimento da medicina moderna, baseada na distinção entre corpo e mente. “A medicina se constituiu de forma mecanicista, muito linear, e com o tempo passou a influenciar o desenvolvimento de práticas de saúde que começaram a atuar em todos os âmbitos da vida, não apenas na doença”, explicou a médica de família, durante a mesa-redonda “Resistências à medicalização no SUS pela valorização da comunicação, da educação popular e do cuidado”, que aconteceu no 12º Abrascão (Radis 192).

Segundo Raquel, a medicalização visa tornar médicos os problemas que antes eram entendidos como questões de outros saberes — em suas palavras, “tornar qualquer fato da vida um objeto da medicina”. Ela destacou que, embora os profissionais de saúde ainda sejam peças-chave nesse contexto, o “poder de medicalizar” hoje ultrapassa as fronteiras exclusivas da atuação biomédica e se estende a práticas produzidas e reproduzidas por pessoas e instituições de ensino, no complexo médico-industrial e farmacêutico, na família e na mídia, entre outros. “A medicalização está profundamente arraigada nas concepções e práticas de saúde-doença em todo o mundo, bem como em todos os níveis de atenção à saúde”, refletiu.

Na pesquisa que desenvolveu durante o curso de mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Raquel constatou que as práticas de prevenção e promoção da saúde estão “contaminadas” por esse viés, e que é possível identificar inclusive efeitos colaterais deste fenômeno, conhecidos como iatrogenia. “A iatrogenia clínica afeta desde a promoção da saúde, da atividade física e da vida saudável, à busca do corpo ideal, que podem levar à dependência ou gerar hospitalizações desnecessárias”, explicou.

Segundo ela, a iatrogenia estrutural afeta a cultura da saúde: “Quanto mais cuidado for oferecido, menor será a capacidade de as pessoas se cuidarem, já que isso significa mais exames, mais consultas e mais internações”, observou. Para ela, o processo de medicalização é contraprodutivo por não promover autonomia, produzir dependência e estimular o consumo exagerado de recursos de saúde. “O excesso e o monopólio do saber médico geram essa contraprodutividade”, refletiu.

“A medicalização está
profundamente arraigada
nas concepções e práticas
de saúde-doença, bem
como em todos os níveis
de atenção à saúde”

Raquel Cardoso

Especialistas dizem que é preciso estimular a convivência entre medicamentos e outras práticas de cuidado. — Foto: Cássia Shelen/PML.
Especialistas dizem que é preciso estimular a convivência entre medicamentos e outras práticas de cuidado. — Foto: Cássia Shelen/PML.

Diálogo e escuta

Muita escuta e diálogo são o caminho para a desmedicalização, recomendou o sanitarista Eymard Vasconcelos, professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Também médico de família, ele criticou a falta do diálogo entre o médico e o paciente. “Normalmente o profissional faz o diagnóstico e diz o que o paciente deve fazer. Mas os agentes comunitários de saúde reportam que muitas pessoas têm resistência a medicamentos e não adotam as condutas determinadas pelo médico. É uma ilusão acreditar que saúde se resolve com medicamentos e aparelhos. Até pode resolver uma parte, mas não o todo”, garantiu. Para ele, os limites da medicalização são dados pela limitação dos medicamentos. “Fica claro, especialmente para quem atua na ponta e está em contato com pacientes, que esse viés medicalizante e tecnicista é insuficiente para dar conta dos problemas vivenciados pelas pessoas”, garantiu. Eymard recomendou que os profissionais atuem no cotidiano da vida das pessoas para conseguir transformar as suas vidas e reorientem suas práticas, ainda muito centralizadas na administração de medicamentos.

“Deixamos de lado ações importantes que têm mais eficácia do que a droga. É preciso reconhecer que as pessoas possuem iniciativas próprias e redes de apoio social que também podem contribuir para o tratamento”, afirmou. Para ele, em vez de apenas medicar, é preciso buscar soluções que resultem da mistura entre as práticas de saúde populares e o conhecimento profissional. “As pessoas precisam ser ouvidas e ver que suas práticas são respeitadas e não menosprezadas”, salientou.

Os profissionais de saúde desconsideram a dimensão não biológica dos problemas, destacou Eymard. “Médicos e estudantes são preparados para lidar apenas com medicamentos e exames. Sabemos o quanto esses podem ser limitados. É preciso estimular a convivência entre os medicamentos e outras práticas”, alertou. Para ele, o médico deve ir além da prescrição de medicamentos e avaliar a pessoa como um todo, utilizando a rede construída pelos agentes comunitários para facilitar o diálogo. “Alguns pacientes são resistentes ao uso de medicamentos. Faz parte da atuação profissional investigar a razão dessa resistência, sem julgamentos. Ele deve ir à casa da família, conversar, ouvir e verificar o que está acontecendo”, orientou.

Eymar avaliou que os profissionais de saúde têm sido pressionados por condutas padronizadas e quantificáveis que marginalizaram o diálogo. “O diálogo tem que estar presente em todo o processo de atenção à saúde, mas muitas vezes é desvalorizado pela cobrança produtivista do serviço de saúde”, alertou. “A Reforma Sanitária estava assentada sobre o diálogo e nós temos que buscar essa prática novamente. O diálogo é a expressão da educação popular e caminho para construir uma cidadania e transformar o mundo”, afirmou. Segundo ele, a educação popular, prática que busca a transformação social por meio do saber popular, é o caminho para romper com a tradição autoritária.

O respeito ao saber popular, a escuta do outro e a busca por alternativas é um caminho para desmedicalizar a sociedade. — Foto: Ministério da Saúde.
O respeito ao saber popular, a escuta do outro e a busca por alternativas é um caminho para desmedicalizar a sociedade. — Foto: Ministério da Saúde.

Investir no cuidado

Também professora aposentada, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a sanitarista Madel Therezinha Luz avalia que há, hoje, uma sociedade doente e um processo de drogadicção em massa. “Eu vejo as pessoas adoecidas pela falta de cuidado, pela jornada de trabalho e por horários. Todo mundo está doente ou com medo do que há por vir”, analisou. A professora reforçou que está mais do que na hora de os profissionais de saúde saírem do campo do diagnóstico, irem ao encontro do outro e investirem no campo do cuidado. “É aí que se estabelece uma relação”, sintetizou.

Para Madel, o cuidado é o resultado do diálogo e da escuta, e prova que é possível existir outra forma de olhar para o adoecimento. “Temos que pensar que é possível criar uma nova forma de conhecimento e de agir que não esteja enquadrada no modelo da superdiagnose e de supermedicalização”, observou. Ela explicou que o paradigma de saúde como cuidado diverge do modelo biomédico, já que inclui práticas integrativas e propõe novos modos de conhecer e praticar saúde. “Somos engolidos por essa máquina ligada aos interesses do mundo. A indústria farmacêutica é superior ao narcotráfico, está entre as três atividades mais importantes da sociedade capitalista”, observou.

Madel apontou que profissionais devem desviar seu olhar do enquadramento biomédico e prestar atenção em outros discursos, práticas e saberes existentes na sociedade, incluindo os que tradicionalmente são utilizados pela população. “Os acadêmicos têm o olhar embaçado. Precisamos desviar um pouco o olhar desse saber acadêmico e tentar aprender com essas experiências que estão sendo vividas e plantadas há séculos pelas populações”, observou Madel. Para a professora, essa produção sequer consegue ser compreendida pela academia. “Olhar para o outro é importante. E dialogar é o caminho”, reforçou.

Segundo ela, apesar de sua importância, os saberes populares ocupam um patamar ainda muito informal no SUS. “Há muitas pessoas envolvidas com essas práticas, mas trabalham de forma muito insegura, às vezes informal. Sem um reconhecimento mais sólido dessa atuação, acho que não conseguiram constituir essas práticas institucionalmente”, avaliou. Para Madel, só a educação popular pode superar esse duelo perverso entre a biomedicina e as práticas integrativas. “Temos que superar essa dicotomia”, recomendou.

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