“Em poucos metros, entre na Avenida Santa Cruz”, anunciava o GPS. Nossa viagem começou ao meio-dia e quarenta na Avenida Brasil, altura do bairro da Maré, no Rio de Janeiro. Íamos em direção a Realengo, na Zona Oeste da cidade. De acordo com as estimativas, o percurso duraria 40 minutos. Era uma segunda-feira, 5 de junho. “Vire à direita na Avenida Pedro da Cunha”. Já na rua indicada, uma placa singela informava que estávamos chegando no nosso destino, mas sinalizações de trânsito e instruções por satélite não eram necessárias. “Quando você me disse Casa de Parto, eu já sabia onde era”, comentou o taxista que, por coincidência, foi nascido e criado na região.
A fama da Casa de Parto David Capistrano Filho se estende para além dos moradores e antigos residentes de Realengo. Ela chega nos bairros de Copacabana, Tijuca, Bangu e até na Alemanha. “As mulheres que nos procuram já vêm atrás de um modelo”, afirma Inaiá Mattos, atual diretora da casa.
Esse modelo, segundo ela, é uma proposta assistencial que favorece as demandas e as necessidades da mulher, colocando sua fisiologia e o andamento natural da gravidez em primeiro lugar. Com essas prioridades em mente, o trabalho da casa vai na contramão da cultura intervencionista e medicamentosa ainda predominante no atendimento à gestação, parto e puerpério.
À frente de um projeto tão ambicioso, a David Capistrano Filho é uma “casinha” — apelido dado pelos frequentadores — modesta de apenas 374,5 m². Foi inaugurada no dia 8 de março de 2004, simultaneamente à atuação engajada da enfermagem obstétrica que, Inaiá faz questão de pontuar, começou na década de 80 e buscou implantar práticas humanizadas na assistência ao parto, reduzir a mortalidade materna e neonatal e valorizar o trabalho dos enfermeiros obstétricos. “Fomos estruturando um serviço e uma identidade própria, pois já sabíamos o que queríamos: não queríamos fazer episiotomia [incisão no períneo] de rotina, nem realizar intervenções desnecessárias”, descreve.
E assim foi reunida a equipe da “casinha” David Capistrano Filho, composta majoritariamente por enfermeiros obstétricos. Logo na entrada, presa à parede cor de rosa, está uma placa que traz a lembrança da primeira diretora à frente da unidade, Leila Gomes Ferreira de Azevedo. Ao lado, inúmeros certificados, homenagens e reconhecimentos do trabalho realizado ali. “O Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) parabeniza a Casa de Parto David Capistrano Filho pelo excelente trabalho realizado com a mulher, a criança e a família no contexto da gestação, parto e puerpério e pelos resultados conquistados”, diz um deles.
Integrada ao SUS, a Casa de Parto Normal David C. Filho é filha única no estado Rio de Janeiro. Já são 3.872 partos realizados e 19 anos de serviços oferecidos às gestantes de baixo risco ou, como eram chamadas, de risco habitual.
Para manter essas mulheres na condição de baixo risco, além dos procedimentos padrão de consultas periódicas e exames de rotina, são incorporadas ao pré-natal as oficinas educativas e as práticas integrativas. Um exemplo é a pintura da barriga, um método utilizado na casa que funciona “como uma ultrassonografia natural, dependendo da idade gestacional”, conta Inaiá, e se chama Manobra de Leopold. Segundo a diretora, a pintura serve para trabalhar o vínculo da grávida e da família com o bebê.
Com relação às oficinas, cada uma conta com um tema, como modificações corporais, tecnologias do parto, sexualidade, gênero e cuidados com o recém-nascido. Nelas, assim como nas reuniões de acolhimento e nas atividades em grupo, é possível tirar dúvidas e reunir as informações necessárias sobre gravidez, maternidade e paternidade — na casa, também é ofertado o pré-natal do parceiro, uma iniciativa de educação e envolvimento dos homens no processo de gestação, parto e cuidado com o bebê (Radis 181).
Um diferencial das casas de parto normal é oferecer escuta individualizada e atenta à mulher e ao acompanhante de sua escolha, reitera Inaiá. “As consultas demoram em média entre 50 minutos e uma hora”, comenta a diretora. E acontecem, segundo ela, com o enfermeiro e a gestante sentados frente a frente, sem uma mesa entre eles. “Sem o distanciamento e o profissional como sabedor. Nós temos um conhecimento diferenciado, por isso estamos aqui. Somos treinados e capacitados, mas não somos melhores enquanto seres humanos. Somos pessoas cuidando de pessoas”.
Conduta diferenciada
Cuidar e acolher. Tanto Inaiá, quanto Rodrigo Lyra, enfermeiro obstétrico da casa, concordam que esse é o papel fundamental dos profissionais da área. E vão além: é cuidar com segurança. “Aqui, um atende, o outro revisa. Discutimos quando há dúvidas, passamos por outros colegas. Nunca é o mesmo pré-natal, para termos olhares diferentes e minimizar e mitigar falhas no processo”, comenta Rodrigo.
“Nós seguimos o modelo assistencial do Ministério da Saúde e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Logo, somos humanizados, fazemos partos na banheira, mas temos as maletas de parada [cardíaca], a cama PPP [Pré-parto, parto e pós-parto], uma ambulância 24 horas, as incubadoras de transporte, oxigênio. A gente se mantém seguro”, sustenta Inaiá.
Ainda sobre as precauções, a diretora é firme e deixa claro que, no caso de qualquer intercorrência durante o trabalho de parto, as mulheres são encaminhadas de ambulância, na companhia de um dos enfermeiros da casa, para o Hospital da Mulher Mariska Ribeiro, em Bangu. Além disso, a casa fica aberta 24 horas e, em uma das suas salas, possui todo o equipamento de segurança, recomendado pelas autoridades de saúde.
Nesse mesmo espaço, está a unidade de calor intensivo, uma espécie de berço no qual o recém-nascido é examinado e mantido aquecido após a hora de ouro, o momento após o nascimento em que o bebê passa sua primeira hora de vida com a mãe e o acompanhante. A hora dourada é uma das boas práticas de atenção e cuidado, previstas pelo Ministério da Saúde, que está configurada no atendimento da casa. E, em geral, ela acontece em uma das três suítes PPP.
É nesses quartos, nomeados em homenagem a parteiras importantes no campo da obstetrícia, que normalmente ocorrem os partos. Neles, a mulher tem à sua disposição uma cama, uma poltrona e um banheiro com banheira. “Se elas quiserem ficar sentadas, em pé, deitadas, de cabeça pra baixo, elas vão ter o bebê da forma que se sentirem confortáveis”, afirma Inaiá.
Se quiserem ouvir música, tomar banho, usar a bola suíça ou o cavalinho, utilizar óleos essenciais e aromas, ou ser massageada, também podem. Todos esses métodos não farmacológicos são incentivados e estão disponíveis na unidade para garantir conforto à parturiente e estimular a descida do feto no processo do parto.
Nascer é natural
Além de representar atendimento qualificado e menos transtornos e intercorrências, nascer numa casa de parto gera outro benefício: sai mais barato. “Não se utiliza medicação de rotina. Quando se faz a episiotomia, gasta-se material e a mulher pode ter uma infecção ou um desconforto. Quando se administra uma ocitocina fora de hora, o bebê pode sofrer. Isso não é fisiológico”, explica a diretora.
Longe de realizar esses procedimentos, a casa de parto também não contribui para o incremento de uma das estatísticas nacionais mais vergonhosas. “O Brasil é o segundo recordista em números de cesarianas. Isso é horrível”, lamenta Inaiá. “A cesariana é uma cirurgia de grande porte. Nada mudou. Você abre cavidade, manipula a medula, já que coloca medicação, e anestesia. Pode ocorrer uma série de problemas”.
Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), os motivos para o alto número de cesáreas no Brasil se devem ao modelo de organização das redes hospitalares, à forma de remuneração baseada na realização de procedimentos, ao predomínio da cultura médica intervencionista e às particularidades psicológicas e culturais das gestantes. É necessário esclarecer, diz Inaiá, que não se trata, entretanto, de uma “apologia contra a cesariana” em si, mas contra as que se sabe serem desnecessárias, que apressam o ciclo gestacional e o tempo natural do nascimento.
Mas, diante do cenário nacional, os indicadores e os números da Casa David Capistrano Filho surpreendem. São, em média, 350 atendimentos por mês, com apenas 10 transferências no mês de maio de 2023. Desde 2018, não há registro de casos de asfixia neonatal e o índice de infecção puerperal é zero. “Temos indicadores de primeiro mundo”, se orgulha Inaiá.
A qualidade do atendimento obstétrico é mensurável também pelo engajamento das mães e famílias que passam pela unidade. Na página do Instagram da Casa, são inúmeros os relatos e comentários de mulheres que saíram satisfeitas, se sentiram protegidas e resguardadas e, até mesmo por isso, voltam para serem acompanhadas e terem seus outros filhos no local.
Reconhecimento e reforma
Um episódio narrado por Inaiá também demonstra a boa reputação cultivada pela “casinha”. Ela lembra o caso de um rapaz, um homem trans, que veio se consultar com os profissionais da David Capistrano Filho. “Ele veio de Copacabana porque tinha medo de ser discriminado e ridicularizado. Então, nós conversamos e o acolhemos”, relembra.
Outra experiência de acolhimento foi presenciada por Radis quando esteve na unidade. No caso, uma gestante chegou à casa preocupada porque não estava sentindo nenhuma movimentação do bebê na barriga. Visivelmente abalada, a mulher procurou a unidade de surpresa, por recomendação e, por isso, sem consulta marcada. Mesmo assim, foi rapidamente atendida por uma das enfermeiras disponíveis, que checou os sinais vitais da criança e descobriu estar tudo bem.
“Costumo dizer que a casa é o sonho de consumo da maioria dos profissionais da enfermagem obstétrica”, comenta o enfermeiro Rodrigo. “Profissionais que zelam pela humanização da assistência — com indicadores obstétricos excepcionais, ou seja, excelência — querem vir para cá”.
Apesar de oferecer uma equipe preparada e alinhada a um protocolo humanizado, a casa ainda sofre com percalços estruturais e orçamentários. Inaiá menciona a reforma que está prevista e que pretende melhorar e ampliar a capacidade de assistência do espaço. “A obra está estruturada para acontecer em nove fases. Inclusive, já tem a planta para a reforma. O que funciona e vai ser reformado na primeira fase, na segunda e assim por diante”, explica.
Sem fechar a unidade enquanto as renovações acontecem, será possível dar prosseguimento ao trabalho que garante autonomia e fornece suporte e novas perspectivas às gestantes e seu círculo de apoio. “É como diz Michel Odent [referência no tema parto natural]: há de se mudar a forma de nascer”, menciona Inaiá, e parece que a casa de parto vem pavimentando o caminho dessas mudanças.
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