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Esta edição não traz boas notícias para quem defende que a Saúde esteja fora dos limites de investimento público estabelecidos pelo novo regime fiscal, apresentado pelo governo federal para substituir o teto de gastos. Depois que a Câmara dos Deputados rejeitou que o piso da enfermagem escapasse às regras, contrariando a proposta inicial, havia a expectativa de que o Senado tivesse mais sensibilidade com políticas sociais. Teve, mas não com a Saúde. 

A versão aprovada pelos senadores retirou do limite de despesas públicas apenas o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e Ciência, Tecnologia e Inovação — além do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF). Estaria, assim, o SUS sujeito a um novo teto, apenas mais alto? Quais as possibilidades reais de o financiamento do setor chegar aos 6% do Produto Interno Bruto (PIB), considerado por especialistas como fundamental para garantir direitos? 

O que é?

O Regime Fiscal Sustentável (PLP 93/2023), mais conhecido como arcabouço fiscal, fixa quanto o governo federal pode gastar a cada ano. O valor depende do cumprimento das metas de resultado primário (arrecadação menos despesas, descontados os pagamentos de juros da dívida pública) estabelecidas no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

Quando a União cumprir a meta, sua despesa não poderá crescer mais do que 70% da variação das receitas no ano seguinte; quando descumprir, a alta será limitada a 50% do crescimento da receita — há uma margem de tolerância para a definição do resultado primário, que é chamada de “banda”, de 0,25 ponto percentual para mais ou para menos. 

Essa regra está sujeita a outra, que assegura um crescimento mínimo dos gastos federais de 0,6% ao ano do PIB estimado no projeto da Lei Orçamentária Anual (LOA), mas também estipula um teto — de 2,5% ao ano. 

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Como fica a saúde?

“As duas regras combinadas trazem uma preocupação muito grande quanto à possibilidade de ampliação dos recursos para o SUS”, afirma o economista Francisco Funcia, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres) e consultor técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS). 

O também economista Carlos Octávio Ocké-Reis, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), tem avaliação semelhante: “De um lado, o novo marco fiscal promove avanços em relação ao teto de gastos, mas, de outro, recua, emprestando zelo fiscalista à política econômica, que diminui a possibilidade de abrir a galope um novo ciclo de desenvolvimento” [Leia a entrevista aqui].

Nos momentos em que o país registrar crescimento econômico, o arcabouço prevê aumento do investimento na saúde, acima do mínimo constitucional; quando não crescer, vai ao menos manter o mínimo constitucional. 

A Frente Pela Vida — que reúne a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a Rede Unida, entre outras organizações do setor — divulgou nota classificando as regras como “restritivas ao investimento público e como tal, um fator que dificulta a recomposição do orçamento da saúde”, em 27 de abril (Radis 248). Estendeu sua preocupação para as políticas de educação, ciência e tecnologia e direitos humanos, “intrinsecamente vinculadas à defesa da vida, bem-estar e proteção às pessoas”. A bandeira era que essas áreas ficassem fora dos cálculos do regime fiscal.

No texto apresentado pelos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, em 30 de março, o piso da enfermagem era exceção, o que aliviaria a Saúde em cerca de R$ 16 bilhões ao ano (considerando gastos federais e repasses a estados e municípios). O Fundeb, que financia a educação básica, também não estava incluído no arcabouço.

Câmara conservadora

O relator do marco fiscal na Câmara, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), retirou ambas as políticas da lista de exceções. Seu substitutivo foi aprovado pelo plenário da Câmara em 24 de maio, com 372 votos favoráveis e 108 votos contrários. “O deputado Cajado desconfigurou a redação original encaminhada pelo governo federal e tirou ainda mais margem para crescimento de despesas na área social”, aponta Funcia.

Para o economista, as possibilidades de mudança são bastante restritas dada a correlação de forças políticas da conjuntura: “A população brasileira, ao mesmo tempo em que votou em um presidente da República alinhado com propostas progressistas, votou em parlamentares que têm majoritariamente perfil conservador”, diz. Segundo ele, o novo arcabouço fiscal representa aquilo que está sendo possível negociar.

Sessão da Câmara dos Deputados aprova versão do arcabouço fiscal sem que nenhuma política seja exceção no regime fiscal; no Senado, passa versão que retira Fundeb e Ciência e Tecnologia das regras

A deputada federal Ana Pimentel (PT-MG), que criou a Frente Parlamentar em Defesa do Sistema Único de Saúde, em maio, relata à Radis que muitos deputados se envolveram diretamente na articulação para que Saúde e Educação não estivessem sob novo teto: “Nós, da Frente Parlamentar do SUS e da Frente pela Educação, fizemos a discussão para a retirada tanto do Fundeb como da Saúde dos limites do arcabouço fiscal. Nós nos movimentamos muito, junto aos movimentos da sociedade civil, como a Frente pela Vida. Mas havia uma maioria formada na Câmara dos Deputados que defendia não retirar nenhuma área dos limites de gastos. O relator desse projeto na Câmara, deputado Cláudio Cajado, foi muito contundente nesse sentido”.

A deputada, que é médica de família, em seu primeiro mandato, observa que a Câmara tem hoje um posicionamento mais conservador que o Senado. “É importante dizer que há deputados que estão levando as pautas da saúde coletiva e dos movimentos da Saúde, mas nossa posição foi minoritária”, lamenta [Leia a entrevista aqui].

“Nós, que defendemos os preceitos do Sistema Único de Saúde e que somos historicamente do movimento sanitário, queríamos mais para a saúde. Precisamos de mais financiamento para garantirmos, de fato, o direito à saúde para todos e todas com integralidade, equidade, regionalização e descentralização. Mas, diante da conjuntura, penso que o arcabouço é uma sinalização de melhora para o sistema de saúde no próximo período”, afirma a deputada.

Esperança no Senado

Quando Radis conversou com os entrevistados, havia a esperança de que os senadores revertessem as mudanças aprovadas pela Câmara. Na avaliação de Funcia, a volta à redação original abriria mais espaço fiscal para um conjunto de despesas necessárias e não representaria, em hipótese alguma, desequilíbrio das contas públicas.

O relatório do senador Omar Aziz (PSD-AM) retomou o Fundeb fora do arcabouço, como propôs inicialmente o governo, e surpreendeu ao tirar do limite de gastos despesas com Ciência, Tecnologia e Inovação. Mas o piso da enfermagem seguiu dentro do novo teto. Em 21 de maio, o Senado aprovou o texto por 57 votos a favor e 17 contrários, e o PLP 93/2023 retornou para análise na Câmara — onde aguardava ser votado quando esta edição foi fechada.

Fim do teto congelado

A pressão para aumentar o financiamento de políticas sociais no novo regime fiscal coexiste com o alívio pelo fim da validade da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que congelava as despesas públicas por 20 anos. “Desde a transição, houve uma preocupação do governo eleito de fazer um conjunto de articulações no Congresso para possibilitar uma readequação do orçamento de 2023. O projeto de lei orçamentária apresentado pelo governo passado previa um corte brutal de recursos da saúde para programas que já vinham sendo desenvolvidos. Na prática, significava fechar ou reduzir o atendimento de várias áreas”, lembra Funcia.

A PEC da Transição gerou um incremento para o SUS em torno de R$ 20 bilhões este ano, comparativamente a 2022. Uma de suas exigências era, justamente, a formulação de uma nova regra fiscal para 2024. Nesse meio tempo, o teto de gastos deixou de ter efeito. No caso da Saúde, voltou a vigorar o piso estabelecido pela Emenda Constitucional 86, de 2015, que obriga a União a aplicar pelo menos 15% da receita corrente líquida no setor — em 2022, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro aplicou 12% da receita corrente líquida.

Funcia ressalta que a regra que voltou a valer já vinha sendo questionada pelas organizações do setor, considerada insuficiente para cumprir e ampliar o cumprimento do que a Constituição define para a saúde — direito de todos e dever do Estado. “Neste momento, foi um ponto de partida”, admite. “Retomar a EC 86 até se pensar uma nova regra foi importante e revogar o teto congelado também foi muito importante”.

Ocké-Reis insere o regime fiscal no contexto de “uma estratégia defensiva”: parte constitutiva de um programa mínimo, que, a depender do acúmulo das forças democráticas e populares, viabilizará a passagem pelo labirinto conservador presente na conjuntura.

Sociedade foi às ruas protestar contra o teto de gastos, inicialmente chamado de PEC 241, e defender o investimento público, em especial na educação e na saúde

R$ 70 bi perdidos

Se 15% da receita corrente líquida eram insuficientes para financiar um SUS universal, integral e de qualidade, com o teto de gastos essa insuficiência se agravou a ponto de haver perdas concretas de recursos. Entre 2018 e 2022, estima-se uma perda de R$ 70 bilhões de financiamento federal para o sistema.

“O teto de gastos foi uma perversidade para o SUS”, analisa a deputada Ana Pimentel. “O SUS continuou existindo porque está institucionalizado, mas foi sendo completamente minado por dentro — políticas que eram estruturantes, como a de assistência farmacêutica, de HIV e infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), de saúde da mulher, de saúde mental, de atenção básica. Essas políticas seguiram existindo formalmente mas estavam desidratadas, deixaram de ser executáveis.” Ex-secretária de Saúde de Juiz de Fora (2021-2022), ela afirma que o ônus político recaiu sobre as prefeituras, responsáveis pela execução das políticas: “Eu não conseguia executar políticas que existiam formalmente”.

Durante a pandemia, a deputada destaca, o cenário foi ainda mais dramático. Uma parte dos recursos para lidar com a covid-19 veio de fora do orçamento da Saúde, mas contabilizava para o orçamento da Saúde. O efeito prático foi que muitas políticas deixaram de existir nos anos da pandemia: “Por isso as filas que temos hoje”.

Reposição das perdas

Funcia acredita que o projeto, tal como está, inviabiliza ampliar o financiamento do SUS além do valor de seu piso (recursos mínimos) e repor as perdas dos últimos anos, o que implica na manutenção do status de subfinanciamento. Esse cenário afetaria ainda mais a saúde do povo brasileiro diante das consequências da pandemia, que reprimiu a demanda e deixou sequelas na saúde — ainda não totalmente conhecidas, diagnosticadas e dimensionadas.

“Seria fundamental que o plano plurianual 2024-2027, também em discussão, incluísse o compromisso de aumentar as despesas com saúde para além do piso constitucional até recompor os R$ 70 bilhões perdidos pelo setor”, defende o economista, que sugere um acréscimo de cerca de R$ 16 bilhões ao ano para a reestruturação do SUS, “abalado pelas políticas adotadas no governo anterior”.

Saúde não é gasto

A discussão sobre o financiamento do setor não deve estar isolada do debate sobre a política econômica do país, afirmam os especialistas ouvidos por Radis. Para a deputada Ana Pimentel, além dos efeitos mais práticos no cotidiano do SUS, o teto de gastos disseminou uma concepção política de que o governo deve limitar o que pode ser investido em Saúde: “Essa é a pior mensagem que podemos passar para a população, principalmente no contexto de pandemia e pós-pandemia, em que temos demanda maior por serviços”.

Francisco Funcia, da Abres, aponta como erro a leitura linear de que todo aumento de despesas públicas é ruim. A Saúde é um exemplo dado por ele de política que gera melhoria das condições de vida da população ao mesmo tempo em que tem forte efeito multiplicador na economia. “Em uma dinâmica econômica baixa como a que estamos vivendo, o país pode cortar despesas e entrar em um ciclo vicioso de baixo crescimento econômico; ou estimular gastos públicos em áreas sociais, especialmente a Saúde, e gerar um efeito multiplicador muito grande para o conjunto da atividade econômica”, pondera.

Carlos Ocké-Reis, do Ipea, engrossa o coro de que o financiamento adequado do SUS permite inscrever o setor no centro de um modelo de desenvolvimento, marcado pelo crescimento econômico inclusivo e sustentável — além de ser condição necessária para a garantia do direito universal, integral e igualitário à saúde. A bandeira levantada pelo setor, portanto, é que Saúde não seja vista como gasto, e sim como investimento.

— Foto: Ascom / UFAL.

“Essa é a pior mensagem que podemos passar para a população, principalmente no contexto de pandemia e pós-pandemia, em que temos demanda maior por serviços.”

Na Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde, realizada em agosto de 2022, em São Paulo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, à época candidato ao posto, afirmou que era preciso tirar a palavra “gasto” do dicionário quando se trata de Saúde e Educação. “A gente tem que avaliar quanto custa para um país uma pessoa saudável, uma pessoa podendo trabalhar a semana inteira, podendo fazer esporte, podendo brincar, podendo correr. A capacidade produtiva e intelectual cresce muito e melhora a capacidade produtiva do país. O país ganha com isso”, disse Lula, se comprometendo com o fim do teto de gastos.

Funcia explica que, além de melhorar os indicadores clínicos e epidemiológicos da população, a política de saúde pode, a um só tempo, combater o desemprego (uma vez que é intensiva em força de trabalho) e a desigualdade (uma vez que é desconcentradora de renda), contribuindo para o crescimento econômico e para a competitividade internacional (inovação tecnológica de alto valor agregado), em novo ciclo de desenvolvimento inclusivo com sustentabilidade ambiental.

Décadas de subfinanciamento

As organizações do setor denunciam décadas de esvaziamento do orçamento da seguridade social e convivência com regras instáveis e insuficientes de financiamento. Em 2012, o movimento popular Saúde Mais Dez, liderado pelo Conselho Nacional de Saúde, reivindicava o repasse de 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde pública brasileira. Sem sucesso.

Há quem pense que melhor gestão, e não mais dinheiro, seria a solução para o SUS. “A rigor, a ‘eficiência’ aparece como panaceia administrativa, que acaba servindo para reforçar a ideia de que os problemas do SUS resultam da falsa dicotomia entre financiamento e gestão — quando é plausível admitir que boa parte de seus problemas de gestão tenham decorrido em razão de um quadro de restrição orçamentária”, comenta Ocké-Reis, que organizou o livro SUS: Avaliação da Eficiência do Gasto Público em Saúde, lançado em abril de 2023, pelo Ipea em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS).

O debate sobre eficiência, para ele, é de relevância pública e pode auxiliar na formulação, execução e avaliação das políticas de saúde. Mas o economista ressalta que não basta pensar em ser mais eficiente (fazer de modo econômico), é preciso também pensar em ser mais eficaz e mais efetivo (fazer de modo resolutivo o que é necessário e ético), para garantir uma saúde pública de qualidade para as famílias brasileiras, afirmando o direito social à saúde da Constituição de 1988. “Na Saúde, em termos conceituais, a eficiência deve ser cotejada com a eficácia e a efetividade. Em outras palavras, não basta ser eficiente, se os indicadores e os desfechos das condições clínicas e epidemiológicas não são melhoradas, tampouco se as necessidades de saúde e de assistência médica da população não são atendidas.”

O economista também diz não ser possível descartar a priori a ideia de que pode ser preciso gastar mais para se gastar bem: “A busca da eficiência em direção à eficácia e efetividade pode, na realidade, significar e exigir o aumento dos investimentos públicos.”

O gasto total com Saúde no Brasil foi equivalente a 9,6% do PIB, em 2019, próximo ao de países que também contam com acesso universal como Canadá (10,8%), Reino Unido (10,2%), Portugal (9,5%) e Espanha (9,1%), e acima da média da Europa (8,6%), segundo dados da Organização Mundial da Saúde. A diferença é que, aqui, menos da metade desse total — 42% ou apenas 3,9% do PIB — foram de gastos públicos (soma das três esferas de governo). Nesses outros países, os governos responderam por cerca de 70% a 80%, em média, do gasto total. 

A Abres e outras organizações do setor, capitaneadas pela Frente pela Vida, indicam ser fundamental para a sustentabilidade do SUS que o orçamento público (municipal, estadual e federal) alcance no mínimo 6% do PIB nos próximos anos, sendo o federal ao menos 3% do PIB, e que a exemplo dos países desenvolvidos com sistemas universais o gasto público represente pelo menos 60% do gasto total com Saúde no país.


Saiba mais

Livro SUS: Avaliação da Eficiência do Gasto Público em Saúde
https://bit.ly/3XS7kQT

Proposta de Nova Política de Financiamento do SUS da Abres
https://bit.ly/3DaI52C


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