Eram tardes de muito sol e muito tédio aquelas que Vitor passava ao lado da mãe, nos jardins do Palácio do Catete ou no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Cumpriam à risca o tratamento indicado pelos médicos para atenuar as manchas brancas que o garoto trazia no corpo. A recomendação consistia no uso de uma pomada e posterior exposição ao sol.
A pele do menino coçava e, mesmo que ele tomasse todos os cuidados, o medicamento sempre escorria para outras regiões do corpo, criando manchas escuras; embora usasse protetor solar, a sensação posterior era sempre de ardência na pele. Uma rotina diária desconfortável na memória do adolescente Vitor, hoje uma das vozes mais atuantes na conscientização pública sobre a aceitação do vitiligo, com marcante presença nas redes sociais.
Aos 34 anos, o clarinetista de formação que também atua como modelo interage com um público de mais de 11 mil pessoas que seguem o seu perfil no Instagram (@vitormaccla), e que o destaca como um dos responsáveis pela mudança na postura de pessoas que vivem com vitiligo, condição autoimune que atinge 1% da população mundial, segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD).
Como Vitor, muitas outras pessoas têm se mobilizado em torno dessa mudança de olhar, que também se reflete na vida cotidiana da universitária carioca Joyce Lorraine Sales, 23. “Eu sempre aceitei bem ser diferente”, disse à Radis, na conversa em que relembrou a infância e revelou parte do seu dia a dia. Ela conta que já se acostumou a retribuir com um sorriso o estranhamento no olhar que as pessoas dirigem a ela. “Elas ficam sem graça, mas eu entendo a curiosidade”, revela.
O movimento também envolveu a vida de famílias: no Rio Grande do Sul, a biomédica Márcia Lamas passou a se dedicar ao estudo do vitiligo quando recebeu o diagnóstico do filho Emmanuel. Hoje, também discute ativamente o tema nas redes sociais, principalmente em seu perfil no Instagram (@biomedicacoruja); em São Paulo, a designer gráfica Tati Santos de Oliveira escreveu o livro A menina feita de nuvens para homenagear a filha Maria Luiza, que vive com vitiligo. O livro tem sido importante na promoção da representatividade e da aceitação de outras crianças, que postam fotos suas com a capa do livro, também nas redes sociais.
É doença? É contagiosa?
Mas afinal, o que é vitiligo? É uma doença? É contagiosa? Segundo a SBD, o vitiligo é, sim, uma doença, caracterizada pela perda da coloração da pele. De acordo com os especialistas, as lesões são decorrentes da diminuição ou da ausência de melanócitos (células responsáveis pela formação da melanina, pigmento que dá cor à pele) nos locais afetados. Mas não é uma doença contagiosa, como pensam alguns, e “não traz prejuízos à saúde física”, orientam os especialistas.
Isso significa dizer que a maioria dos pacientes de vitiligo não manifesta qualquer outro sintoma no corpo, a não ser o surgimento de manchas brancas na pele, embora hoje já se reconheça o impacto significativo do surgimento das lesões provocadas pela doença na qualidade de vida e na autoestima das pessoas. “Na maioria dos casos, recomenda-se o acompanhamento psicológico, que pode ter efeitos bastante positivos nos resultados do tratamento”, recomenda a SBD.
Outra pergunta bastante comum em relação ao vitiligo diz respeito ao surgimento e às causas da doença. “O vitiligo é uma doença genética, crônica, de origem autoimune”, explica o dermatologista Caio de Castro, coordenador da América Latina do Consenso Mundial de Vitiligo e professor da disciplina de dermatologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “O organismo não reconhece os melanócitos e os destrói”, explica no vídeo em que responde a perguntas sobre vitiligo, disponível no YouTube.
No vídeo, o médico esclarece que apenas as pessoas que nascem com uma tendência genética desenvolvem a doença, que mais comumente se manifesta nas áreas sujeitas a traumatismos, como joelhos, cotovelos, mãos, face e região genital. Caio cita ainda alguns fatores que podem desencadear o surgimento das manchas naquelas pessoas que têm predisposição para a doença, como o uso de alguns medicamentos e cremes — especialmente os derivados de hidroquinona, usados como clareadores de pele —, queimaduras solares e traumas mecânicos ou psicológicos.
Mas existe tratamento para a doença? Caio explica que, quando o vitiligo está estável, o principal tratamento utilizado é a fototerapia, com raios ultravioletas A ou B, que promovem a repigmentação da pele. Segundo ele, a coloração chega à pele afetada por meio dos folículos pilosos (responsáveis pela produção e crescimento dos pelos). Segundo ele, nestas estruturas existem células tronco, que ativadas pela fototerapia, produzem novos melanócitos que “migram” para a pele afetada e produzem melanina.
O especialista explica que nos pacientes em quem a doença é instável, ou seja, naqueles em que as manchas estão aumentando, é possível utilizar medicamentos corticoides (tanto em cremes ou por via oral). No vídeo, gravado em 2018, ele cita alguns outros medicamentos indicados para os pacientes que por alguma razão não podem usar corticoides e comenta ainda sobre um remédio utilizado para manutenção do tratamento em pacientes que já tenham se submetido à repigmentação.
Tratamento não é milagre
Vitor não traz boas lembranças dos tratamentos a que foi submetido ao longo da vida. “Eu experimentei tudo no meu corpo”, diz ele à Radis, lembrando que na infância até viu uma diminuição grande no número de manchas no corpo, mas que isso exigia dele uma dedicação constante, sob o risco de tudo voltar, caso parasse o tratamento. Além disso, os efeitos colaterais dos medicamentos o faziam se sentir mais doente, em muitos momentos. “Eu ficava tonto, tinha muita sensibilidade à luz, às vezes ânsia de vômito”, lembra.
Foi na adolescência que Vitor começou a questionar os remédios, pomadas e outros tratamentos e decidiu pesquisar sobre eles, na internet. Descobriu que, além de diminuírem as manchas que tinha no corpo, eles também afetavam seu sistema imunológico. “Comecei a questionar o que estava colocando no meu corpo, conversei com minha mãe e resolvi parar”, conta.
Joyce também lembra bem dos efeitos colaterais dos medicamentos. Ela foi submetida a tratamentos experimentais, sofreu queimaduras com uns, engordou com o uso de outros. Mas reconhece que eles ajudaram a diminuir as manchas, que hoje são mínimas em sua pele, mesmo sem estar usando remédios. Ela diz entender o lado de quem para o tratamento, mas elogia o médico que a acompanha, há dois anos. “Ele curou meu vitiligo”, diz. Segundo ela, hoje só restam algumas pequenas manchas na pálpebra e nas pernas.
Márcia avalia que é muito difícil manter a vida toda um tratamento, que “não ataca a fonte do problema”. À Radis, a biomédica esclarece que a doença não tem cura e que os medicamentos só tratam as consequências, que são as manchas na pele, e manifesta sua preocupação com o que acontece com o restante do organismo, diante do uso excessivo de medicação, por tanto tempo.
Ela relata que quando decidiu parar o tratamento do filho Emmanuel, hoje com 4 anos, viu acontecer o “efeito rebote” — as manchas aumentaram de extensão —, mas depois observou que as mesmas manchas regrediram. A experiência fez com que ela aumentasse o interesse por suas pesquisas e começasse a criar conteúdo sobre o assunto para as redes sociais. “Há uma procura desenfreada por uma cura que não existe. Isso só aumenta o risco de uso de medicamentos sem prescrição e sem segurança”, alerta.
Em entrevista concedida à Agência Câmara de Notícias no Dia Mundial da Conscientização do Vitiligo (25/6), Sergio Palma, presidente da SBD, declarou que há um conjunto de orientações para fomentar a qualidade de vida da pessoa com vitiligo, destacando que se recomenda o controle do estresse e evitar situações que favoreçam o agravamento da doença, como a exposição ao sol sem proteção e o uso de roupas muito apertadas.
Segundo ele, cabe ao dermatologista avaliar o paciente e decidir pela melhor abordagem de tratamento, considerando seu quadro clínico, mas também deve-se levar em consideração o respeito à autonomia do paciente que convive com o vitiligo. Para Sérgio Palma, há várias pessoas que não encaram essa doença como um problema que deve merecer tratamento, em parte por não ser uma doença contagiosa ou que implique em limitações de qualquer ordem.
Promessas de cura
Uma procura rápida pelo termo “vitiligo” em qualquer site de buscas revela um grande comércio de medicamentos, promessas de curas e explicações nada científicas disponíveis, que ignoram contextos pessoais e as consequências na saúde das pessoas. São chás, fitoterápicos, remédios importados, tratamentos “inovadores” e até soluções espirituais oferecidas sem controle no ambiente da internet.
Essa realidade preocupa Vitor e Márcia, que em 17 de setembro discutiram, em uma live no Instagram, “remédios milagrosos e falsa cura”. Na verdade este foi o terceiro encontro virtual promovido pelos dois, quando abordaram os principais remédios e técnicas terapêuticas usadas no mercado, apontando princípios ativos e possíveis efeitos colaterais, principalmente quando administrados de forma irresponsável.
Na conversa, os dois também alertaram as pessoas para “o charlatanismo presente nas narrativas em torno das comunidades do vitiligo”, denunciando aqueles que se valem da fragilidade das pessoas para oferecerem falsas promessas de cura e lucrarem com a venda de remédios.
A desinformação também está presente em diferentes depoimentos publicados por gente que nem é especialista no assunto e nem vive com a doença, como alerta outra postagem de Vitor. O modelo reuniu trechos de falas, algumas classificando o vitiligo como uma “doença do carma”, outras garantindo que tem cura — “fácil controlar, tá? Minha amiga se curou, paralisou” —, e mais algumas prescrevendo vitaminas — “Toma altas doses de vitamina D”. Na postagem, ele contrapõe as falas com uma visão diferente: “Pra mim vitiligo é: beleza, empoderamento, diversidade”.
Ligações emocionais
Se as manchas na pele de quem tem vitiligo são bastante visíveis, menos aparentes são as relações da doença com a saúde mental. Mesmo que especialistas reconheçam que traumas psicológicos são em muitos casos responsáveis pelo surgimento da doença — e também pelas recidivas em quem está com elas controladas — os tratamentos ainda estão muito focados nos efeitos tópicos, como lembra Márcia Lamas. “É preciso investigar as consequências para a saúde global”, alerta.
Essa ligação nem sempre foi clara para Vitor e Joyce, mas ambos são enfáticos ao reconhecer como os aspectos psicológicos são importantes, desde o momento do diagnóstico. Joyce lembra com clareza quando o vitiligo “estourou”, por volta dos seis, sete anos. Naquele período, os pais haviam se separado e ela foi passar um período de férias na casa da mãe, que acabara de se mudar para a Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. A menina morava com o pai e saiu de casa com uma pequena mancha. Quando retornou, as manchas haviam piorado.
“Quando minha mãe se mudou as manchas vieram com tudo. Fui para lá com 15% e voltei com 80%”, lembra a universitária. Ela reflete que, naquele momento, foi da madrasta Andrea o insight para que procurassem o serviço especializado do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Lá foi diagnosticada, recebeu as primeiras informações e os primeiros cuidados: “Eu nunca tinha visto uma pessoa com vitiligo, nem na minha escola nem no meu bairro”, relembra.
“Nunca sofri nenhuma discriminação na minha família, e na minha escola me achavam diferente. Fora isso, nunca tive problemas”
Joyce Sales, universitária
Joyce considera que o apoio da família foi fundamental para que encarasse bem o diagnóstico e os tratamentos, apesar da pouca informação disponível, naquela época. “Nunca sofri nenhuma discriminação na minha família, e na minha escola me achavam diferente. Fora isso, nunca tive problemas”, revela.
Ela conta que na infância contou com ajuda psicológica, o que considera importante para viver bem com o vitiligo. “Se hoje eu me aceito bem e controlo meu emocional, foi graças a isso”, reflete, ressaltando que sempre que sofre algum “baque” se observa, mas prefere não ligar qualquer reação emocional à doença. “Assim como tem gente que vive com vitiligo e não faz terapia, também tem muita gente que passa por problemas emocionais e não tem vitiligo”, avalia.
Vitor lembra bem do impacto que foi receber o diagnóstico, também quando era criança. Ele estava ao lado da mãe quando o médico do Instituto de Dermatologia Professor Rubem David Azulay, que funciona na Santa Casa de Misericórdia, no Centro do Rio, a informou que o filho tinha vitiligo. A mãe chorou, temendo que ele tivesse problemas para ser aceito. Ele não esqueceu a cena.
A família procurou o serviço quando o menino apareceu com uma pequena mancha no rosto. Antes disso, ele já havia enfrentado uma série de percalços por conta da síndrome de Kawazaki (uma doença infantil que afeta vasos sanguíneos e que tem, entre outros sintomas, manchas na pele). “Eu lembro de ter ficado internado”, conta à Radis. Com a cabeça de hoje, o músico avalia que as primeiras informações também tiveram forte impacto na maneira com que viveu os primeiros anos com vitiligo. Com a ajuda das sessões de esquizoanálise, terapia que mantém hoje, ele avalia que muito tempo passou acreditando que era culpado de sua condição, e que o tratamento não evoluía também por sua responsabilidade.
Corpo e aceitação
Vitor analisa que ao parar o tratamento convencional, há 20 anos, optou pela liberdade cotidiana ao invés da vigilância, o que o levou a se sentir mais confortável consigo. Ele reconhece que o vitiligo é uma condição crônica, que se desenvolve a partir do estado emocional, mas lembra que os percalços são estágios naturais da vida.
“Vitiligo é uma expressão autoimune. É a forma como meu corpo reage ao que atravesso na vida”
Vitor Macedo, modelo
Como exemplo, cita que as mesmas manchas que aumentaram quando estava sob a pressão dos trabalhos de faculdade regrediram quando se casou, há pouco mais de três meses. “Vitiligo é uma expressão autoimune. É a forma como meu corpo reage ao que atravesso na vida”, define.
E continua: “A prática terapêutica me levou a ter uma consciência menos culposa, a me colocar para além do vitiligo, controlar minha ansiedade. Os resultados não dependem somente da gente”, avalia. Ele também credita a estabilidade da doença às escolhas saudáveis que fez ao longo da vida, seja a alimentação livre de produtos industrializados, seja a prática regular de atividades físicas. “Esse combo deveria ser o tratamento global para quem tem vitiligo”, recomenda.
Tais escolhas abriram caminho para outra faceta profissional de Vitor. “Aos 30 anos, quando comecei a trabalhar como modelo, percebi que essa seria uma oportunidade de me expressar, e que poderia ser compartilhada com os outros”, destaca. Ele conta que quando se viu no primeiro ensaio, ao lado de pessoas famosas — no projeto Pele Project, do fotógrafo Bruno Rangel — sentiu-se liberto e pronto para dividir com outras pessoas sua experiência nas redes sociais.
O desespero que se seguiu ao diagnóstico de vitiligo do filho também impactou a vida de Márcia. Ainda estudante do curso de Biomedicina na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), que fica na cidade homônima, no Rio Grande do Sul, ela não tinha nenhuma informação sobre a doença e decidiu que iria se dedicar à pesquisa.
A primeira coisa que chamou sua atenção foi a dificuldade de reconhecer a doença. “Nem todos os médicos estão preparados para isso”, avalia, revelando que a princípio as manchas no corpo de Emmanuel foram tratadas como se fossem causadas por fungos. Ela também observa que os tratamentos, focados no desaparecimento das manchas, por vezes desconsideram a saúde global do indivíduo, bem como abrem espaço para o comércio indiscriminado de substâncias que prometem efeitos milagrosos nos pacientes. “Não há vigilância sobre isso. A internet é uma terra sem lei”, considera.
Márcia, que também optou, por conta própria, por interromper o tratamento do filho com corticoides e passou a cuidar melhor das questões emocionais, recomenda que é preciso encarar o vitiligo de outra forma, sem cair no vitimismo ou tratar a doença como “algo a esconder”. Para isso, considera que o SUS deveria investir na oferta de acompanhamento psicológico para quem vive com o vitiligo, assim como reforçar as campanhas de conscientização sobre a doença. “Ainda há pessoas que acham que vitiligo é contagioso”, justifica.
“Ainda há pessoas que acham que vitiligo é contagioso. Os profissionais precisam dar suporte emocional para quem enfrenta o problema.”
Márcia Lamas, mãe de Emmanuel, 4 anos
Para ela, também é preciso que haja maior esclarecimento dos profissionais de saúde sobre o tema, já que muitos se mostram despreparados para abordá-lo nas consultas, seja minimizando seus efeitos — “Alguns dizem que não é problema de saúde, é só uma manchinha” — seja deixando de encarar os efeitos psicológicos do diagnóstico. “Os profissionais precisam encarar a doença de modo mais sério e dar suporte emocional para quem enfrenta o problema”, orienta.
Autora do livro A menina feita de nuvens, e ativa nas redes sociais, a designer gráfica Tati resume: “Vitiligo não é contagioso. Não dói e não coça. O que dói mesmo é o preconceito, isso que realmente é complicado”, disse, na live que participou no início de setembro, no Instagram. “Muitas vezes as pessoas têm problemas com sua autoestima graças aos olhares dos outros, com medo do olhar dos outros, esse que é o grande problema do vitiligo”.
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