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No alto de uma ladeira na Estrada do Guandu, em Campo Grande, na zona Oeste do Rio de Janeiro, há espaço para Cristo ou Oxalá. Os fios de contas — utensílio religioso usado por umbandistas — espalhados pelas árvores mostram que aquele é um terreiro de umbanda, mas evangélicos e praticantes de outras religiões são recebidos nas aulas de informática e corte e costura oferecidas aos 520 alunos que frequentam a Casa do Perdão, dirigida por mãe Flávia Pinto.

Essa convivência pacífica entre diferentes religiões, infelizmente, não está presente em todos os espaços da realidade brasileira. De acordo com dados do Disque 100, sistema de denúncia vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, foram registrados 231 casos de intolerância religiosa em 2013 em todo o país — 21,93% das ocorrências em São Paulo e 17,11% no Rio de Janeiro. As principais vítimas são praticantes das religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, mas também espíritas, mulçumanos e até mesmo evangélicos.

Relatos de terreiros invadidos e depredados em diferentes cidades do país, inclusive com o aval de traficantes, somam-se a histórias de vidas afetadas pela intolerância, como o caso noticiado em 2014 de um menino de 12 anos impedido de entrar em uma escola da rede pública do Rio de Janeiro por usar adereços religiosos do candomblé. Atos como esses ferem a liberdade religiosa e a proteção aos locais de culto e liturgias, direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988.

Conhecer a própria história

A luta dos movimentos sociais contra a intolerância religiosa no Brasil cresceu após a morte da iyalorixá Gildásia dos Santos, conhecida como mãe Gilda de Ogum, em Salvador, no ano de 1999. Depois que sua foto vestida com trajes religiosos ilustrou a matéria do jornal Folha Universal, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, a mãe de santo teve seu terreiro invadido, o marido agredido e, vítima de um infarto, faleceu no dia 21 de janeiro de 2000.

A data foi escolhida, de acordo com a Lei 11.635 de 2007, para lembrar o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e mãe Gilda se tornou símbolo da luta. De lá para cá, os movimentos sociais em defesa da liberdade religiosa se organizaram para cobrar dos governos políticas que garantam o direito de cada um professar a sua fé. O principal ato de mobilização passou a ser uma caminhada que celebra a convivência pacífica entre os credos e acontece todo mês de setembro no Rio de Janeiro, por iniciativa da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, que tem à frente o babalaô Ivanir dos Santos.

Para a umbandista Flávia Pinto, dirigente da Casa do Perdão e integrante da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura do Rio de Janeiro, a umbanda e outras práticas semelhantes são as maiores vítimas da intolerância porque são religiões oriundas dos povos negros e indígenas. “Há uma grande dificuldade de a humanidade entender que existem diferentes culturas, origens étnicas e fenômenos religiosos”, explica. Ela também considera que o preconceito é reflexo de um país que desconhece sua própria história e ignora a influência africana em sua cultura, o que começa a ser revertido pela presença obrigatória da história e cultura afro-brasileira no currículo das escolas, como determina a Lei 10.639 de 2003.

Para conter o avanço da intolerância, o chamado “povo de santo” (praticantes de religiões de matriz africana) iniciou uma mobilização nacional depois que um grupo denominado “Gladiadores do Altar”, ligado à Igreja Universal, divulgou vídeos na internet defendendo uma visão militarista da religião. Em atos organizados em 26 estados brasileiros, o movimento requer do Ministério Público Federal (MPF) que investigue a atuação deste segmento. Em carta escrita pelo dirigente da Casa de Oxumarê, em Salvador, Sivanilton Encarnação da Mata (Babá Pecê), e entregue ao MPF em março, os praticantes das religiões afro-brasileiras também pedem a realização de uma audiência pública para debater práticas como proselitismo religioso, conversões forçadas e coações psicológicas e defendem a liberdade de consciência e de crença garantidas na Constituição.

Política para todos e todas

A política pública deve ser de todos, não apenas de uma religião em particular. Essa é a principal bandeira defendida pela professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Christina Vital, também integrante do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e do Movimento Inter-Religioso (MIR). Ela cita o caso dos direitos de cidadania que são impactados pelas escolhas religiosas de alguns grupos, como ocorre nas discussões sobre aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e obrigatoriedade do ensino religioso. “As tensões religiosas no espaço privado e filosófico sempre vão existir, o que não se pode fazer em termos de políticas públicas é deixar que essa tensão extrapole e vá para o campo da violência simbólica ou física”, aponta.

Ela considera que as religiões são livres para ter seus preceitos em âmbito privado, mas tais crenças não devem influenciar as discussões públicas, como tem acontecido na saúde e em outros direitos. “A saúde é um direito universal, de todos, não é para ser pautada por grupos. Já a religião é dos adeptos desta ou daquela crença, que se convertem ou aderem de modo permanente ou momentâneo”, enfatiza, ao dizer que não se pode obrigar determinado credo a aceitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas o Estado precisa garantir esse direito, na esfera civil (não-religiosa), pois se trata de uma demanda de um segmento da sociedade.

Sabedoria popular

Um dos ensinamentos dos ancestrais negros e indígenas é ouvir os mais velhos. Por isso Flávia repete o dito de sua mãe de santo, a candomblecista Beata de Iyemonjá: “Não basta ser tolerado, precisamos ser respeitados”. Para Flávia, tolerar é o mesmo que aturar o errado. “As pessoas precisam entender que cada um tem o direito de existir e pensar diferente, inclusive do ponto de vista religioso”, destaca.

Ela também enfatiza a necessidade de desconstruir a imagem de que os terreiros são locais de culto para o mal. “Na realidade, todo terreiro é um núcleo de assistência social, de promoção da saúde pública e da cidadania. O terreiro é um verdadeiro quilombo urbano”, aponta a mãe de santo, ao enfatizar que os núcleos religiosos, independente do credo, prestam orientação complementar a casos de conflitos familiares, pedofilia e até mesmo de dificuldade de aceitação dos indivíduos.

Essa sabedoria popular não reflete a violência da qual os terreiros são vítimas, como mostra a pesquisa de mapeamento de casas religiosas de matriz africana, organizada pelas pesquisadoras Denise Pini e Sônia Giacomini, vinculadas à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). O levantamento indicou que, das 840 casas pesquisadas, mais da metade (430) declararam já ter sofrido algum ato de discriminação, principalmente da parte de vizinhos. Os dados geraram o livro “Presença de Axé” (Editora Pallas).

Para Flávia, o preconceito também é observado no acesso discriminatório aos órgãos públicos, como postos de saúde e escolas, e até mesmo no sistema prisional, onde padres e pastores têm privilégio na assistência aos presos em comparação com outros segmentos religiosos. “O preconceito adoece a pessoa que é vítima. O branco na nossa religião é sagrado e o fio de contas é um elemento de proteção, mas se você está ‘paramentado’ você passa a ser olhado de outra maneira”, cita a mãe de santo, mencionando a dificuldade de acesso aos serviços públicos para os filhos de santo, o que constitui uma das faces do preconceito e racismo institucional.

Religião e política

Autora do livro “Religião e Política”, junto com Paulo Victor Leite, Christina Vital aponta a crescente atuação do segmento evangélico neopentecostal na política brasileira desde os anos 1990. Segundo ela, a temática da intolerância religiosa ganha um sentido estratégico a partir desses conflitos, porque até então havia certa acomodação entre os grupos que permitia uma convivência entre eles.

“A partir dos anos 1990, o crescimento do segmento evangélico leva a um novo arranjo de todos os atores do campo religioso brasileiro, porque esse grupo tem um modo de atuação no espaço público que rivaliza por presença, diferente dos religiosos de matriz africana que tinham uma ação que possibilitava essa coexistência”, explica, ao citar o episódio em que um bispo da Igreja Universal chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida na TV Record, em 1995, como um marco para essa nova fase dos conflitos religiosos no Brasil.

Vozes da paz

Não importa se é Cristo, Oxalá ou Alá. Ou até mesmo se não se crê em Deus ou deuses. A liberdade religiosa é um direito garantido pela Constituição Brasileira, assim como por acordos internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica (a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969). E vale até mesmo para aqueles que não se consideram seguidores de uma religião, mas de uma concepção filosófica. É o caso de Athamis Bárbara, líder da tradição xamânica Ojibway, baseada nos ensinamentos dos índios dessa etnia, proveniente do norte dos Estados Unidos e sul do Canadá.

Integrante do Movimento Inter-Religioso, que surgiu durante a Convenção das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ECO-92), em 1992, Athamis professa uma prática religiosa conhecida como xamanismo, baseada nos ensinamentos dos povos originários da América do Norte e do Sul. “Eu não professo, mas respeito, a forma de pensar de um cristão. Por isso também queremos ser respeitados na hora que tocamos o nosso tambor ou fumamos o nosso cachimbo”, pontua. Para ela, falta informação sobre tradições religiosas pouco conhecidas, como a sua.

O desconhecimento em torno de suas crenças, somado a uma imagem pejorativa veiculada na mídia, também prejudica a liberdade religiosa dos mulçumanos, segundo Sami Isbelle, diretor educacional da Sociedade Beneficente Mulçumana do Rio de Janeiro. Atentados praticados por grupos extremistas, como o que aconteceu na França contra o jornal Charlie Hebdo, aumentaram a Christina, do Iser, defende que as políticas públicas devem ser de todos e não apenas de uma religião em particular RADIS 152 • MAI / 2015 [23] Criada em 1993 e formalizada por um estatuto em 2003, a Frente Parlamentar Evangélica reúne atualmente cerca de 70 deputados na defesa de princípios conservadores e para barrar políticas ligadas principalmente aos direitos da população LGBT, das mulheres e dos povos de terreiro. Um dos principais focos desse grupo se concentrou na Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo pastor Marco Feliciano (PSC) entre 2013 e 2014. Como explica Christina Vital, a atuação desse segmento se deu pela ocupação de áreas estratégicas da Câmara, como a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), por onde passam todos os projetos da casa legislativa, e na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), que aprova as concessões de rádio e TV, outra moeda importante para o fortalecimento desse grupo político e religioso. hostilidade contra os mulçumanos, mas Sami ressalta que é importante lembrar que os atos terroristas não podem ser atribuídos a uma religião. “O Islam é a religião da paz e da harmonia, sendo muito triste vê-lo associado ao terror e à barbárie”, destaca. Ele também explica que o Alcorão, livro sagrado para a religião, respeita o livre-arbítrio e proíbe que um mulçumano imponha sua fé aos outros.

Outra liderança que defende o diálogo inter- -religioso é a pastora da igreja Luterana, Lusmarina Campos Garcia, presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Rio de Janeiro, formado pela Igreja Católica Romana e pelas igrejas Ortodoxa, Presbiteriana, Anglicana, Batista e Luterana. Para ela, a intolerância religiosa é fruto de um processo de afirmação da identidade pela negação do outro. “Alguns segmentos cristãos mais radicais têm um discurso tido como verdade única, que nega a possibilidade de que outros também sejam portadores da verdade”, explica, destacando que há uma distorção da mensagem do Evangelho entre esses segmentos.

Ao citar o caso dos “Gladiadores do Altar”, Lusmarina aponta que essa linguagem de guerra é uma forma de exploração do sofrimento e da falta de informação das pessoas. A pastora integrou o primeiro grupo inter-religioso formado durante a ECO-92, existente ainda hoje e que defende uma cultura de paz entre as religiões, e protagonizou um ato que se tornou símbolo de convivência entre as diferenças, ao propor a arrecadação de fundos para a reconstrução de um terreiro queimado por atos de intolerância, em Duque de Caxias (RJ). Atos como esse mostram que não se pode “andar com fé” sem respeito e aceitação da diferença.

Saiba mais

Combate à Intolerância Religiosa e Defesa do Estado Laico (Ministério Público): http://goo.gl/2IzQj7

Religião e Política (Christina Vital e Paulo Victor Leite Lopes): http://goo.gl/tfjzvK

Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR): http://ccir.org.br/

Mapeamento das Casas de Matriz Africana do Rio de Janeiro (PUC-RJ): http://www.nima.puc-rio.br/index.php/pt/mapeamentocrma-rj.html

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