Em abril de 2023, o NetLab/UFRJ produziu um estudo no qual expôs estratégias e abusos cometidos pelas big techs na ofensiva contra a proposta de regulação contida no Projeto de Lei (PL) 2630. O relatório descortina as motivações comerciais por trás dos atos antidemocráticos praticados pelas empresas às quais se destina a regulação. Para as fontes consultadas pela reportagem, a participação dessas instituições no debate é legítima e compreensível, em função dos lucros obtidos por elas com o atual formato de operação. Até aí seria a regra do jogo. Porém, o que entra em desacordo é a forma como essas intervenções ocorreram.
“O que nos surpreendeu muito foi que as plataformas, ao fazerem esse processo de resistência contra o projeto de lei, se aliaram a setores da extrema direita e radicalmente conservadores no nosso país que passaram a alegar, a partir de uma campanha de desinformação massiva, que esse seria o ‘PL da censura’”, afirma Bia Barbosa, integrante do DiraCom (Direito à Comunicação e Democracia) e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). “E as plataformas surfaram sem nenhum tipo de constrangimento nesse tipo de narrativa organizada pela extrema direita”, complementa.
Paulo Rená, integrante da Coalizão Direitos na Rede, faz uma observação semelhante. “O posicionamento de empresas privadas em relação a questões públicas não é um problema em si, mas a forma como especialmente Google e Telegram se posicionaram tomou proveito de uma posição privilegiada no mercado de comunicação online, expondo uma mensagem convocatória de pressão popular em cima de parlamentares que nem mesmo expressava verdades sobre o projeto de lei”.
Ele cita exemplos de interferências diretas do Google. “Afirmou-se que o projeto ‘concede poderes de censura ao governo’ e que a regulação não só poderia ‘matar a internet moderna’, como seria um ataque à democracia. Foi uma infeliz ação de desinformação sobre o PL, que de certa forma surfou na onda fascista da oposição mais radical que a extrema direita tem feito ao governo no Brasil”, analisa Paulo.
Para ele, as plataformas “atiram no próprio pé” ao encamparem uma campanha contra o PL da Fake News, por se ampararem na desinformação sobre uma iniciativa que pretende justamente combater essa conduta. “Fortalece a percepção de que elas não se reconhecem como destinatárias de certas regras legais que garantem um mínimo de equilíbrio nas relações de poder que se estabelecem no ambiente online”, afirma.
A estratégia de apelar à desinformação e aderir a argumentos de grupos antidemocráticos — e que flertam com o fascismo — denota mais do que um incômodo por parte das gigantes da tecnologia frente à proposta de regulação do setor pelo governo brasileiro. Carlos Eduardo Barros é um dos autores do relatório do NetLab UFRJ e traz detalhes do estudo, baseado nas condutas obscuras das plataformas digitais no período que antecedeu a data prevista para votação do PL 2630.
Guerra contra a lei
Cerca de 30 pesquisadores e assistentes que compõem o NetLab/UFRJ debruçaram-se sobre algumas das principais plataformas de internet que atuam no país, no período de 23 a 30 de abril de 2023, semana que antecedeu a data programada para votação do PL 2630 no Congresso Nacional — que acabou não ocorrendo. No período, o grupo compilou dados coletados que resultaram no relatório intitulado: A Guerra das Plataformas Contra o PL 2630.
A pesquisa concluiu que as empresas analisadas atuaram para impedir a votação do projeto, motivadas pelas vantagens obtidas com a desregulamentação da publicidade digital. “Se o PL 2630 não for aprovado, as big techs conseguem manter a assimetria regulatória que existe no mercado e, portanto, manter suas vantagens competitivas frente aos outros meios de comunicação que também vivem de publicidade”, afirma o documento. O estudo demonstra ainda que as plataformas burlaram suas próprias regras de publicidade e que o Google utilizou seus serviços para atacar a regulação.
“Google, Meta, Spotify e [a produtora] Brasil Paralelo anunciam e veiculam anúncios contra o PL 2630, porém, de forma opaca e burlando seus próprios termos de uso. Isso pode configurar abuso de poder econômico às vésperas da votação do Projeto de Lei por tentar impactar a opinião pública e o voto dos parlamentares”, afirma o resumo do relatório. Dentre outras arbitrariedades, os pesquisadores verificaram que o Google impulsionou um texto publicado em seu próprio blog em que nomeia o projeto como “PL da Censura”. Adotou, portanto, a nomenclatura do grupo que milita nas redes e atua politicamente contra a proposta.
Carlos Eduardo explica de que forma empresas como o Google e a Meta geram suas rendas e o porquê de se interessarem pela manutenção do formato atual. “Assim como a maioria das empresas de comunicação, a receita dessas plataformas vem principalmente da publicidade — e é por isso que a transparência sobre anúncios digitais é um dos pontos mais importantes da regulamentação”.
Segundo o pesquisador, em outras mídias, como rádio, TV ou outdoor, todos os espectadores veem a mesma propaganda. Já nas plataformas digitais, a publicidade é personalizada de acordo com os dados que elas possuem sobre cada usuário: o que ele curte, o que compartilha, por quanto tempo olha para cada imagem. “São esses dados que tornam as mídias sociais tão poderosas e capazes de direcionar cada anúncio a um micro segmento de público”, pontua.
Ele ressalta que hoje não há uma legislação que garanta transparência por parte dessas empresas sobre, por exemplo, quem paga cada anúncio, quanto paga e para quais públicos o conteúdo é direcionado. Carlos Eduardo ressalta ainda que algumas das empresas sequer exigem comprovante de identidade de seus anunciantes, lucrando em muitos casos com anúncios criminosos na internet: “Cotidianamente, perfis falsos pagam as plataformas para impulsionar anúncios de sites fraudulentos, golpes financeiros, desinformação e incitação à violência”, relata.
“Em 2021, o YouTube divulgou excepcionalmente ao STF que havia pago R$ 6,9 milhões para 12 canais investigados pela propagação de informações falsas no contexto da covid-19 e de ataques às instituições brasileiras.”
Carlos Eduardo Barros (NetLab/UFRJ)
Para o pesquisador, as plataformas podem não ter o intuito deliberado de promover a desinformação e a propagação de discursos criminosos no ambiente online; porém, ao lucrarem com esse conteúdo, elas permitem, promovem e monetizam diversos tipos de publicações criminosas, desde que estas gerem engajamento. “É grande o poder político de empresas que concentram tantas informações e decidem o que impulsionar e o que remover, sem prestar contas. Em 2021, o YouTube divulgou excepcionalmente ao Supremo Tribunal Federal (STF) que havia pago R$ 6,9 milhões para 12 canais investigados pela propagação de informações falsas no contexto da covid-19 e de ataques às instituições brasileiras”, afirma à Radis.
Fronteira entre mentira e informação
Por conta de sua atuação irregular na empreitada contra o PL 2630, o Google pode ser processado pela Justiça brasileira. Além de enviesar as pesquisas pelo Projeto de Lei, associando sua busca a “PL da Censura”, a gigante da tecnologia veiculou anúncios irregulares afirmando que a nova lei poderia ‘piorar a sua internet’ e ‘aumentar a confusão entre o que é verdade e mentira no Brasil’. Essa última frase, inclusive, foi inserida em sua página inicial no Brasil, o que para Carlos Eduardo é um dos maiores agravantes, por “distorcer a fronteira entre informação e propaganda”.
O relatório captou ainda diversas outras irregularidades praticadas no curto período analisado, dentre elas: veiculação de conteúdo político na internet sem a rotulagem adequada, o que dificulta seu rastreamento; anúncios do Google no Spotify descumprindo a política do próprio aplicativo de não veicular publicidades de cunho político; e indicação de fontes partidárias da extrema direita na primeira página de buscas sobre o tema no Google e no YouTube.
As cifras de arrecadação publicitária, também informadas na pesquisa, dão uma pista da razão pela qual as plataformas vêm investindo pesado contra a regulamentação do setor no Brasil. Segundo o levantamento publicado no relatório, o mercado publicitário brasileiro movimentou R$ 46 bilhões em 2022, sendo R$ 13,6 bilhões no mercado off-line e outros R$ 32,4 bi em publicidade digital, dos quais 7,6 via agências e, portanto, auditados — e a volumosa quantia de R$ 24,8 bilhões não auditados pelo mercado publicitário.
Ainda sobre valores financeiros, em 2022, a receita da Meta foi de US$ 116,6 bilhões, sendo 97,7% do montante advindo de publicidade digital. Já o Google faturou US$ 279,8 bilhões, dos quais 80,2% via anúncios online. O estudo afirma que “sem a devida transparência, não é possível saber qual percentual desses valores advém de anúncios criminosos e irregulares, que seriam impactados pelo PL 2630”.
“A questão aqui não é a possibilidade de compra de anúncios diretamente com as plataformas, que é positiva para os pequenos anunciantes. O problema é a falta de regulação que cria uma assimetria regulatória, na qual 2/3 do total do mercado publicitário não obedecem a nenhuma regra, restrição ou obrigação de transparência, deixando anunciantes e consumidores vulneráveis aos interesses econômicos das plataformas”, diz o texto.
Sobre os conteúdos patrocinados indiscriminadamente, o relatório alerta: “Anúncios promovendo compra de armas, golpes de estado e fraudes financeiras podem facilmente ser veiculados nas plataformas, que ganham dinheiro também com esse tipo de publicidade tóxica”.Confira a íntegra do relatório em: https://www.netlab.eco.br/post/a-guerra-das-plataformas-contra-o-pl-2630.
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