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Durante todo o mês de maio, as chuvas — que tiveram início no final de abril — continuaram desabando sobre o Rio Grande do Sul com um volume assustador.  Depois de uma breve trégua que fez com que o nível do rio Guaíba, em Porto Alegre, baixasse um pouco, as águas voltaram a cair sobre os municípios gaúchos. Segundo a Defesa Civil, até 24/5, as chuvas já haviam provocado mais de 160 mortes. Outras 581 mil pessoas estavam desalojadas — 63 mil delas, em abrigos — e pelo menos 63 eram dadas como desaparecidas.

Em meio à tragédia climática, uma outra se abateu sobre o país: uma crescente onda de desinformação que também traz consequências danosas. Se, por um lado, houve uma imensa corrente de solidariedade para prestar ajuda às vítimas, por outro, não faltou quem impulsionasse mentiras sobre como a ajuda chegaria a quem precisa, como demonstrou um levantamento realizado pela Agência Lupa (18/5).

De acordo com a agência de checagem, as fake news iam desde mentiras sobre doações e resgates até notas que alimentavam o alarmismo, e envolviam ainda, em maior ou menor grau, a atuação dos governos na crise e a generalização de problemas específicos enfrentados em uma cidade, mas que não necessariamente ocorrem em outra região. 

Uma das primeiras fake news que ganhou destaque relacionava o show da cantora Madonna no Rio de Janeiro, em 4 de maio, à suposta falta de apoio do governo federal às vítimas da tragédia no Sul. Mas, ao contrário do que se divulgou, a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não destinou verba pública para a apresentação.

Nas redes sociais, também surgiram relatos de que caminhões carregados de donativos que se dirigiam ao Rio Grande do Sul só poderiam seguir viagem se tivessem nota fiscal dos itens. Nada disso era verdade. Não é o caso de ficar enumerando as mentiras que viralizaram nas redes. Basta dizer que a desinformação alimentou até mesmo a desconfiança em relação ao destino das doações. 

À Agência Lupa, a professora Yasmin Curzi, da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), explicou que conteúdos falsos como esses, têm um apelo emocional e geram comoção e indignação. “Por isso as pessoas curtem, engajam e compartilham muito mais do que notícias verdadeiras ou que explicam a tragédia”, disse.

Segundo a pesquisadora, esse tipo de contexto de pânico e vulnerabilidade extrema da população é favorável ao alcance das fake news. “Muitas pessoas perderam o acesso à TV e à possibilidade de assistir ao noticiário tradicional e contam apenas com o celular, por onde chega muita informação — muita informação sem qualidade. E aí muitos grupos se aproveitam para promover golpes, ruídos e tumultuar”, pontuou.

Outra agência de checagem, Aos Fatos, aproveitou para explicar por que espalhar desinformação sobre as enchentes agrava ainda mais a crise no Rio Grande do Sul. “Conteúdos descontextualizados — ocorridos em outros lugares ou em outras épocas — desviam a atenção de profissionais envolvidos no socorro às vítimas reais. Atrapalham resgates urgentes. Dividem esforços, em vez de somar”, destacou a jornalista Fernanda da Escóssia, na página de Aos Fatos (8/5). 

Para Natalia Viana, jornalista da Agência Pública, a desinformação sobre desastres como esse veio para ficar. “Mas há como combatê-la”, escreveu em sua coluna (14/5). Para ela, toda tragédia ou desastre, que chega a mobilizar a sociedade e unir as atenções — como é o caso da atual calamidade —, trará sempre consigo uma realidade alternativa, paralela, criada por redes de desinformação que acharão uma maneira de se beneficiar do caos. 

“Vivemos em um ambiente informativo altamente concentrado, privatizado e sem regras, um faroeste digital, em que as mentiras se espalham sete vezes mais que as verdades porque plataformas e mentirosos lucram juntos. Então, enquanto não se regular o ambiente em que viajam as notícias, assim será”, apontou. 

— Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini.

Inquérito

A Polícia Federal abriu (8/5) um inquérito para apurar a divulgação de conteúdos falsos sobre as enchentes no Rio Grande do Sul. A solicitação acolheu um pedido do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que por sua vez se baseou em uma recomendação da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. A Secom apresentou uma lista de publicações nas redes sociais com desinformação sobre a tragédia no estado e solicitou providências para individualizar as condutas.

— Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini.

“Outras agendas”

A desinformação não é provocada apenas pela fábrica de notícias falsas. Muitas vezes, vem embutida nas falas oficiais. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, chegou a reconhecer, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo (20/5), a existência de estudos que alertavam sobre o risco de que as mudanças climáticas provocassem fortes chuvas e inundações no estado. Mas justificou a falta de medidas preventivas mais rigorosas porque “o governo também vive outras pautas e agendas”, em especial àquelas relacionadas à questão fiscal.

No mesmo dia, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, o governador pediu desculpas por ter se “expressado mal”, disse reconhecer a ciência e “descobriu” da pior maneira o que acontece quando se ignoram os alertas científicos. Durante o programa, Eduardo Leite afirmou ainda que a responsabilidade pelos mecanismos de prevenção de desastres seria exclusividade dos municípios. Em sua newsletter enviada (25/5) a assinantes, o jornalista Leandro Demori explicou por que isso não é verdade.

Segundo a Lei 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, cabe aos municípios, ao estado e ao governo federal a execução do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil. “Ou seja, tentou empurrar aos municípios uma responsabilidade que também caberia ao governo do Estado”, apontou Demori.

— Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini.

Da lama ao caos outra vez

No breve período de dois dias em que o nível do Guaíba baixou, foi possível ver o caos de lama e lixo que se impunha, provocando ainda mais dor e desespero àqueles que ainda tentavam recomeçar. Na capital gaúcha, a rede de esgoto ficou comprometida, a sujeira entupiu bueiros, o barro subia pelos ralos. Pessoas que já haviam voltado para casa precisaram ser resgatadas às pressas. Mais uma vez, o poder público se mostrou ineficaz.

“É estarrecedor assistir à inoperância da prefeitura de Porto Alegre que, mais uma vez, subestimou alertas da previsão climática e não organizou um plano de evacuação adequado”, cravou o jornalista João Filho, em sua análise (25/5) para o Intercept Brasil. Quando o prefeito Sebastião Melo (MDB) finalmente reuniu a imprensa em coletiva disse que sabia que as chuvas ocorreriam, mas foi surpreendido pelo alto volume, escreveu o jornalista, apontando a contradição na fala do prefeito. 

Segundo o prefeito, os registros apontam que choveu 130 mm em um intervalo de 15 horas. Ocorre que o Instituto Nacional de Metereologia (Inmet) já havia alertado para o grande volume de chuvas, que poderia superar os 100 mm em algumas regiões. “Ou seja, o prefeito sabia da possibilidade de uma nova tragédia e nada fez”.

Números

73% da população brasileira vive em municípios com alto risco de alagamento, inundação, enxurrada ou deslizamento

São 142 municípios vulneráveis no Rio Grande do Sul. O número coloca o estado como o quarto com mais municípios listados, atrás de Minas Gerais (283), Santa Catarina (207) e São Paulo (172).

[Levantamento do Governo Federal publicado pela Agência Pública (17/5)]

Defesa Civil à míngua

Em reportagem (22/5) de fôlego, a Agência Pública, levantou que militares e políticos sem experiência estão à frente da Defesa Civil em cidades do Rio Grande do Sul e que, na maior parte dos municípios, a verba não chega a 0,01% do orçamento e só aumenta depois que desastres já ocorreram e o município recebe ajuda estadual ou federal para dar resposta aos danos.

O texto da investigação jornalística assinada por Rafael Oliveira reconhece que os coletes laranja da Defesa Civil se tornaram onipresentes no estado — até o governador Eduardo Leite (PSDB) trocou sua foto de perfil nas redes sociais por uma imagem utilizando o traje. “Mas, por trás dos coletes prestigiados, está uma estrutura de Defesa Civil precária, com baixo orçamento, falta de quadros qualificados, com o comando de aliados políticos sem nenhuma experiência prévia no tema, principalmente em pequenas cidades, ou nas mãos de militares, embora seja uma instituição civil”. Para ler a reportagem completa, que analisou o orçamento empenhado para a Defesa Civil por esses municípios e pelo estado nos últimos três anos, acesse aqui: https://apublica.org/2024/05/militares-e-politicos-sem-experiencia-estao-a-frente-da-defesa-civil-em-cidades-do-rs/

“O aspecto socioambiental é absolutamente imprescindível é vai estar no centro da discussão que nós vamos fazer, tanto do ponto de vista econômico, quanto da compreensão da vida das pessoas e de como elas se enxergam dentro desse processo de mudanças que vão acontecer daqui para frente”

[Paulo Pimenta, que deixou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) para assumir a Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, em entrevista (19/5) para veículos da mídia independente, ao comentar os planos e desafios do governo federal].

— Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini.

Quilombolas, indígenas, assentados…

O impacto dos temporais entre comunidades quilombolas, populações indígenas, assentados e pequenos agricultores é incalculável. Uma realidade “triste e desoladora”, afirmam os que foram ouvidos pela reportagem da Rede Brasil Atual (7/5). Segundo a Agência Brasil (16/5), todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio Grande do Sul foram afetadas.

Entre os indígenas, cerca de 30 mil foram atingidos pelas cheias extremas. Um conjunto de 22 organizações da sociedade civil que estão atuando na assistência emergencial a esses povos divulgou (16/5) uma carta aberta sobre a situação. O documento apresenta um balanço do que vem sendo feito ao mesmo tempo que propõe ações emergenciais e estruturais a serem assumidas pelo poder público. Leia aqui: https://bit.ly/cartaindigenasenchentesrs.

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