Durante a graduação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o então estudante Bruno Stelet pensava em se especializar em Obstetrícia. Mas, participando de projetos de extensão universitária em comunidades, notou que, além de realizar o pré-natal de suas pacientes, também sentia a necessidade de acompanhar as crianças depois do nascimento. “A Medicina de Família foi a especialidade que me permitiu oferecer essa atenção longitudinal”, conta ele, hoje com 34 anos. Ele atende na Clínica da Família Victor Valla, na comunidade de Manguinhos, no Rio de Janeiro, há cinco anos. “Nem sempre é fácil encontrar um médico que permaneça por esse tempo na mesma equipe de saúde, pois há uma alta rotatividade de profissionais”, o próprio Bruno observa.
“Sou nascido em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio, uma área em que os vínculos comunitários e as redes de apoio são importantes para resistir às adversidades sociais. A minha história pessoal certamente influenciou na minha decisão profissional”, avalia. Para Bruno, que cursa doutorado em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e é professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das atribuições do médico de Família é ajudar a comunidade a se organizar para reivindicar suas demandas. De sua experiência diária, ele tirou uma conclusão: “Não dá para separar os aspectos sociais da prática clínica”.
Ana Flávia Tavares, de 28 anos, formou-se pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), no interior de São Paulo. Como muitos de seus colegas, pensava em cursar uma especialidade tradicional. Chegou a se especializar em Terapia Intensiva, no Hospital Albert Einstein, na capital. “Lá, ouvi falar bem da atenção primária e passei a olhar essa área com mais carinho”, conta a mineira de Belo Horizonte que foi criada em Campinas. Ana Flávia decidiu, então, cursar a residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 2013.
“Minha mãe é médica fisiatra, e mesmo na minha própria família, que tem outros médicos, as pessoas nunca tinham ouvido falar nessa especialidade”, lembra. “Ouvi que ia morrer pobre. Quando a gente fala em acesso, em questões sociais, causa um estranhamento: como assim o médico está preocupado com o acesso?”. Desde outubro de 2015, Ana Flávia atua como médica de Família no município de Painel, na região sul de Santa Catarina.
O município tem uma unidade básica na sede e um pequeno posto de apoio a 20 km do centro urbano. Ana Flávia chega a caminhar a pé por cerca de 2 km depois que termina a estrada de terra para fazer visitas domiciliares. Com todas as dificuldades, ela pensa em ficar a longo prazo. “É um desafio, mas me sinto contribuindo, porque não havia uma cultura de atenção primária, o próprio termo era desconhecido na cidade”, relata.
Ana Flávia e Bruno são profissionais que atuam em Medicina de Família e Comunidade, especialidade médica que tem atuação essencial na atenção básica — e, por isso, é considerada estratégica na conformação dos sistemas de saúde. Como define um documento norteador da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), “cabe à MFC, partindo de um primeiro contato, cuidar de forma longitudinal, integral e coordenada, da saúde de uma pessoa, considerando seu contexto familiar e comunitário”.
A contar pelo número de vagas de residências, a especialidade está em ascensão. “Concluí a graduação em 2005. De 100 alunos, cinco queriam fazer Medicina de Família. Só existia uma residência no Rio de Janeiro, oferecida pela Uerj, com oito vagas”, lembra Bruno. Nos últimos anos, as vagas na residência aumentaram, impulsionadas por programas como o Pró-Residência e o Mais Médicos. No Rio, um dos programas de residência, o da Secretaria Municipal de Saúde, oferece 150 por ano, por exemplo. No Brasil, foram oferecidas mais de 1.500 vagas de acordo com o MEC em 2015 — a previsão era de que esse número aumentasse para 2.500 em 2016.
Mas apenas entre 30% e 35% delas são ocupadas, segundo o presidente da SBMFC, Thiago Andrade. “Os estudantes de Medicina precisam se interessar pela Medicina de Família. Temos no país 40 mil médicos atuando em equipes de atenção primária, mas só 10% deles são especialistas em Saúde da Família”, contabiliza. A maior parte são recém-formados, ou médicos de outras especialidades, como Pediatria.
Para Thiago existe uma “lacuna enorme” na especialização. “Mesmo hoje, após 22 anos da implantação da Estratégia Saúde da Família, apenas em torno de 2% de todos os médicos do país são especialistas em Medicina de Família”. No Canadá, que tem a atenção primária como estruturante de seu sistema de saúde, são até 40% os médicos de Família. “Lutamos para que essa expansão se dê em larga escala”, diz Thiago.
Esse e outros grandes temas da especialidade foram discutidos durante a 21ª Conferência Mundial de Médicos de Família, organizada pela World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians (Wonca), entre 2 e 6 de novembro, no Rio de Janeiro. Fundada em 1972 e afiliada à Organização Mundial da Saúde, a Wonca é a organização internacional que reúne universidades, academias e associações da especialidade ligada à atenção básica.
Atenção básica contra a crise
Palavra do momento, a “crise” esteve em pauta. O presidente da SBMFC tratou das evidências que mostram que países que estão passando por crises econômicas observam um aumento generalizado do adoecimento. O impacto social, psicológico e financeiro nas famílias repercute na saúde, conforme apontou o médico, inclusive com aumento de transtornos mentais e suicídios. Para ele, este é um momento importantíssimo para o médico de Família estar presente como fonte de acesso ao cuidado da população de uma maneira equitativa. “No momento em que a carga de sofrimento das pessoas aumenta, aí é que a gente tem que garantir acesso mesmo”, ressaltou.
O médico português Luís Augusto Coelho Pisco, que participou da reforma da atenção primária em Portugal, falou sobre o impacto da crise econômica que começou em 2008 em seu país. Desde 2011, ele contou, houve cortes de recursos por programas de austeridade que reduziram em mais de 8% o orçamento da saúde. Portugal conseguiu conciliar austeridade com a manutenção do sistema, mas o setor saúde não saiu incólume, segundo ele. “Nos últimos 10 anos, aumentou a carga de trabalho dos médicos da atenção primária, e a multimorbidade, ou seja, a quantidade de pacientes que sofrem de vários males”, avaliou.
Famílias multiproblemáticas
Uma criança com fortes dores de cabeça. Por trás de um caso clínico, todo um enredo familiar de uso de drogas, funções mal definidas e fraca comunicação entre seus integrantes. Este foi o exemplo mostrado por Olga Garcia Falceto, psiquiatra do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, para discutir um tema que provoca desgaste no cotidiano dos médicos: as famílias multiproblemáticas. Ela enfatizou que em todos os estratos sociais se vêem cada vez mais famílias em que a desestruturação emocional e falta de apoio são determinantes no processo de adoecimento.
Ausência física ou afetiva dos pais e mães, drogas, violência doméstica e/ou abuso sexual intrafamiliar, cuidados da infância terceirizados e problemas psiquiátricos são algumas das características dessas famílias. “É forte a presença do consumismo como um valor colocado acima do cuidado nessas famílias”, observou. Na classe média, disse, existe um hiperinvestimento paterno e materno no trabalho para garantir acesso a bens de consumo. Na plateia, médicos relataram que nunca viram a mãe ou o pai de algumas pacientes crianças, que são levadas às consultas pelas babás.
“O médico de Família, especialmente aqueles que fazem visitas domiciliares, têm condições de fazer pequenas intervenções que podem gerar grandes diferenças”, frisou ela, que recomendou aos profissionais ficarem atentos às questões de gênero e aos problemas de comunicação, como não ditos e segredos.
Burnout
Olga mencionou que as famílias multiproblemáticas são um dos fatores que sobrecarregam emocionalmente toda a equipe da atenção básica, levando ao burnout — situação comum a todos os profissionais de saúde. Para quem não está familiarizado com o termo, uma pessoa na plateia resumiu de modo prático: “É quando entra um novo paciente falando as mesmas coisas e eu quero bater com a minha cabeça na parede”.
De acordo com o artigo “Burnout em médicos da atenção primária: uma revisão sistemática”, publicado pela Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, o burnout é um fenômeno composto por três dimensões: a exaustão emocional (o fator central do esgotamento, caracterizando-se pelo sentimento de desgaste emocional e pela falta de energia), a despersonalização (insensibilidade emocional que surge como estratégia defensiva e que se dá quando o profissional passa a tratar os clientes e colegas como objetos) e a falta de realização pessoal (sentimento de incompetência e inadequação).
“Acordo cansado, não quero fazer nada e, quando chego em casa, não consigo brincar com meus filhos”, reconheceu outro profissional na plateia do workshop de Nagwa Nashat Hegazy, membro da Associação Egípcia de Medicina de Família e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Meoufyia, do Egito. O assunto era como identificar e enfrentar o esgotamento causado por sobrecarga e alto nível de estresse e responsabilidade no trabalho. “Ele aparece gradualmente, iniciando-se com uma perda de energia”, explicou Nagwa.
As consequências do burnout incluem queda da produtividade, absenteísmo, alta rotatividade, elevadas demandas no serviço de saúde, transtornos mentais e uso abusivo de substâncias (álcool e psicotrópicos), o que compromete as relações familiares e sociais. O problema é frequente entre os médicos da atenção primária. “Salário baixo é um dos fatores que levam a burnout”, apontou ela. São comuns questionamentos do tipo “Foi para isso que estudei tanto?” ou “O que estou fazendo com a minha vida?”. “É importante revisarmos nossas agendas para termos tempo para nós mesmos e o que sempre foi importante nas nossas vidas, além de trabalho”, recomendou a palestrante, que aconselhou também a todos os profissionais “ajudar outros colegas quando virem alteração de comportamento como raiva, sarcasmo e nervosismo”.
Especialidade do futuro
“Há uma efervescência da medicina de família em toda a América Latina. Em Cuba temos uma experiência de 32 anos de Medicina Familiar, e lá, 65% de todos os médicos são médicos de família. Uma experiência que tem transposto as fronteiras e está hoje em quase todos os países latinoamericanos, africanos e da Ásia. Para nós é muito gratificante, porque estamos levando ajuda solidária internacional. No Brasil, temos um compromisso social muito grande, com mais de 11 mil médicos atuando no Programa Mais Médicos, o que para nós é muito importante, porque estão em comunidades afastadas, onde há carência de profissionais. Nosso profissional médico tem uma alta qualificação, científica e docente, e sua função principal é a promoção da saúde, a prevenção de enfermidades, conferir atenção integral às famílias, às pessoas, à comunidade. Cuba é uma ilha muito pequena, mas com um coração e uma consciência grandes, que compartilha o que tem, não o que sobra. Isso vai sendo transferido e vai se multiplicando, de médico para médico. Transmitimos valores humanos e valores solidários e nos comunicamos com o mundo por meio da medicina.
Cuba tem um sistema de saúde único, estatal e gratuito para todos os cidadãos. Temos um programa de formação único de médicos de família e um programa único para todas as faculdades médicas. Temos universidades em todas as províncias. Aproximamos os serviços médicos da nossa população. Nossos médicos e enfermeiras da família vivem na comunidade e cada equipe atende a 500 habitantes. Então todos se conhecem e conhecem os processos de saúde e doença. Não queremos que nossos pacientes adoeçam. A cada dia mais países se interessam pelo nosso sistema de saúde. Mais de 86% por cento dos problemas podem ser resolvidos pela atenção básica. A medicina de família é uma especialidade e atenção primária é uma estratégia que deve estar na agenda primordial de todos os políticos. Estamos convencidos que é a única que pode melhorar as condições de saúde da população da América Latina. A medicina de família é a especialidade do futuro. Por isso tem sido primordial escutar os companheiros de outros países latinoamericanos e observar a inclusão pouco a pouco da especialidade e da estratégia”.
Lília Gonzalez, presidente da Sociedade Cubana de Medicina de Família
— Foto: Ministério da Saúde.
Prevenção Quaternária: quando menos é mais
Luís Augusto Coelho Pisco, um dos nomes que participou da reforma da atenção primária em Portugal, contou em mesa- -redonda sobre uma “feira” organizada pelo setor privado de saúde em Lisboa, recentemente, onde era possível fazer até 20 tipos de exames em um dia. “Havia até um passe de quatro dias para que o mesmo “visitante” pudesse “aproveitar” o evento e fazer todas as testagens pelo custo de 20 euros (cerca de 100 reais). “Eu chamo isso de vale-hipocondria”, brincou o médico.
Mais mal do que bem. Esse é o efeito causado pelos exames, intervenções e medicamentos quando feitos de maneira indiscriminada, orientaram os principais palestrantes da 21ª Conferência Mundial Wonca de Médicos de Família. Para evitar os males que a própria Medicina traz aos pacientes, um conceito foi muito discutido e defendido no evento: a prevenção quaternária, que significa justamente se defender e defender os pacientes dos males provocados por aquilo que deveria protegê-los, diagnosticá-los e tratá-los. Ou, como indica o Wonca International Dictionary of General/Family Practice (Dicionário Geral de Prática de Família da Wonca), “o conjunto de ações implementadas para identificar um paciente ou uma população em risco de medicalização, protegê-lo de intervenções médicas invasivas e propor procedimentos e/ou cuidados eticamente aceitáveis”
Na palestra intitulada Por que tão poucos pacientes se beneficiam dos medicamentos que tomam e porque muitos são mortos por ele, o médico dinamarquês Peter Gotzsche mostrou diferentes casos de estudos clínicos que apresentavam resultados “enviesados” e buscavam defender a falsa segurança e eficácia de medicamentos. Antidepressivos, antiinflamatórios usados para a dor crônica, estimulante usado nas crianças como medicação para o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade — todos eles, em sua avaliação, são perigosos e muitas vezes inúteis. Em seu país, uma em cada oito pessoas toma pelo menos cinco medicamentos por dia, e 39% dessas pessoas têm mais de 65 anos. As interações medicamentosas entre todos os remédios não é conhecida, alertou o pesquisador. O uso de benzodiazepínicos (tranquilizantes) em idosos, por exemplo, gera comprovadamente um aumento muito grande no risco de quedas e fraturas, que levam a mortes, advertiu.
“Não estou acusando vocês, médicos”, disse ele à plateia de cerca de 4 mil pessoas. “Não é culpa de vocês. É todo um sistema”. Para o autor do livro Medicamentos mortais e crime organizado — Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica, lançado em português durante o congresso, muitos medicamentos continuam a ser usados apenas devido ao marketing das grandes empresas de medicamentos. Ele contou que sugere aos seus pacientes que sempre leiam a bula pela internet antes mesmo de adquirir algum remédio, para estar atentos sobre os efeitos colaterais e até, quem sabe, desistir da compra. Defendeu que a redução e até a supressão de algumas categorias de medicamentos podem trazer uma melhoria nas condições de vida do paciente.
O tema prevenção quaternária ganhou atenção especial em outros momentos da conferência. O espanhol Juan Gervas alertou que, de cada 100 mil mamografias realizadas, 10 mulheres morrem em consequência da radiação. “E as pessoas nem sabem que mamografia é radiação”, lamentou. Para ele, o manejo da dor, o uso da radiologia e dos antibióticos são alguns dos aspectos que precisam ser revisados, questões nas quais o médico de Família tem um papel essencial. “Devemos ter incentivos por não pedir exames que utilizam radiação como rotina”, defendeu ele, em uma palestra repleta de críticas aos procedimentos médicos. “A satisfação do paciente é um indicador ruim, que está nos envenenando. Os pacientes morrem satisfeitos”, provocou, referindo-se a pacientes que demandam do profissional de saúde muitos exames e medicamentos, alguns desnecessários. “O sistema sanitário está ocupado com pacientes crônicos ‘obedientes’ e estabilizados. Esses são os ‘bons pacientes’. Precisamos ir atrás dos mais pobres, e dos mais vulneráveis”, destacou.
“A medicina preventiva, ao fazer exames sem ter quaisquer sintomas ou motivação clínica, é arrogante, debilitante e incute medo nos pacientes”, afirmou a inglesa Iona Heath, ex-presidente do Royal College of General Practitioners, que falou a respeito de “sobrediagnóstico” e “sobretratamento” (overdiagnosis e overtreatment, na literatura médica, em inglês). “A venda de medicamentos tem se sobreposto a todos os outros objetivos da medicina”, afirmou ela, que criticou ainda a extensão artificial da vida com procedimentos penosos. “Estamos tentando conseguir soluções técnicas para problemas existenciais do sofrimento humano”.
Apenas 10% do aumento na expectativa de vida foram devido aos avanços tecnológicos da medicina nas últimas décadas; os outros 90% foram devido às melhorias nos determinantes sociais da saúde, lembrou Hamilton Lima Wagner, da secretaria de Saúde de Curitiba. “Prevenção quaternária é uma luta política, é um discurso contrahegemônico, que disputa com o marketing”, resumiu Gervas. “Nós mandamos nossos pacientes fazer coisas que nós não fazemos em nós ou nossos familiares”, comentou Iona sobre o tema. (E.B.)
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