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Escândalo recente no Rio de Janeiro questiona a credibilidade do sistema público de transplantes e mostra como a privatização de serviços do SUS pode colocar em risco a saúde das pessoas. A infecção pelo HIV de seis pacientes transplantados no estado aconteceu por conta de um erro de um laboratório privado, responsável pela testagem da sorologia dos órgãos. O caso enseja um debate sobre a segurança dos procedimentos realizados por empresas que prestam serviços ao SUS, bem como reforça a necessidade de resguardar o sistema da privatização, não somente em nome do erário, mas também da saúde da população. Entenda o que aconteceu.

O que aconteceu

Seis pessoas transplantadas foram infectadas pelo vírus HIV, no Rio de Janeiro. O caso veio à tona porque um paciente que fez transplante de coração procurou em setembro um hospital com sintomas neurológicos e foi diagnosticado com HIV positivo — ele não tinha o vírus antes. Sempre que um órgão é doado, uma amostra é guardada. A Secretaria Estadual de Saúde fez, então, uma contraprova do material e identificou o HIV. Com a descoberta de um segundo caso de infecção pelo HIV em outro transplantado, em outubro, os dados levaram a outro laudo errado, também emitido pelo mesmo laboratório, o PCS Lab Saleme.

Como aconteceu

O governo do estado informou que o erro foi do PCS Lab Saleme, que liberou órgãos de dois doadores que tinham HIV para a fila dos transplantes (G1, 14/10). Segundo a Polícia Civil, o laboratório deu laudo falso negativo para os órgãos que seriam transplantados. Até 21 de outubro, cinco pessoas haviam sido presas. Elas são investigadas por crime contra as relações de consumo, associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária.

Os presos

  • Walter Vieira, sócio e responsável técnico do laboratório PCS Lab Saleme, e signatário de um dos laudos errados;
  • Adriana Vargas dos Anjos, coordenadora técnica do laboratório, suspeita de ter dado a ordem para economizar no controle de qualidade nos testes;
  • Ivanilson Fernandes dos Santos e Cleber de Oliveira dos Santos, técnicos apontados como responsáveis pelo laudo que atestou a segurança dos órgãos transplantados;
  • Jacqueline Iris Bacellar de Assis, auxiliar administrativa que trabalhava no PCS Lab Saleme e cuja assinatura aparece em um dos laudos.

As acusações (I)

A fim de lucrar, o PCS Lab Saleme deliberadamente afrouxou o controle dos testes em órgãos para transplantes, declarou o delegado Felipe Curi, secretário estadual da Polícia Civil do RJ (G1, 14/10). “Os reagentes precisavam ser analisados sistematicamente, diariamente, e houve uma determinação, que estamos apurando, para que fosse diminuída essa fiscalização de forma semanal. A lacuna flexibiliza e aumenta a chance de ter algum efeito colateral — esse efeito devastador que nós estamos analisando”, detalhou o delegado André Neves, titular da Delegacia do Consumidor, na reportagem do G1.

As acusações (II)

O Ministério Público do Rio de Janeiro alega que os investigados e o PCS Lab Saleme já emitiram dezenas de resultados com falso positivo e falso negativo para HIV, inclusive em exames de crianças e, por isso, estão respondendo a inúmeras ações indenizatórias por danos morais e materiais, “de forma que a reiteração dessa conduta demonstra total indiferença com a vida de seus clientes e da população como um todo”, registrou o G1 (20/10).

Ligações duvidosas (I)

O PCS Lab Saleme é privado e foi contratado pela Fundação Saúde, sob a responsabilidade da Secretaria Estadual de Saúde, para atendimento ao programa de transplantes no estado. Uma reportagem do Uol (12/10) destaca que o laboratório assinou três contratos com o governo do Rio que, somados, chegam a R$ 17,5 milhões. Dois deles foram realizados de forma emergencial, com a dispensa de licitação. O terceiro contrato, com valor de R$ 11 milhões, passou por pregão eletrônico em outubro de 2023 e se refere à prestação do serviço de exames para transplantes.

Ligações duvidosas (II)

O laboratório investigado tem como sócios parentes do ex-secretário estadual de Saúde do Rio de Janeiro, Doutor Luizinho, atualmente deputado federal e líder do PP na Câmara. São eles: Walter Vieira, casado com a tia do deputado, e Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, primo de Luizinho. Segundo o Uol (12/10), a empresa teve sua capacidade técnica para produzir exames questionada durante a licitação, informando que o laboratório não teria conseguido comprovar experiência prévia para executar metade dos exames previstos no contrato. O diretor-geral da Central Estadual de Transplantes, Alexandre Cauduro, chegou a declarar que havia questionado a habilitação do laboratório para o serviço, segundo o G1 (14/10).

— Foto: reprodução/internet.

Desdobramentos (I)

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Vigilância Sanitária do Estado encerraram o contrato e interditaram a sede do PCS Lab Saleme, que fica em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Segundo o Fantástico (14/10), lá foram constatadas 39 irregularidades, entre elas condições precárias de higiene, além de amostras de sangue sem identificação e material biológico armazenado de modo inadequado. A Anvisa divulgou ainda que o PCS não tinha kits para realização dos exames de sangue nem apresentou documentos comprovando a compra dos itens, o que levanta a suspeita de que os testes podem não ter sido feitos e que os resultados tenham sido forjados, segundo o G1 (14/10).

Desdobramentos (II)

O Hemorio se encarregou de retestar mais de 280 amostras de sangue de doadores de órgãos armazenadas pela Secretaria de Saúde do Estado. No dia 20 de outubro, o laboratório público, que desde a contaminação está responsável pela sorologia no estado, verificou que não havia nenhum caso positivo para o HIV. Dada a relevância do caso, as amostras passarão por nova testagem, ainda sem previsão, de acordo com o site da CNN (21/10).

Desdobramentos (III)

“Após escândalo dos órgãos com HIV, diretoria da Fundação Saúde pede demissão, e Cláudio Castro confirma exoneração”, noticiou Edmilson Ávila, em seu blog (21/10). Segundo o jornalista, além do diretor executivo João Ricardo da Silva Pilotto, também serão trocados os comandos de outras diretorias, como administrativa e financeira, de recursos humanos, de planejamento e gestão, técnico-assistência e jurídica. O blog destacou ainda que Pilotto foi parceiro de negócio de Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, que é sócio do PCS Lab Saleme e primo de Doutor Luizinho.

Paciente internado

Um idoso de 75 anos, que está entre as pessoas que receberam órgãos infectados com HIV, foi internado no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) no dia 20 de outubro, noticiou o canal da Band no YouTube (20/10). Segundo o G1 (21/10), o paciente foi internado em estado grave.

Segurança dos transplantes

O transplante de órgãos é seguro e o caso de infecção por HIV é inédito no país. Só no RJ, o sistema de transplantes funciona desde 2006 e já salvou mais de 16 mil vidas, declarou a secretária estadual de Saúde, Cláudia Mello, ao G1 (14/10). O portal divulgou ainda a opinião de médicos infectologistas, atestando que o risco de infecção como resultado de um transplante de órgão é baixo, já que o processo de rastreamento infeccioso é extremamente criterioso no Brasil, abrangendo HIV, hepatites, além de doenças bacterianas e virais. “No SUS, o sistema de transplantes é um dos que funciona com excelência”, destacou o site.

Privatização versus saúde 

A Associação Interdisciplinar Brasileira de Aids (Abia) e o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) lançaram nota de repúdio (15/10), em que alertam para os perigos da privatização dos serviços de saúde. “Esta situação inaceitável e sem precedentes é uma clara demonstração de como a privatização faz mal à saúde, prejudicando a vida das pessoas e os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). (…) O lucro foi colocado acima da vida das pessoas”, denunciaram as entidades.

PEC do Plasma

O documento assinado por Abia e GTPI reafirma a importância do controle do Estado sobre o sangue transfundido no Brasil e alerta para os riscos representados pela “PEC do Plasma”, que propõe a volta da comercialização do sangue no Brasil. “É fundamental rejeitar a mercantilização da saúde e reafirmar que o cuidado com a vida não pode ser tratado como uma mercadoria. A saúde pública exige compromisso, investimento e a centralidade do ser humano em todas as decisões”, advertem os especialistas.

Defesa da Lei Henfil

“A partir da Lei Henfil, alcançamos outras grandes vitórias, inclusive uma queda drástica, uma queda profunda na transmissão de HIV, por transfusão de sangue no Brasil, chegando a níveis insignificantes”, escreveu Veriano Terto, em artigo publicado na Agência de Notícias da Aids (13/10). No texto, o vice-presidente da Abia aponta que o que aconteceu no Rio de Janeiro sinaliza o desmonte desse controle do sangue por parte do Estado. “Eu espero que seja um alerta e que o Estado puna os responsáveis e cumpra com a sua obrigação que está determinada pela Constituição”.

Privatização não é a solução

Na live “As infecções por HIV no transplante de órgãos no Rio de Janeiro: escândalo e preconceito”, realizada pela Agência Aids, em parceria com o Portal IG (19/10), a ativista Alessandra Nilo, da ONG Gestos, de Pernambuco, destacou que o caso não a surpreendeu, já que “havia alertas sobre falhas nas parcerias público-privadas (PPPs) no Brasil, especialmente no setor de saúde”. Ela lamentou a falta de um sistema eficaz de controle dessas parcerias e criticou a narrativa predominante que promove a privatização como solução para os problemas de gestão pública. “Essa falácia de que o que o Estado faz é muito ruim e que o setor privado faz é muito bom tem sido historicamente empurrada goela abaixo”, afirmou.

Fiscalização é obrigação

Na mesma live, o epidemiologista Fábio Mesquita também enalteceu a importância do controle público do sangue no país, e considerou que a falta de fiscalização das parcerias público-privadas é inaceitável. “A fiscalização é uma obrigação, e não pode ser negligenciada”, disse o especialista, que defende ser preciso “seguir lutando pela qualidade do sangue, pela excelência dos transplantes e pela resposta ao HIV no Brasil”.

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