Júlia tinha 13 ou 14 anos quando encontrou a gatinha Fudência na estrada. Ela estava viajando em uma bicicleta a motor e, pelo retrovisor, viu algo se mexendo no meio do mato. Parou, curiosa. Por entre as folhas, saiu aquele ser indefeso, pequeno, andando meio de lado. Foi assim que o bichinho entrou em sua vida e permaneceu por cerca de 13 anos. A gatinha morreu pouco depois que Júlia se matou, no dia 24 de fevereiro de 2018, aos 27 anos. Um mês antes, ela havia adotado a Sem Nome em um petshop, uma gata branca que agora é a companhia de sua mãe, Lígia Mastrangelo, no apartamento em que as duas moravam na zona oeste do Rio de Janeiro. Foram quatros gatos que passaram na vida de Júlia: Black, Fudência, Pin e Sem Nome. Com essa última foi amor à primeira vista, como conta a mãe: ao adotá-la, ela brincou que era o “primeiro amor de 2018”. Lígia conversou sobre Júlia com a gente por mais de uma hora, em seu apartamento, e em diversos momentos repetiu a frase: “Você teria gostado de conhecer a Júlia. Ela era uma pessoa incrível”. Seu relato revela que a filha que ela amava e ainda ama é muito mais do que a forma como decidiu morrer. “O suicídio não resume a pessoa que ela foi. Eu vejo muito mais do que isso”, conta. Por isso, desde o início, Lígia quis falar sobre o assunto, conversar com as amigas de Júlia que também sentiam sua morte, escrever em sua página no Facebook, “desaguar” a sua história. “Tem horas que não tem o que fazer a não ser botar um pouco pra fora. E se você não está num ambiente acolhedor, você não consegue fazer isso”, aponta.
Não existem verdades absolutas, existem apenas a experiência e a percepção de cada um: é assim que Lígia descreve o seu modo de encarar tudo o que passou. Quando se depara com campanhas de prevenção ao suicídio que afirmam que 90% dessas mortes poderiam ser prevenidas, ela questiona que esse dado pode gerar um sentimento de culpa nas pessoas próximas a quem se matou: por que, no meu caso, não consegui evitar? Por isso ela acredita que cada história é particular e, em algumas delas, mesmo com todas as formas de cuidado, ainda assim não é possível evitar a morte. “Eu sabia que ela tinha depressão. Ela se tratava desde os 15 anos de idade. Dos 15 aos 27, ela tentou o suicídio três vezes. A terceira tentativa ela fez aqui dentro de casa”, narra. A mãe costuma usar a expressão “morrência” para descrever esse processo de dor e sofrimento mental pelo qual a filha passou. “O ato, o momento em que é tirado a vida, é só uma continuação de toda uma morte que a pessoa vai tendo durante anos”, afirma.
Lígia é considerada uma sobrevivente ao suicídio, expressão que se refere tanto a quem sobreviveu a uma tentativa quanto a familiares, amigos ou pessoas próximas de quem se matou. As ações de saúde, cuidado e apoio voltadas para essas pessoas estão no campo chamado de “pósvenção”. “Passar por isso não é fácil, nem o que ela passou, nem o que eu estou passando. E sei que, assim como eu e ela, milhares de pessoas estão passando por isso nesse mesmo instante”, reflete.
Entre 2007 e 2016, o Brasil registrou 106.374 mortes por suicídio, de acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Ministério da Saúde (20/9) — em 2016, a taxa brasileira de suicídio chegou a 5,8 por 100 mil habitantes e representou uma alta em relação ao ano anterior (5,7), tendência observada desde 2011. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio provoca a morte de uma pessoa a cada 40 segundos no mundo, o que exige que seja encarado como um grave problema de saúde pública. Mesmo que o assunto seja complexo e nem todas as mortes possam ser prevenidas, ações de prevenção e de cuidado com aqueles que ficam têm um papel estratégico para evitar novos casos.
Porém, ainda é preciso vencer o tabu com o qual o assunto geralmente é tratado. De acordo com a OMS, o estigma em relação ao tema do suicídio impede a procura de ajuda, que pode evitar mortes. Em seu caso particular, Lígia entendeu, desde o início, que falar sobre o assunto iria ajudá-la a “sobreviver”. “Parece realmente que as pessoas têm medo de falar, como se fosse contagioso, como se fosse ‘atrair’”, desabafa. Segundo ela, fingir que nada aconteceu é deixar a filha “morrer de novo”. “Eu não tenho vergonha do que ela fez e nem vergonha de falar sobre isso. Ela tinha tratamento, amor, religião, atividade. Ela trabalhava, saía, surfava. Ela era linda, inteligente, competente. E eu não consigo imaginar qual foi a dor que ela sentiu naquele momento para ela tomar aquela decisão. Deve ter sido alguma coisa absurda, desesperadora”, considera.
Uma semana antes de sua morte, a mãe foi acionada por uma amiga da filha, que contou que ela estava “muito mal” andando pela praia. “A gente estava vindo de uma semana difícil, em que ela tinha finalmente pedido ajuda, tinha pedido para ser internada”, relembra. Depois desse episódio, um turbilhão de acontecimentos: procura de psiquiatra, busca por uma clínica, desistência, nova procura. Lígia conta que a filha alternava momentos em que dizia que estava bem e outros em que se fechava. Até que no sábado em que haviam combinado de passarem o dia juntas, Júlia avisou à mãe que ficaria em casa — e horas depois, ocorreu o suicídio. “Se alguém disser ‘Eu vou morrer, eu quero me matar’, não pense que ele está falando para chamar a atenção. Minha filha falou, pediu, eu fiz tudo que podia”, afirma Lígia. Para ela não existe culpado, nem raiva — apenas amor. “Eu como mãe de uma suicida só posso respeitar e me esforçar muito para tentar entender. Com muita dor. Com muita saudade, mas sempre tentando entender e aceitar”, escreveu em um depoimento no facebook.
“Eu não tenho raiva do que ela fez. Eu nunca desmaiei, não fiquei sem sentido ou fora de mim. Eu preferi tratar tudo isso de forma consciente”, conta. Mas ela considera que cada experiência é única e é preciso respeitar as formas e o tempo de luto de cada um. “Estava me preparando para Júlia sair de casa, porque ela me dizia que o apartamento já estava ficando pequeno para a prancha de surfe e o equipamento de trabalho”, recorda. “Eu não tive uma pendência com a Júlia. Nunca pensei: ‘Se eu tivesse dito mais vezes que a amava…’. Ela sabia exatamente que eu a amava. O que a gente tem que aprender agora é como viver sem ela.”
“O suicídio gera interrogações sobre a existência humana”
Mariana Bteshe, psicóloga e professora da Uerj
Mesmo que sempre se queira entender os porquês, o suicídio é um fenômeno complexo para o qual não existem respostas simples. Deve ser encarado como questão de saúde pública, como defende Carlos Felipe d’Oliveira, médico psicoterapeuta que trabalha há mais de 20 anos com o assunto. Carlos ressalta que é preciso romper com uma visão simplista sobre o fenômeno e lembra que ele é determinado por múltiplas causas. “O suicídio depende da interação de um conjunto de fatores de risco e de proteção. Nós estamos lidando com um fenômeno complexo que tem ações previsíveis e ao acaso também”, explica. Segundo ele, é uma questão que fala do sofrimento humano. [Leia entrevista completa clicando aqui]
Quando ocorre, ele não afeta apenas a pessoa que se matou, mas todos aqueles ao seu redor. Para Mariana Bteshe, psicóloga e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a morte pelo suicídio é um ato violento que causa comoção e toca as pessoas. “O suicídio traz muitas interrogações sobre a vida e a existência humana. Faz você questionar seus valores, o modo como você lida com as pessoas, se você presta atenção quando alguém está triste e some da sua vida”, analisa.
Ela também enfatiza que o fenômeno envolve inúmeras causas e fatores, mas que podem ocorrer acontecimentos do dia a dia que atuam como um gatilho. “Existem alguns fatores que podem ser precipitantes, como um término, uma separação, a perda de um parente próximo, crise financeira, desemprego. Situações de perdas da vida que seriam mais ou menos comuns, mas que podem atuar como um gatilho para um ato que é de desesperança total”, reflete.
Embora cada caso tenha suas particularidades, Mariana aponta que o suicídio envolve geralmente um processo de dor ou sofrimento mental. “A pessoa que começa a pensar em tirar sua própria vida está vivendo um momento de total desesperança. Ela se vê sem saída. A frase que a gente escuta muito na clínica é essa: ‘Estou sem saída’”, comenta.
O fenômeno já foi encarado sob diferentes olhares — da filosofia, sociologia, religião, psicologia, entre outras visões. Já foi estudado por pensadores como o alemão Karl Marx ou pelo francês Émile Durkheim, ainda no século 19. “Durkheim, por exemplo, discutiu os aspectos que estão ligados à anomia social, o fato de se estar dentro de um grupo social em que você não tem voz, não é reconhecido, em que você não tem direitos. Esse é um fator de risco importante para as tentativas de suicídio”, esclarece.
Para entender a questão e atuar com ações de prevenção, a saúde coletiva desenvolveu modelos sobre o chamado comportamento suicida. De acordo com Mariana, são observadas características ou sinais que vão desde a ideação, que envolve ideias de morte ou a vontade de morrer, passam pelo planejamento de fato e chegam até as tentativas ou o ato concretizado. “Esse modelo de compreensão é adotado pelos profissionais de saúde que atuam no cuidado, para tentar avaliar minimamente qual é o risco e a gravidade de cada caso”, pontua. Além da ideação suicida, os riscos são avaliados a partir de uma combinação de fatores, como tentativas e acesso aos meios. “Se a pessoa já tentou algumas vezes, tem uma profissão ou ocupação na qual dispõe de acesso aos meios, como policiais que têm acesso à arma, médicos e enfermeiros com medicamentos, isso vai aumentando a gravidade do caso. Não significa que todos os casos apresentam um comportamento suicida, mas a gente consegue identificar esse crescente”, completa.
A tentativa prévia é o fator de risco mais importante para o suicídio na população em geral, de acordo com a OMS. Entre 2011 e 2016, foram registrados 48.204 casos de tentativas de suicídio no Brasil, 69% em mulheres e 31% em homens, segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 2017 — em ambos os sexos, a faixa etária que concentra o maior número de tentativas vai de 10 a 39 anos. Esses casos abrangem apenas aqueles que foram captados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
Porém, a taxa de suicídio é cerca de quatro vezes maior na população masculina do que na feminina: entre os homens brasileiros, é de 8,7 por 100 mil habitantes; e em mulheres, de 2,4 por 100 mil, em 2015, segundo o Ministério da Saúde. Já em relação ao comportamento suicida, o estudo epidemiológico mais conhecido no Brasil sobre o tema foi realizado em Campinas (SP), coordenado pelo professor Neury Botega, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa pesquisa revelou que 17,1% das pessoas já pensaram em se matar em algum momento, 4,8% chegaram a elaborar um plano para isso e 2,8% efetivamente tentaram se suicidar.
“Ninguém quer morrer, as pessoas querem matar a dor“
Patricia Fanteza, voluntártia do CVV
Quebrar tabus
Quando um caso de tentativa de suicídio chega às emergências médicas, a preocupação imediata é salvar a vida daquela pessoa — mas é preciso também pensar no depois, em como oferecer uma rede de apoio para evitar uma nova tentativa. Segundo Mariana Bteshe, cabe à equipe de saúde tentar investigar como a pessoa chegou naquela situação. “Se algo apontar para uma tentativa de suicídio, tem que pensar como traçar com ela e com a família um encaminhamento, seja para a atenção primária, seja para um serviço de saúde mental. É muito importante a família, amigos ou alguma pessoa da rede social estar presente, porque a gente não sabe se a pessoa sozinha terá condições de procurar essa ajuda”, explica. Também é preciso vencer os preconceitos e os estigmas que culpam e menosprezam aquele que tentou se matar Superar os tabus em torno do tema é também um caminho para ampliar as estratégias de prevenção. “Como o suicídio também é uma questão de saúde mental, carrega os tabus e os mitos relacionados aos transtornos mentais e seus preconceitos”, afirma Carlos Felipe. Mariana também enfatiza que existe uma correlação da maior parte dos casos com alguma questão de saúde mental, como depressão, transtorno bipolar, uso abusivo de álcool e drogas, entre outros, dado também apontado pela OMS. “Quando a OMS chama a atenção de que o suicídio é uma questão de saúde pública, começa-se a perceber que uma parcela considerável dos casos pode ser prevenida. Isso não quer dizer que o suicídio seja evitável, mas existe uma parcela em que a gente poderia atuar para prevenir, pois haveria algum transtorno mental associado”, esclarece. Segundo a psicóloga, as ações começam por entender porque essas pessoas não chegam aos serviços de saúde e passam pela organização do sistema público para acolher e cuidar.
Mariana concluiu uma pesquisa de doutorado, em 2013, na Fiocruz, sobre narrativas e práticas de comunicação em torno dos cuidados nas tentativas de suicídio. Atualmente, ela atua no Programa de Apoio Psicopedagógico ao Estudante (Pape) da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj. Segundo ela, desde os anos 2000, a OMS recomenda que o assunto seja debatido de maneira responsável, mas somente nos últimos anos ele começou a despertar o interesse da mídia — seja pela mobilização de campanhas, como o Setembro Amarelo, ou pela repercussão de séries e programas de TV, como “13 Reasons Why” (13 Porquês), da Netflix, que aborda o suicídio de uma adolescente. “O ganho que se tem falando publicamente, de maneira responsável, é maior do que não falar. A gente tem que falar, mas não de qualquer jeito. Principalmente para a mídia, essa diferença é importante”, avalia.
O assunto já foi considerado um “interdito” nos jornais: quando a causa da morte era o suicídio, em geral recomendava-se omitir a informação. Porém, desde 2000, a OMS oferece um manual de orientações para os profissionais da mídia sobre como abordar o tema. Segundo a organização, a abordagem de forma apropriada e cuidadosa pode prevenir outras mortes. Uma das preocupações é com o chamado efeito de imitação, em que um suicídio pode servir de estímulo para outros. Entre as recomendações para abordar o assunto, encontra-se não atribuir culpas, não informar detalhes específicos sobre métodos, não usar estereótipos religiosos ou culturais e não fornecer explicações simplistas.
Informação correta sobre o assunto é também um caminho que leva as pessoas a procurar ajuda. “O primeiro passo é que as pessoas percebam que, no momento de dificuldade, elas devem sim buscar ajuda e isso não é um sinal de fraqueza e sim de força”, destaca Patrícia Fanteza, porta-voz e voluntária do Centro de Valorização da Vida (CVV), organização que trabalha há 55 anos com prevenção ao suicídio. A instituição oferece um serviço de telefone (pelo número 188), em que as pessoas podem ligar para conversar e desabafar sobre suicídio. A ligação é gratuita e respeita o sigilo e o anonimato. “Quando se expõe o assunto de maneira responsável e consciente, tem-se a possibilidade de trabalhar a prevenção e trazer informações para uma pessoa precisando de ajuda”, completa.
Patrícia ressalta que é preciso entender o sofrimento que leva uma pessoa a não querer mais viver. “Para chegar a ponto de dizer que nada mais faz sentido, a pessoa passou por um processo de sofrimento. Ninguém quer morrer, as pessoas querem matar a dor”, conta. Ela também pontua que é necessário superar alguns estigmas relacionados ao tema. “Quando a OMS fala que 9 em cada 10 casos de suicídio poderiam ser prevenidos, não evitados, é porque já é constatado que a maior parte dos suicídios está relacionada à alguma questão de saúde mental”, acrescenta. Porém, essa visão não pode reduzir o problema, contribuindo para a ideia de que toda pessoa que tenta tirar a própria vida sofre de depressão, ou que toda pessoa com depressão tem o risco de se matar. A voluntária pondera que somente um profissional de saúde especializado, como médico psiquiatra, psicoterapeuta ou psicólogo, pode avaliar a necessidade de tratamento por um serviço de saúde mental.
O Setembro Amarelo, campanha de conscientização sobre a prevenção do suicídio, busca chamar atenção para alguns sinais de alerta que podem indicar que a pessoa está vivenciando um processo de sofrimento e desejando a morte. Frases como “Vou deixar vocês em paz”, “Eu queria poder dormir e nunca mais acordar” ou “É inútil tentar mudar, eu só queria morrer” são indicativos de um momento de desesperança e apontam para a urgência de oferecer ajuda. “É importante que haja essa sensibilidade de acolhimento, em perceber que aquela pessoa está numa fragilidade extrema e o que ela precisa é se sentir acolhida e valorizada, até para que possa perceber algum sentido em sua vida”, reflete Patrícia. O isolamento social é outro fator que pode representar um risco, em decorrência da perda de vínculo ou de relações. “As pessoas costumam pensar que quem diz não faz. Mentira. Quem diz, faz. Algumas podem falar claramente, outras podem falar através de atitudes, às vezes não vão verbalizar, mas podem mostrar outros sinais”, pondera.
Porém, quando se fala em observar os sinais, Patrícia enfatiza que é preciso tomar cuidado para não encontrar “vilões”, como se a culpa fosse do familiar ou amigo que não teria percebido. “Existem questões que fogem ao nosso controle e a gente precisa também aceitar essas situações. Não existem culpas. A gente não pode responsabilizar os outros pela atitude de alguém”, comenta. Quando se trata de suicídio, geralmente aquilo que aparece é somente a “ponta do iceberg”, pois existem questões e sofrimentos vividos pelo outro que desconhecemos, como ela ressalta.
Ela própria viveu uma história de suicídio em família. Seu pai, um homem “maravilhoso, mas muito fechado, dentro daquele padrão de que o homem é o provedor”, tirou a própria vida. Na ocasião, ele tentou ligar para dois irmãos, Patrícia conta, mas não encontrou quem o ouvisse. “Eu conheço a culpa pelo lado de dentro e aprender a lidar com isso não é fácil. Eu mesma tinha muita vergonha de falar, com aquela sensação de o que vão achar de mim”, descreve, e acrescenta que no início afirmava que seu pai havia morrido de enfarte. Quando ela mesma se sentiu só e ligou para o CVV, compreendeu que poderia ajudar outras pessoas, e há 20 anos atua na instituição. “A essência do trabalho é voluntário. É um espaço de escuta, que busca acolher com gentileza e cuidado qualquer coisa que o outro sinta, num mundo que quer ditar o que os outros devem sentir”, aponta.
Ouvir o outro ainda é um desafio para uma sociedade em que cada um acha que seu problema é maior do que o dos demais, reflete Patrícia. “Muitas pessoas não experimentam o poder do desabafo em suas relações ao redor. Quando elas buscam os meios certos de encontrar ajuda e falam, às vezes elas conseguem reposicionar um problema ou uma angústia, aliviar, redimensionar”, esclarece. Espaços de escuta também são essenciais para os sobreviventes, que incluem tanto aqueles que já fizeram alguma tentativa ou quem teve alguma pessoa próxima que se matou. Além das ações de prevenção, o CVV também desenvolve Grupos de Apoio aos Sobreviventes de Suicídio (GASS), que funcionam em cidades como São Paulo, Recife, Cuiabá e Rio de Janeiro. “Muitas vezes a pessoa enlutada pelo suicídio lida com a saudade, a perda, e com sentimentos contraditórios, como vergonha, culpa e raiva”, conclui, lembrando que o luto é um processo individual e que cada um tem seu tempo.
“É preciso que existam espaços de escuta”
Alessandra Xavier, psicóloga e professora da Uece
Até onde é possível prevenir ou até onde lidamos com o imponderável? Essa é uma questão complexa quando se trata do sofrimento humano, que atravessa vários processos, como afirma Alessandra Xavier, psicóloga e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Ela chama atenção para que os serviços de saúde estejam atentos aos cuidados em relação ao suicídio, não somente nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mas também na Estratégia de Saúde da Família, que lida diretamente com o dia a dia das pessoas. E também diz que, por conta do preconceito e da falta de preparo, ainda há um enorme desafio para acolher quem vivencia um sofrimento mental e pensa em se matar. “O sofrimento psíquico não é observado com a mesma seriedade de outros fenômenos. Uma pessoa que está no risco de suicídio é como uma parada cardíaca. A intervenção tem que ser muito rápida”, aponta.
Ela explica que a dor mental também pode ser sentida fisicamente. “A pessoa pode relatar que está sem dormir, perda de apetite, e a investigação muitas vezes não é feita de forma correta, porque não se conversa com as pessoas para saber como é a sua vida”, ressalta em relação aos serviços de saúde. No cenário do SUS, ela lista uma série de impasses que se colocam para com os cuidados em relação ao suicídio, que incluem a pouca quantidade de profissionais, a precarização da saúde mental e do CAPS, a falta de investimentos para que a rede psicossocial funcione de maneira efetiva e o congelamento das verbas da saúde pública por 20 anos. “Saúde mental nem é uma prioridade de investimentos e nem se considera a necessidade de toda essa gama de ações para que as pessoas desenvolvam bem os seus recursos e suas potencialidades”, afirma.
Nos casos individuais, é preciso reconhecer a complexidade das questões envolvidas. “Conheço muitos pais que tentaram muito, providenciaram toda a rede de apoio, que foram muito atentos, que procuraram bons profissionais, mas que mesmo assim não conseguiram sustentar a vida”, relata. Entre os fatores envolvidos, podem estar dor emocional, desesperança, perda de conectividade, imitação e acesso aos meios letais. “Hoje a gente tem mais de 200 mil vídeos na internet relacionados à exposição de casos de suicídio e dicas de como se matar. Sem falar que os meios são muito acessíveis, como remédios, pesticida e armas de fogo”, destaca. Ela também pontua que políticas de incentivo ao armamento são potencializadoras de aumentar os índices de suicídio, pois facilitam o acesso aos meios.
Em relação ao sofrimento emocional, Alessandra ressalta que essa é uma dor que “dói de dentro”. Ela pode estar associada a perdas ou vivências, que afetam a capacidade do indivíduo de usar os recursos de defesa para lidar com aquela situação. “O suicídio sempre diz de alguém que vive um sofrimento intenso, constante, avassalador, e que transborda tanto sua capacidade de esperança quanto de usar seus recursos internos para conseguir se proteger e encontrar saídas”, acrescenta. A psicóloga afirma ainda que a sociedade contemporânea oferece mecanismos “externos” para lidar com o sofrimento, como uso de álcool e drogas e consumismo. Para encarar o assunto do suicídio, ela afirma que devemos levar em conta tanto questões individuais como sociais. “Esse sistema econômico de exploração e incentivo ao consumo, de excesso, em que as pessoas estão sempre se deparando com níveis de idealizações impossíveis de serem atingidos, provoca constantemente sensação de mal-estar e fracasso consigo, em que você tende a querer ser realmente alguém que você não é”, analisa.
Cuidar dos sobreviventes
Os sobreviventes — pessoas que fizeram tentativas e aqueles que viveram a morte de alguém próximo — devem receber atenção especial, recomenda a própria OMS. Como constata Mariana Bteshe, algumas pessoas descrevem o suicídio de um familiar como “um tsunami” em sua vida, em que são levadas a repensar sua relação com aquela pessoa e com a sua própria existência. “Num primeiro momento, a gente vê as pessoas se fecharem, para tentar entender o que aconteceu, tentar elaborar de alguma forma aquela perda, mas é importante que existam espaços de troca”, comenta. Ela cita que os serviços de saúde devem se preocupar em oferecer espaços como grupos de pessoas que passaram pelo luto, para que elas possam falar sobre isso, e construir narrativas sobre “algo que muitas vezes não tem explicação”.
Para Mariana, o campo da comunicação tem o papel de construir um olhar mais cuidadoso e contribuir para a existência de espaços em que as pessoas, principalmente os chamados sobreviventes, sintam-se mais confortáveis para falar. “Por muito tempo, a pessoa que perde alguém próximo não consegue encontrar um interlocutor, um amigo ou alguém da família, para que possa chorar ou falar sobre isso. As pessoas ficam tão aterrorizadas que não querem falar porque incomoda, causa angústia”, aponta.
Com isso, os sobreviventes ficam sozinhos sem ter com quem dividir, o que dificulta que o acontecimento seja assimilado e o luto vivido. Esse tabu é ainda mais grave porque, como lembra a psicóloga, o luto do suicídio pode ser mais difícil de ser elaborado. Isso vale tanto para as famílias, quanto para suicídios que ocorrem com colegas de escola ou de trabalho. “É muito importante sentar e conversar com as pessoas sobre o que aconteceu. Se não puder ser em grupo, pelo menos individualmente. Não pode simplesmente esquecer e continuar a vida, achar que aquilo era um problema pessoal daquela pessoa que se matou e não tocar nisso. Em algum momento tem que ser falado”, conclui.
Também Carlos Felipe destaca que não existem planos de prevenção ao suicídio que não incluam a “pósvenção”. Encontros e grupos de sobreviventes e pessoas enlutadas são alguns caminhos. Também os cuidados após as tentativas são essenciais para preservar a vida e, segundo o médico, devem envolver um “encaminhamento qualificado”, que não significa apenas dizer “procure um serviço”, mas já agendar e mostrar o caminho. “Os casos de tentativas entram nas emergências. Se não houver nenhum tipo de tratamento ou se nada mudar em sua realidade, o que vai acontecer? Ele vai continuar com seu sofrimento e fazer uma nova tentativa”, avalia. Segundo Alessandra, “suicídio não é somente questão de CAPS” e é preciso organizar os fluxos de cuidado para além da saúde mental. “É extremamente necessário que os profissionais da Atenção Básica estejam preparados, com destaque para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS). É importante que exista um fluxo para que o paciente que fez uma tentativa só saia do hospital quando estiver inserido em um projeto terapêutico singular”, destaca.
Idosos, adolescentes e contexto social
Dois grupos etários que merecem atenção, segundo Alessandra, pela singularidade do momento em que vivem, são os adolescentes e os idosos. “Os adolescentes estão num momento em que precisam encontrar o seu lugar no mundo. São sujeitos em desenvolvimento e necessitam de suporte para construir recursos de autonomia”, explica. Segundo a psicóloga, todo processo de crescimento envolve certa agressividade: contra os pais, a escola e mesmo os amigos. Nesse cenário, as minorias são ainda mais vulneráveis. Ela lembra que os adolescentes LGBTs têm 33% mais risco de suicídio do que os demais, o que tem a ver com uma questão de aceitação social.
“Infelizmente as escolas não estão preparadas para trabalhar com o sentido de pertencimento, a relação com o corpo e com a vida”, reflete. Alessandra desenvolveu em seu doutorado na Espanha um protocolo de prevenção ao suicídio de adolescentes em alto risco e atualmente também integra um projeto do Ministério Público do Ceará sobre suicídio, chamado “Vidas Preservadas”.
Segundo ela, nas escolas não é comum a realização de rodas de conversa sobre questões emocionais e temas como ciúme, sentimentos e problemas da vida; e chama atenção a necessidade de cuidados em saúde mental tanto de professores e funcionários quanto de estudantes. No polo oposto, a velhice também gera preocupação, pois é uma fase da vida em que a pessoa pode se sentir desamparada e sem lugar no mundo, dado a ausência de políticas públicas para essas pessoas.
O contexto social de crise também tem reflexos sobre a questão do suicídio. “Todas as expectativas que são jogadas para os adolescentes, em um contexto de desesperança e falta de projetos, vão interferir de forma nefasta sobre sua vida”, completa. O risco de aumento de casos de suicídio se dá por fatores diversos, como desemprego, falta de vínculos sociais protetivos, aumento do estresse e da depressão. “O Brasil é o 8º país do mundo em números absolutos. Isso diz de um país em que as pessoas estão sofrendo muito, sentindo-se desamparadas e sem uma rede de apoio eficaz”, conclui.
“Sobrevivi e estou aqui para contar”
Victor Portavales, sobrevivente e psicólogo
“Um homem branco bem vestido atira-se na linha do metrô. Ainda vivo, é retirado e sua mochila é vasculhada. Cogita-se que ele teria perdido o emprego. Busca-se então as causas. Descobre-se que não. Ele é bem sucedido financeiramente, tem casa, tem família, estuda, é psicólogo. O que o teria levado até lá?” Esse relato compõe um artigo escrito por Victor Portavales Silva, psicólogo e mestrando de Psicologia Social na Uerj.
Mais do que um estudo de caso, o depoimento revela uma história vivida, em 2017, por ele mesmo, um sobrevivente do suicídio. Ele conta que ocorreu em um período em que entrou num “ritmo desenfreado, meio frenético”, pois havia terminado a graduação, começado o mestrado e ainda concluía uma especialização. “Chegou num ponto de achar que não tinha mais como levar à frente o mestrado e achava que, se eu não conseguisse fazer, era uma questão de vida ou morte”, narra.
Foi então que aconteceu no dia 2 de agosto de 2017: ele se atirou na linha do metrô, no Rio. “Não tinha nenhuma esperança de sobreviver, achava que seria um método completamente letal”. Quando acordou, estava no CTI de um hospital, havia tido a perna esquerda amputada e não conseguia falar, por estar sedado e entubado. Como relata, uma dúvida não saía de sua cabeça: “Eu tinha morrido? O que tinha acontecido?”
Victor foi resgatado pelo Corpo de Bombeiros e levado à emergência do Hospital Souza Aguiar, no Rio. Durante a internação, aumentava a sensação de solidão e afastamento da realidade e a dúvida se as pessoas sabiam ou não que ele não havia sofrido um acidente, e sim havia tentado tirar a própria vida. Até que a mãe disse, um dia, em seu ouvido: “Por que você está mentindo para o psiquiatra?” Ela sabia a verdade e estava pronta para acolhê-lo.
No relato de Victor, ao sair do hospital, depois de quatro meses internado, ele se deparou com um sentimento de estranhamento em relação ao mundo: “A primeira vez que saí do hospital, eu pensava: Será que o mundo ainda é do jeito que eu lembro?”, refere. Talvez ele é que houvesse mudado. Mas ele conta que a virada só aconteceu quando ele voltou para casa e foi recebido pela família. “Teve um almoço no domingo e estava todo mundo ali, festejando o meu retorno. Fui me reerguendo”, conta. Hoje ele atua como psicólogo no Serviço de Psicologia Aplicada da Uerj, por meio do projeto “Uerj pela Vida”, e oferece acolhimento a pessoas que vivenciam ideias suicidas. Também dá palestras e escreve em seu blog sobre o assunto.
Para Victor, que passou a estudar o tema em seu mestrado, a maioria dos atendimentos psiquiátricos atuam no sentido de tentar montar um perfil de risco e efetivamente “controlar” para que a pessoa não venha a cometer suicídio. “Penso que há uma certa prepotência nisso, porque o que efetivamente decide se a pessoa vai ou não se matar é da ordem do mistério. Alguns sobreviventes estão aí e podem até falar, mas o que efetivamente faz com que a pessoa passe para a ação é algo muito sutil, que eu não sei se a gente pode controlar”, defende. Ele acredita que eventos, debates e campanhas podem ser mais efetivos para acolher essas pessoas que se abrem para procurar ajuda — “e no acolhimento, pode ser que o desejo de morrer se dissipe”.
Ele ressalta que se surpreendeu positivamente com todo o atendimento e a acolhida que teve, seja dos bombeiros, dos socorristas, da comunidade da Uerj e da família — o que julga ter sido essencial para sua “sobrevivência”. Mas ele ressalta que muitos casos de sobreviventes são tratados com preconceito: segundo ele, o suicídio já foi visto como pecado, crime e agora é resumido à loucura. “Se a gente puder ter um espaço para ouvir essas pessoas, quando elas quiserem falar, é mais proveitoso. Para ver o que efetivamente se passa com elas”, resume. E a vida segue.
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