“Eu já falei para a senhora que tem que ficar em casa de quarentena, ô véia lazarenta”. A frase, nada gentil, foi retirada de um dos memes que circularam nas redes sociais no mês de março e trazia a imagem de um cachorro impedindo uma idosa de ir para a rua. Lazarento, em sentido figurado, quer dizer pessoa terrível, repulsiva e insuportável, e foi um dos adjetivos utilizados em conteúdos que inundaram a internet por conta da pandemia, mostrando idosos sendo caçados por camburões “cata-véio” ou presos em gaiolas dentro de casa. Os memes revelam a realidade do preconceito social contra um grupo baseado apenas na idade — o chamado etarismo. Por serem uma parcela da população em situação de maior vulnerabilidade à covid-19, os idosos são responsabilizados por seu adoecimento, o que pode ser utilizado para dificultar o acesso à assistência à saúde e outros direitos. Algumas vidas valem mais que outras?
O etarismo é também chamado de idadismo e ageismo, e a crise sanitária provocada pela covid-19 mostrou a volta de uma prática antiga que parecia já superada. Claudio Pinheiro, médico geriatra que atua em Fortaleza, lamenta que ainda hoje perdure essa visão equivocada sobre a condição dos idosos. “O etarismo acontece quando alguém assume a idade como um fato negativo para o não oferecimento de tratamentos ou terapias ou como um fator de exclusão do idoso da oferta de acesso à saúde”, explica. Ele conta, por exemplo, que só recentemente grandes ensaios clínicos de medicamentos passaram a incluir idosos. “Isso já poderia ser enquadrado como um comportamento discriminatório”, avalia. Além disso, o médico observa que existe a tendência em considerar a idade como fator de exclusão, pois leva em conta a fragilidade como um dado único e exclusivo do idoso. “Hoje sabemos que a fragilidade é muito mais determinada pela capacidade funcional e de saúde de qualquer pessoa, e não apenas por sua idade cronológica. Uma pessoa de 40 anos pode ter uma saúde muito ruim e um idoso de 90 anos pode ser extremamente funcional e saudável”, exemplifica.
Especialista em cuidados paliativos, Claudio pontua que, no exterior, a emergência da pandemia gerou uma crise de acesso a serviços especializados de saúde, como ventilação nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), chegando a circular a recomendação de não intubar pessoas com mais de 80 anos. “Felizmente não chegamos a isso. Mas o conceito do etarismo seria aplicado já no atendimento, porque o idoso é recebido com a perspectiva de que não vai ser intubado. Já se sabe previamente que o recurso não será oferecido devido à idade”, salienta. Para ele, embora não seja incorreto pensar na boa administração dos recursos, o erro acontece porque um grupo é excluído por um único fator, que é a idade. “A preocupação deve ser sempre baseada numa avaliação mais abrangente do quanto uma eventual intubação e internação em uma UTI pode oferecer em qualidade de vida para essas pessoas”, diz.
Claudio ressalta também que, como as pessoas são distintas, a idade não é a mesma para todos. “Podemos ter idosos de 80 anos funcionais e saudáveis, e pessoas jovens com um manancial grande de doenças. Nesse caso, a intubação poderia beneficiar mais o idoso que o jovem”, assinala. Tomando como exemplo um cenário extremo, o médico compara a situação de saúde de um jovem com um câncer avançado, com metástase e sem oferta de qualquer tratamento, e um idoso saudável de 90 anos. Em tese, ele diz que o ventilador seria mais benéfico para o idoso do que para esse jovem. “Parece absurdo citar esse caso porque falamos com mais naturalidade sobre a morte de idosos. Mas, se o critério da idade fosse instituído, o recurso de saúde seria mal utilizado nesse ambiente de escolha, porque estaríamos destinando o aparelho de ventilação para uma pessoa que enfrenta uma situação incurável. Por isso é que não podemos pensar só na administração de recursos. É preciso pensar no todo”, reforça o médico.
Invisibilidade na formação
Claudio observa que, contrariando as expectativas geradas no início da pandemia de covid-19, o que se tem visto nos hospitais é que muitos idosos toleraram a doença melhor que os mais jovens. “É curioso perceber que as pessoas internadas acima de 90 anos, talvez por terem uma resposta imunológica menos eficiente, não fizeram a cascata inflamatória na mesma intensidade dos jovens. A doença passa com menos gravidade nos extremos da vida, parece que protegendo os muito jovens e os muito idosos”, diz ele, que deu alta para um paciente centenário. Claudio salienta que, em qualquer situação, a pessoa deve ser vista e entendida em sua integralidade e assume que persistem lacunas sobre o envelhecimento na formação médica. “Há uma geração de médicos que não foram treinados para lidar com o idoso e continuam a negar o recurso de saúde pelo simples fato de o paciente ser velho”, observa.
Claudio diz também que só recentemente o conhecimento específico sobre o envelhecimento foi inserido nas faculdades de Medicina e que ainda são poucos os cursos de geriatria no país. “Tenho esperança de que as próximas gerações de médicos entendam o idoso de uma forma mais integral”, assume. Informações da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia indicam que havia 90 cursos de residências, em 2019, em 15 estados no país. A maior parte delas está localizada em São Paulo (25%), seguido de Minas Gerais (11%) e do Rio de Janeiro e Pernambuco (9% cada um). Todos eles têm duração de 2 anos, com 2.880 horas-aula/ano, e requerem pré-requisito de dois anos de Residência em Clínica Médica reconhecida pelo Ministério da Educação.
Frágeis e irresponsáveis?
Os memes também registaram outro lado da discriminação por meio da infantilização dos idosos, algo que está presente nas famílias. “Elas assumem que os idosos são incapazes à medida em que envelhecem. No dia a dia, vemos situações que podem até ter o objetivo de proteger, mas, no fundo, são uma infantilização de idosos lúcidos, que não possuem um quadro demencial”, observa Claudio. Limitar o idoso para não dirigir e evitar que saiam às ruas em tempos de normalidade como se não fossem pessoas autônomas e independentes são algumas dessas manifestações discriminatórias citadas pelo geriatra. “Etarismo não é só deixar de indicar cirurgia ou terapias, mas também negar o acesso à informação completa de saúde mesmo com a ideia de proteger”, afirma.
A professora Ruth Gelehrter da Costa Lopes, supervisora do atendimento psicoterapêutico a idosos da clínica-escola da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), entende que havia um pacto de silêncio que foi quebrado quando surgiu a pandemia. “As verbalizações e os discursos políticos e médicos começaram a apontar esse olhar preconceituoso. Os protocolos de prioridade que foram lançados no início da pandemia são um escândalo”, salienta. Ela afirma que viu muita indignação dos velhos em seu consultório. “Havia a certeza de que se um idoso precisasse de algum recurso seria claramente preterido por um jovem, porque não havia como investir em todos. Entendo que essa é uma cultura que se organiza para facilitar a eliminação dos velhos”, analisa.
A psicóloga identifica que há uma “grande hipocrisia” da sociedade que busca eliminar e esconder os seus velhos e proíbe o debate importante sobre eutanásia, por exemplo. “Os altos índices de suicídio na velhice também são encarados com certa naturalização: ‘Já era velho mesmo! Qual o problema? Será que não é uma opção?’”, reforça. Em sua visão, a pandemia apenas escancarou o que já se sabia sobre as pessoas idosas. “É como se dissessem que estamos isolados porque não podemos contaminar os velhos e que os velhos são inúteis, que não vale a pena investir neles, que eles estão atrapalhando o caminhar da sociedade. Mas o que vemos nos diferentes estudos não é isso, pelo contrário”, observa.
Ruth recorda que a fragilidade física ficou marcada como um “defeito”, um traço que os idosos carregam e por isso se tornam um “estorvo”. “Estamos falando de indivíduos frágeis ou com alguns problemas físicos que não têm lugar na nossa cultura. Isso é muito sério! Porque ao desdobrar esse preconceito, chegamos em outros que levam ao afastamento das pessoas que adoecem e das que têm dependências”, salienta. A psicóloga aponta que a saída é aproximar os idosos em formas mais saudáveis de relacionamento social e ambiental. “Temos que projetar que uma cidade amigável para os velhos é favorável para todas as faixas etárias. Todos se beneficiam dela”, recomenda [Leia entrevista na página 28].
Vidas importam
De fora do país, desde fevereiro a mídia trouxe notícias não animadoras de que a doença matava sobretudo velhos, informação que poderia trazer impactos sobre a saúde mental dessas pessoas. As mortes na Itália reforçaram a preocupação com os pacientes de imunidade baixa e de grupos fragilizados, como idosos. Não bastassem os números oficiais, que ajudaram a dar o tom da tragédia, todo o contexto nacional foi agravado com autoridades e técnicos tornando a morte de idosos em acontecimento inevitável e até aceitável, especialmente de aposentados. A morte dos velhos brasileiros chegou a ser vista como algo positivo para o desempenho econômico em uma crise sanitária que desde seu início foi entendida como uma gripe sem importância pelo alto escalão da República.
Em uma reunião com a equipe do Ministério da Saúde em maio, Solange Vieira, da Superintendência de Seguros Privados (Susep), teria dito, segundo noticiou a imprensa na época, que a concentração da doença entre idosos poderia ser positiva para melhorar o desempenho econômico do Brasil, já que reduziria o rombo nas contas da Previdência. Dia a dia, o Brasil confirmava a estatística internacional. Dados do Ministério da Saúde mostravam que quase 70% das mortes até junho por covid-19 eram de pessoas com mais de 60 anos, e que 65% desse total tinham pelo menos uma comorbidade, sendo as cardiopatias a principal delas. No início de maio, a Organização das Nações Unidas manifestou preocupação sobre os efeitos da pandemia sobre os idosos em mensagem de António Guterres, seu secretário-geral (Radis 213), já que a covid-19 estava causando “medo e sofrimento incalculáveis para pessoas idosas em todo o mundo”. “Nenhuma pessoa, jovem ou velha, é dispensável”, dizia o relatório da ONU.
Dona Maria Severina da Silva é exemplo de uma das vidas únicas e indispensáveis que contrariou as estatísticas. Aos 101 anos, sem visão há 20 devido ao glaucoma, ela teve covid-19 e voltou para casa. “Eu fiquei boa. Estou tomando banho, mas comendo pouco. Não tenho muita fome”, disse à Radis, numa conversa rápida e cheia de bom-humor. Evangélica, ela atribui a cura a Deus. “Eu sei que Ele tem poder, mas não precisou de mim agora e deixou eu ficar um tempo a mais aqui”, brincou a centenária, que na vida teve nove filhos, de dois casamentos, e uma família numerosa que chega a tetranetos.
Olga Benedita da Silva, filha Maria Severina, conta que a mãe teve cansaço, febre e falta de ar e foi levada à Unidade Básica de Saúde de Tracunhaém, município da Zona da Mata de Pernambuco, a 60 quilômetros do Recife. De lá, foi transferida para o hospital de campanha instalado no centro da capital. Foram nove dias na UTI. Junto à mãe, Olga, que é cabeleireira e tem 60 anos, também comemora a sua volta para casa. Em maio, ela viajou a São Paulo para ver as filhas e descobriu que também estava infectada. Duas de suas filhas e uma neta apresentaram apenas sintomas leves, mas Olga não teve a mesma sorte. Com 50% do pulmão afetado, a cabeleireira foi logo internada no Hospital de Campanha do Pacaembu. “Quando eu soube que minha mãe estava doente, desejei saúde. Ela é uma pessoa forte, lúcida, ativa e cheia de energia. Anda com as próprias pernas, é uma guerreira. Uma lição de vida. E toda vida tem valor”, ressaltou.
Mortes antecipadas
“Envelhecer é um processo e as pessoas idosas não podem ser culpabilizadas pela condição de saúde e de vida que possuem”.
Karla Giacomim
Diante dos números assustadores, a covid-19 se encarregou de enterrar o benefício da longevidade, que tantos almejam. “Envelhecer é um processo e as pessoas idosas não podem ser culpabilizadas pela condição de saúde e de vida que possuem”, disse à Radis a geriatra Karla Giacomim. Segundo ela, a morte pode vir antes do previsto para qualquer pessoa, independentemente de sua idade. “É preciso entender que esses idosos também estão morrendo fora da época e de forma prematura. Porque se não houvesse a covid, eles poderiam não ter morrido”, assinala. Como tantos brasileiros, a médica conta que perdeu um amigo infectado pelo vírus. “Ele tinha 71 anos e, caso fosse cumprida sua expectativa de vida, teria chegado aos 82, se não tivesse havido esse encontro com a covid. Precisamos perceber que a morte é prematura mesmo na velhice”, reforça.
Para Karla, ainda persiste no Brasil que envelhece a passos largos a cultura de um país “tropical, alegre e jovial”. “O país precisa de políticas que deem respostas ao seu envelhecimento, mas continuamos apostando que isso ainda não aconteceu, porque a mesma negação da velhice que acontece em nível individual, também está presente em nível estrutural”, salienta. A médica observa que, de forma reveladora, os discursos sobre o envelhecimento sempre são falados para o outro. “A gente não vê isso nem mesmo no Legislativo, que é composto por parlamentares com mais de 60 anos. Ninguém fala ‘nós, os idosos’, mas são sempre ‘eles, os idosos’. Sempre é o outro. Ninguém pensa que vai ficar velho ou precisar de cuidado”, observa. Segundo ela, esse comportamento também é fruto do etarismo. “Não temos uma visão de velhice como perspectiva social. Se tudo correr bem, vamos envelhecer. E mais rápido do que a gente pensa, porque não percebemos o tempo passar para a gente, só percebemos passar no outro”, garante.
Política de cuidado
Um ponto que Karla destaca é que o etarismo é naturalizado em expressões corriqueiras, que muitas vezes não são percebidas como preconceituosas, o que pode em parte explicar a explosão de memes que até taxaram o vírus como “velhofóbico”. “Quando falamos que uma pessoa é um velho de espírito jovem, desqualificamos a velhice e na realidade dizemos que ele só é bacana porque guarda o espírito jovem”, afirma. Para a geriatra, essa é uma forma de negar o envelhecimento porque, no fundo, “não queremos ter a idade que temos ou admitimos ter as marcas do tempo”. A médica reforça que os matizes do etarismo podem vir disfarçados de um tipo de elogio ou negação do envelhecimento e até chegar ao cúmulo de negar o acesso à saúde, como foi aventado na pandemia.
Para Karla, todo esse contexto desfavorável faz com que envelhecer no Brasil seja um processo transcorrido entre dois medos, o de “não dar conta”, porque o idoso sabe que precisará de cuidado, e o de “dar trabalho”, porque alguém vai ter que parar de trabalhar para cuidar dele. “Todo mundo tem que perceber que se deixar para lutar por direitos quando for a sua vez, vai continuar pagando por isso. E pagando caro. Hoje, um terço dos cuidadores no Brasil pararam de trabalhar para cuidar, sem nenhum tipo de proteção social. Estamos construindo uma velhice mais desamparada se não pensarmos nessa política de cuidado”, alerta. “Vivemos em um Estado gerontofóbico em suas políticas públicas, apesar de o país ter 30 milhões de idosos e esse número crescer a cada dia. Uma velhice mais valorizada gera mais saúde”, assegura.
No final de março, em carta aberta dirigida ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDI), o Centro Internacional de Longevidade – Brasil (ILC-BR) — do qual a médica é ponto focal para o estado de Minas Gerais, onde atua — alertou que “não é fácil envelhecer em um país com alto índice de desigualdade social intimamente ligada às questões de raça, etnia e gênero, e com grandes dificuldades para assumir o envelhecimento como uma prioridade política”. “Mais que nunca é necessário abraçar uma cultura do cuidado. Isso implica também em cuidar dos cuidadores, a maioria mulheres, muitas delas também carentes, com doenças crônicas e necessitando de suporte emocional. Se o cuidado, formal ou informal ruir, o impacto da pandemia será imensurável tanto do ponto de vista econômico como social”, disse a carta.
O comunicado do ILC-BR lembrou também que, muito embora os idosos institucionalizados estejam entre os mais vulneráveis, eles representam menos de 1% da população idosa brasileira. “Há 30 milhões de idosos no Brasil que vivem na comunidade. Grande parte deles já estava cronicamente desassistida, em situação de pobreza ou miséria, totalmente dependentes de serviços públicos de saúde e sociais que sofreram cortes substanciais em seus orçamentos nos últimos anos”, alertou a carta.
Impactos da pandemia
Na pandemia, a geriatra Berenice Maria Werle passou a fazer atendimentos por teleconsulta a fim de preservar os pacientes idosos. A mudança na forma do atendimento trouxe impactos não previstos, como a intervenção de familiares. “Ajustei a medicação de uma paciente e ela não fez essa alteração porque foi impedida pelo filho. E falo de uma pessoa autônoma, que mora sozinha”, exemplifica. O caso é usado pela médica para mostrar o quanto a pandemia revelou o modo como muitas famílias lidam com seus idosos. “A pandemia facilitou esse tipo de acesso, necessário no caso, mas ele começou a partir da proibição da família de que o idoso saísse de casa. A princípio com intuito de proteger. Mas se essa pessoa tem autonomia, ela poderia decidir sobre isso sem que ocorresse a intervenção da família”, avalia.
A geriatra é presidente da seção do Rio Grande do Sul da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG-RS), e ligada ao Instituto Moriguchi, um centro de estudos sobre envelhecimento, e acredita que a pandemia vai impactar de forma negativa em avanços conquistados nos últimos anos. De imediato, ela percebe que o sentido das Instituições de Longa Permanência (ILPI), como são chamadas as residências públicas e privadas que prestam atendimento integral a idosos, foi duramente afetado com o alto número de mortes de idosos ocorrido em instituições fora do país. “Todo o esforço feito nos últimos dez anos para desconstruir a visão negativa dessas instituições como um depósito de idosos foi perdido”, diz. Dados da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), divulgados em junho, mostram que houve um número importante de óbitos na população residente em ILPIs.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que aproximadamente metade das mortes relacionadas ao coronavírus na Europa ocorreram em instituições de longa permanência: 85% das mortes no Canadá, 39% na Alemanha, 64% na Bélgica e 49% na França. A geriatra identifica que esse contexto de perdas faz surgir também um certo “ranço” social de ver a clínica geriátrica como um “depósito de velhos malcuidados”. “Há anos que mostramos as vantagens de uma ILPI com boa estrutura e equipe, qual o seu benefício, para quem é dirigida”, observa. “Tudo isso foi perdido. Teremos que reconquistar as pessoas mostrando o quanto é seguro e benéfico um idoso estar em um ambiente como esse”, diz.
Estimativas da SBGG informam que há 78 mil idosos em instituições credenciadas no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), mas não há um número oficial sobre o total desses estabelecimentos no país. A última estatística é do Censo Nacional das ILPIs, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que revelou que, entre 2007 e 2010, havia 90 mil idosos vivendo em instituições deste modelo. Esse total correspondia a aproximadamente 1% do total da população idosa, sendo que a maior parte das entidades era privada filantrópica.
Estabelecer protocolos e normatizações é um dos objetivos da Frente Nacional de Fortalecimento às Instituições de Longa Permanência para Idosos. Coordenada por Karla Giacomin e composta por especialistas, trabalhadores, gestores e pesquisadores, a Frente produziu dois relatórios para subsidiar a Comissão de Defesa dos Direitos do Idoso na Câmara, no enfrentamento da pandemia, com ênfase nas ILPIs, e fornecer boas práticas para os profissionais que atuam nessas instituições de acolhimento. Os documentos pedem uma intervenção urgente do Estado, lembrando que pessoas que vivem em ILPIs estão ainda mais vulneráveis e correm o risco maior de infecção e desfechos adversos por viverem muito próximas umas das outras.
No final de junho, o governo federal promulgou a Lei nº 14.018/2020 destinando R$ 160 milhões para ações de prevenção e controle da covid-19, compra de insumos, equipamentos e medicamentos e adequação de espaços físico de ILPIs. Segundo Karla informou à Radis, a lei não explicita os critérios para o repasse, o que fez com a Frente lançasse, em 23 de julho, a campanha “Todo idoso importa”, pedindo a inclusão de todas as ILPIs, públicas e privadas, em programas de auxílio e transferência de recursos. “Infelizmente, a lei foi publicada e até agora os recursos não chegaram aos destinatários”, confirmou Karla, no fim de agosto.
Aprendizado conjunto
Além da legislação, Berenice lembra também que, para mudar mentalidades e evitar situações de etarismo, é preciso apostar em projetos ligados ao convívio intergeracional. Segundo ela, a convivência entre gerações é um traço de outra cultura, a oriental, que, tal como povos tradicionais, tem nos idosos fontes de exemplo e sabedoria. “Os idosos são vistos como consultores-mestres que permitem que as pessoas deem passos mais seguros. Eles possuem experiência e podem dar opções e apresentar as questões de um ângulo diferente”, diz. Ela cita como exemplo o estímulo à convivência entre idosos e crianças que pode fortalecer laços familiares e comunitários. “Precisamos educar as crianças para que elas percebam qual o papel e a importância dos idosos na sociedade”, afirma.
“É preciso deixar que o idoso reconquiste o seu espaço. E temos que nos policiar para deixar de achar engraçadas questões que afetam o envelhecimento”.
Berenice Werle
Por meio de atividades, a médica acredita que as crianças não só passam a compreender e valorizar os idosos como também se tornam multiplicadoras desse novo olhar sobre eles. Além disso, ela vê também como necessária a reinserção de idosos no mercado de trabalho, quebrando o estereótipo da ineficiência das pessoas idosas. “É preciso deixar que o idoso reconquiste o seu espaço. E temos de nos policiar para deixar de achar engraçadas questões que afetam o envelhecimento, como chamar o avô de gagá numa festa”, observa.
Esse preconceito que emerge de situações risíveis está amparado em um contexto que sempre coloca o idoso numa posição ainda mais vulnerável. Ouvido pela reportagem da Radis, o professor Fernando Fontanella, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), entende que memes e piadas revelam, com crueldade, a visão que as pessoas têm sobre a pessoa idosa e o ciclo de vida. “Qual o papel do idoso? A de que ele já deu o que tinha de dar. Esse imaginário emerge no meme, não é criado por ele. O meme não traz nada que não estivesse ali”, afirma. “O meme é algo usável para falar da vida da gente. Por trás de todo o discurso está um questionamento sobre o ciclo de vida. Há décadas estamos desmontando essas visões, mas, institucionalmente, isso ocorre apenas no discurso oficial. O imaginário e o cotidiano não foram transformados e os memes revelam o que foi criado sobre a velhice e o idoso. E isso é algo que perturba, porque mostra como ainda temos que lutar para acabar com esse preconceito geracional”, salienta.
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