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 “Só a gente de longe quer nos conhecer e nos defender. Suas palavras são fortes e vêm nos ajudar. Graças a elas, a gente de perto, que não para de falar contra nós, desistirá de invadir a floresta”. As palavras duras e proféticas do líder Davi Kopenawa dão o tom do livro O espírito da floresta (Companhia das Letras), mais recente parceria do xamã Yanomami com o antropólogo francês Bruce Albert. 

A coletânea, explica Bruce, “é produto de um ciclo de aventuras intelectuais e estéticas cruzadas” que nasceu da aproximação entre um grupo de xamãs e artistas yanomami com cientistas e artistas não indígenas do mundo todo. Dos primeiros encontros na casa coletiva de Watoriki — onde vive Kopenawa — no ano 2000, originaram-se exposições em diferentes países, sob a égide da Fundação Cartier, que retratam, a partir do espírito da floresta, a complexidade da biodiversidade e as implicações trágicas de sua destruição.

O que se lê, na obra escrita a quatro mãos, é a alternância de visões entre antropólogo e líder indígena sobre o território, a cultura e a cosmologia yanomami, um diálogo que também fornece ao leitor elementos para melhor compreender a construção das narrativas sobre este povo, que em 2023 voltou a ganhar destaque no noticiário após a divulgação de imagens aterradoras de mortes causadas pela invasão da mineração ilegal em suas terras. 

O livro foi escrito antes de as denúncias feitas pelo povo Yanomami encontrarem escuta e despertarem a atenção de governo, sociedade e mídia comercial — e motivarem a intervenção estatal, com a decisão de declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), em janeiro de 2023 [Veja a cobertura da Espin no site de Radis]. A despeito disso, estão em suas páginas relatos, fotografias, desenhos e infográficos que contextualizam a situação do povo conhecido como “habitantes da terra-floresta”, nas palavras de Albert, e seus conflitos com o “povo da mercadoria”, os não-indígenas — ou napë, como define Kopenawa.

Mas O Espírito da Floresta não é apenas um apanhado de denúncias ou um tratado antropológico, ainda que alguns textos tragam excertos etnográficos da convivência entre dois mundos, seja em território indígena ou em salas de exposição no exterior. A edição do livro, que alterna textos escritos por um pesquisador acadêmico e um pensador indígena, conduz o leitor a uma interseção entre as fronteiras da produção de conhecimento, colocando em xeque as marcações tradicionais acadêmicas sobre sujeitos e objetos de estudo.

Assim, os textos de ambos os autores, emoldurados por belas fotografias produzidas ao longo das últimas décadas — em destaque as assinadas pela fotógrafa Claudia Andujar — e por uma iconografia rica que inclui obras de artistas consagrados, como Joseca Yanomami, descrevem uma cenografia particular. Esse panorama reflete escolhas e processos relacionados às “peles de imagens” produzidas sobre (e por) yanomamis, ao longo de uma série de encontros — um interessante registro da (re)conversão de olhares que resultou na exibição de uma “floresta poliglota” — em línguas, linguagens e sentidos.

Não escapam da visão e da análise, no entanto, a cartografia de ritos e fenômenos climáticos característicos do território — como a belíssima descrição de Maa hi, a grande árvore da chuva — e o alerta sobre a repercussão da interação com a “fumaça da epidemia” (xawara, no dizer yanomami), que “é ávida por carne humana”.  “Nossos antigos eram felizes assim por não morrerem demais”, registra poeticamente Kopenawa, que parecia antever, bem antes de acontecer, o que viveríamos, todos, com a pandemia de covid-19, a partir de 2020.

Albert recupera a luta empreendida pelos Yanomami contra esta e outras epidemias ao longo de sua história — como sarampo e outras infecções respiratórias — e adverte sobre os perigos que corremos nós, o povo da mercadoria, ao ignorar as ameaças à biodiversidade e ao nos rendermos aos apelos dos minérios encontrados nas profundezas do chão das florestas. Suas palavras são reforçadas pelo apelo feito pelo líder indígena: “Eles os queimam [os minérios] e enchem assim o peito do céu de fumaças de epidemia que, transformadas em doenças perigosas, afetam todo mundo”, avalia Kopenawa.

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