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Da casa de Victor Hugo de Sousa Nunes, em Santarém, até o seu local de trabalho, em Mojuí dos Campos, são 35 quilômetros, que ele percorre de moto, diariamente. Funcionário público municipal, desde março do ano passado vem atuando como trabalhador da saúde, na linha de frente do combate à covid. Como condutor de ambulância, foi ele quem levou até o hospital um casal de idosos, que acabaram se tornando as primeiras vítimas do novo coronavírus no pequeno município de pouco mais de 16 mil habitantes, no oeste do Pará. Fato que ele não esquece um só dia, desde que aconteceu em maio de 2020: “Quando a esposa veio a óbito, a gente não contou ao marido. Mas ele faleceu também pouco tempo depois”.

A entrevista com Radis se deu em um domingo de junho último, quando Victor Hugo estava de folga. Na véspera, o Brasil tinha alcançado a assustadora marca de 500 mil mortos por covid-19 e era muito mais do que um número para o rapaz de 21 anos. “Tanto meu lado profissional como o de ser humano se espantam nessa hora”, diz, lembrando do casal de um ano atrás e de todos os outros casos que passaram por suas mãos. “Estamos vivendo uma guerra. A gente está no campo de batalha e esse é um inimigo que a gente não vê”.

Os sinais desse cenário bélico foram ficando cada vez mais evidentes. Até mesmo para se deslocar do município onde mora para a cidade vizinha em que trabalha, Victor Hugo precisava exibir uma autorização. As fronteiras entre os municípios estavam fechadas e o passe-livre era garantido somente a alguns tipos de trabalhadores, entre eles os da saúde.

Foi nesse momento que tomou a decisão de mudar de casa e passou a morar apenas com o irmão, um ano mais novo. Não queria colocar em risco a vida dos avós de 90 e 74 anos nem a da mãe, de 51. Isolado, ficou meses trocando apenas mensagens ou falando por videochamadas com a família. Na nova rotina, só usava macacões especiais, máscaras, toucas, viseiras e outros Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), que ele não tinha usado nem mesmo durante o surto de sarampo que acometeu a região em 2018. Os dias de folga na frente da TV assistindo a Breaking bad e The big bang theory, suas séries favoritas, foram substituídos pelos plantões cada vez mais frequentes. “Em muitos momentos, precisei trabalhar 24 horas ininterruptas porque colegas de trabalho eram afastados por conta da covid”, recorda.

Também aconteceu com ele. Victor Hugo testou positivo para covid em novembro de 2020. De assintomático passou à forma branda da doença, mas chegou a perder olfato e paladar e sentir cansaço extremo e muitas dores no corpo. Ficou afastado. “Nessas horas eu e meus companheiros de trabalho tentamos dar o melhor da gente para que sempre tenha funcionário disponível para cobrir as demandas”. Em maio último, quando voltava de um plantão noturno, Victor Hugo sofreu um acidente. Na manhã do Dia das Mães, chovia muito e o rapaz derrapou com a moto na pista escorregadia. Ficou 15 dias afastado do trabalho com uma luxação no ombro e a clavícula trincada.

A sequela fez com que ele precisasse trocar de função: desde então, de motorista de ambulância passou a trabalhar em um carro de apoio conduzindo médicos e enfermeiros até os bairros mais distantes dos centros urbanos e comunidades ribeirinhas, atravessando rios e pontes, estradas vicinais, áreas de pouco ou nenhum acesso. “É que na ambulância, o trabalho requer um certo esforço físico”, explica. “É preciso estar em boas condições porque às vezes precisamos carregar um paciente ou prestar um socorro mais direto à vítima”.

Victor Hugo é todo orgulho do trabalho que desempenha. Mas se o reconhecimento chega na forma de agradecimento pela boca de alguns, ele também cita os casos de discriminação e preconceito que já sofreu. “No início da pandemia, se eu fosse fazer compras em um supermercado local, onde sou conhecido, torciam o rosto e me olhavam estranho”, conta. “Acho que eles pensavam que eu estava com o vírus ou com a doença”.

Como trabalhador da saúde, no dia da nossa entrevista, Victor Hugo já estava com as duas doses em dia, mas ele ainda se assusta com a recusa da população em tomar a vacina ou com aqueles que escolhem o tipo de fabricante antes da imunização. “Há muita desinformação e notícia falsa disputando espaço com a ciência e com o nosso trabalho”, diz o rapaz, que não mede esforços na condução de veículos para fazer a vacina chegar a todos. É nisso o que pensa todas as manhãs, ao deixar a família com quem voltou a morar recentemente, e pegar a estrada para fazer o seu trabalho — um trabalho anônimo e muitas vezes invisibilizado, como pretende demonstrar a pesquisa “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil”, coordenada por Maria Helena Machado (Ensp/Fiocruz).

[Leia a entrevista clicando aqui]

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