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Uma mãe cientista que resolveu fazer um livro para explicar como funcionam nossas células e o maravilhoso mundo visível apenas ao microscópio. Bióloga, especialista em genética, com mestrado e doutorado pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) e pós-doutorados nas áreas de Genética, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ciências Médicas e Microbiologia e Parasitologia Aplicadas, ambos pela Universidade Federal Fluminense (UFF): o currículo de Raquel da Hora é extenso. Ela se orgulha, em igual medida, de seu trabalho de divulgação científica nas redes sociais, com a página Quero ser cientista, e com a literatura em que busca popularizar a ciência para crianças.

Mãe de Davi e Benjamin, de 8 e 11 anos, ela viu em muitos momentos a vida pessoal atravessar suas pesquisas e vice-versa, como ter feito boa parte de seus estudos no INCA após a perda do pai para o câncer. Ou ter entrado para um dos grupos de pesquisas pioneiros que estudavam as relações entre o zika vírus e a microcefalia em bebês, logo após ter dado à luz ao segundo filho. 

Se voltarmos ainda mais no tempo, a pequena Raquel, que cresceu em Bangu, no subúrbio do Rio de Janeiro, um dia afirmou que seria cientista. E hoje busca despertar o interesse de crianças e jovens pela ciência na internet, em sala de aula ou por meio de seu livro O Maravilhoso Mundo da Célula. Para se aprofundar mais sobre a melhor forma de fazer isso, ela se tornou aluna da especialização em Divulgação e Popularização da Ciência da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Raquel conversou com Radis sobre as diferentes formas de fazer a ciência estar mais próxima do cotidiano de crianças e adolescentes, de maneira inclusiva, interessante e didática.

Raquel é pesquisadora, mãe do Davi e do Benjamin e criadora da página Quero ser cientista, do instagram. — Foto: arquivo pessoal.
Raquel é pesquisadora, mãe do Davi e do Benjamin e criadora da página Quero ser cientista, do instagram. — Foto: arquivo pessoal.

Como a pequena Raquel cresceu e se tornou cientista?

Sempre fui muito curiosa, muito ‘perguntadeira’ e isso tem a ver um pouco com a história da página Quero ser cientista. Sou bióloga, formada em licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas e depois fiz mestrado e doutorado na divisão de Genética do Instituto Nacional do Câncer (INCA) quando desenvolvi projetos sobre retinoblastoma, um tipo de câncer infantil que acomete os olhos e pode levar à cegueira, se não houver um tratamento urgente. Mas um pouquinho antes disso, durante o meu Ensino Médio, fiz o curso de formação de professores. Cheguei a trabalhar um ano com crianças, na educação infantil. A questão do lúdico na infância é algo que sempre acompanhou a minha carreira. Quanto à genética, quando fui fazer Ciências Biológicas, logo se tornou minha área de interesse porque meu pai foi paciente oncológico e, infelizmente, faleceu. A temática do câncer foi algo que atravessou a minha juventude.

Como foi conciliar maternidade e pesquisa científica?

Mais adiante, no meu primeiro pós-doutorado, tive o meu primeiro filho e resolvi fazer uma pausa porque era um verdadeiro malabarismo, estava sem rede de apoio e não ficava bem com aquela situação. Decidi parar. Ao retornar, quando o Davi já tinha dois anos, resolvi ir para o programa de Microbiologia e Parasitologia Aplicadas da Universidade Federal Fluminense (UFF). Continuei na área de Genética, mas dessa vez, tratando mulheres que tinham desenvolvido HPV. E no final do primeiro ano do pós-doutorado, já desenvolvendo trabalho, me descobri grávida novamente e pensava: “Nossa, mas acabei de voltar e vou ter que parar de novo? Dessa vez não posso parar, esse bebê vai junto comigo até quando eu aguentar com essa barrigona”. E aí tive o Benjamin.

Como sua experiência como mãe ajudou a ampliar o seu olhar de pesquisadora?

Em 2015, foi o momento em que estavam nascendo muitas crianças com microcefalia. Até então ninguém sabia exatamente que era por causa de um vírus. Fui chamada para integrar um grupo de pesquisa na UFF sobre a relação entre zika e microcefalia e isso foi ainda mais importante no processo de humanização, pois estava ali diante de mães e eu também mãe de um bebezinho. Foi um trabalho do qual tenho muito orgulho de ter participado, pois queríamos fazer isso da forma menos traumática possível para as mães e resolvemos estudar a genética das células oculares, para ter acesso ao sistema nervoso e, assim, colhíamos nosso material a partir da lágrima dos bebês. Cada vez que você pisca, lubrifica e tem célula se soltando da camada ocular. Todo mundo me perguntava como eu fazia o bebê chorar (risos). A oftalmologista pingava um colírio que não interferia nas células e desenvolvi uma ‘membraninha’ de papel, bem fininha, que não machucava e, com isso, conseguíamos uma boa quantidade de células. Acompanhamos crianças que tinham desenvolvido microcefalia cujas mães foram confirmadas com zika durante a gestação. E fui conversar com todas elas, eu com um bebê pequenininho, cheia de leite, e foi muito lindo participar disso. Sou apaixonada pela ciência e muitas vezes vejo esses atravessamentos ocorrendo entre vida e ciência.

A autora com as duas edições do livro: em braile, lançada em 2023 e a primeira edição, de 2022. — Foto: arquivo pessoal.
A autora com as duas edições do livro: em braile, lançada em 2023 e a primeira edição, de 2022. — Foto: arquivo pessoal.

Como surgiu a página Quero ser cientista?

Surgiu da minha lembrança de que, desde criança, eu já falava que queria ser cientista. E de onde veio essa afirmação? Havia o trabalho que hoje é do agente comunitário, de recolher amostras de água parada nos tubinhos para verificar se havia larva do mosquito Aedes Aegypti. Sempre fui muito curiosa, gostava de fazer perguntas. O moço que fazia esse trabalho foi me explicando e, entre tantas perguntas, ele falou assim: “Nossa, você tem todo jeito para ser cientista!” E eu perguntei: “O que o cientista faz?” Aí ele respondeu: “Faz perguntas o tempo todo”. E me deu alguns tubinhos, me explicou como fazer a coleta e levei tudo para a escola. 

Em que momento você percebeu que o trabalho de divulgação científica seria uma forma de alcançar mais pessoas?

Já nos Estados Unidos para fazer pesquisa, antes da pandemia, me deparei com a notícia sobre um estudo realizado por pesquisadores da COC/Fiocruz em que foram entrevistados uns dois mil jovens e eles desconheciam nomes de cientistas nacionais, mesmo que boa parte deles afirmasse ter interesse na área de ciência. E aquilo me atravessou de uma forma, que pensei: “Poxa, sou cientista e o que eu faço é muito legal. Mas estou falando apenas para os meus pares. Qual vai ser o momento de começar a falar com a sociedade? E como falar?” Aí criei a página com esse nome, não no sentido de convencer que todos se tornem cientistas, mas com o objetivo de popularizar a ciência e mostrar o que um cientista faz. Comecei tirando fotos do que eu fazia e acabei dialogando muito com as mães, porque publicava bastante com os meus filhos. Nesse caso, a cientista é mãe e mulher também. A princípio, o conteúdo era voltado para crianças e jovens. Vários estudos mostram que é na infância que a curiosidade é mais aguçada. E com o tempo isso vai se perdendo. Não é que elas se tornem totalmente desinteressadas, mas muitos estudos apontam que isso acontece muito mais em meninas. Existe uma janela de idade em que elas podem começar a se achar menos capazes para os diferentes tipos de ciências, como tecnologia, matemática e artes. Por isso, acabei direcionando também para um público de meninas na ciência. 

Como foi a experiência de despertar o interesse pela ciência em sala de aula?

Estar mais em contato com a questão do letramento científico me fez voltar a pensar sobre essa questão da janela de tempo: é na Educação Básica justamente em que as meninas começam a se sentir menos capazes. Então me coloquei à disposição para ser uma cientista em sala de aula. Nunca havia passado por essa experiência, com adolescentes e crianças, porque lá atrás trabalhei na educação infantil, ou seja, com crianças muito pequeninas. Fui para uma escola rural no município de São Pedro da Aldeia (RJ). Estavam sem professores de ciência. Peguei turmas do sexto ao nono ano do ensino fundamental. E é uma experiência incrível estar dentro da sala de aula, sendo professora de ciências e cientista ao mesmo tempo. Se eu já admirava os professores antes, hoje eu os considero os meus super-heróis brasileiros. E consegui perceber as dificuldades de levar projetos: quem está de fora pode achar que é simples implementar em sala de aula, mas não é.

E como nasceu O Maravilhoso Mundo da Célula?

Eu sentia falta de um livro sobre a prática do cientista para as crianças. Publiquei O Maravilhoso Mundo da Célula no fim de 2022. O lançamento foi na Flip [Festa Literária Internacional de Paraty] e, em braile, saiu recentemente na Bienal de 2023. Toda a história foi pensada como uma grande brincadeira. Meu filho mais velho é autista com nível 1 de suporte e altas habilidades. E ele também começou a falar que queria ser cientista como a mãe e eu o levei ao laboratório. Esse primeiro livro foi muito pensando neles também, como se eu estivesse contando para eles como é o meu trabalho. É como se eu quisesse dizer: “Olha o que eu faço, como é legal. Como a célula é incrível e maravilhosa, como a gente usa o microscópio…”

Como surgiu a possibilidade de fazer um livro inclusivo?

A escolha da editora foi bem consciente porque queria que fosse um lugar que tivesse uma proposta inclusiva, para ser publicado em braile, em livro narrado com a opção em Libras e, mais recentemente, com a possibilidade de pictograma para crianças do espectro autista. Fazer o livro em braile é algo que conversa muito comigo por ter trabalhado por quase 20 anos com uma doença que afeta os olhos e pode levar à cegueira. Comecei a pensar como as crianças que conheci lá atrás durante a pesquisa poderiam ter acesso a algum conhecimento que estou publicando. 

Como fazer com que esse movimento de popularização da ciência chegue a todas as crianças e jovens?

Quando comecei a fazer a página, me deparei com uma frase da astronauta Sally Ride [primeira mulher estadunidense a viajar para o espaço], que traduzindo é: “A gente não pode ser aquilo que a gente não pode ver”. Então, se não tivermos o contato, fica muito difícil. É preciso ter referências para mostrar para crianças e jovens o que o cientista faz e que não somos apenas aqueles que estão no laboratório, já que temos vários tipos de ciências. Quais foram as minhas referências para ser hoje uma cientista? Para as crianças e jovens de agora, temos a incrível doutora Jaqueline Góes [biomédica que coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus da covid-19]. Inclusive na minha primeira aula como professora da escola rural, resolvi levar o tema das mulheres nas ciências e falei sobre a doutora Jaqueline. É uma referência que impacta bastante. É um trabalho de formiguinha, mas o caminho, ao meu ver, é tentar garantir o acesso e trazer as referências para que eles possam concretizar isso cada vez mais, ou seja, fazer valer a expressão “Ciência para todos”.

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