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Desde dezembro de 2023, equipes do Laboratório de Virologia Molecular da Fiocruz Rondônia e do Centro de Testagem e Acompanhamento de Lábrea, no sul do Amazonas, fazem um rastreamento de casos de hepatite delta no município. A busca começou depois que o ambulatório especializado em hepatites virais do Centro de Pesquisa de Medicina Tropical de Rondônia (Cepem) atendeu dois jovens, moradores de uma comunidade ribeirinha de Lábrea, com estágios avançados da doença. 

Na segunda expedição à Lábrea [que Radis acompanhou], em junho de 2024, estava no grupo Eugênia de Castro e Silva, hepatologista do ambulatório do Cepem, que permaneceu na sede do município atendendo pessoas já diagnosticadas com hepatites virais na região — incluindo os rapazes que motivaram a investigação.

— Fotos: acervo pessoal.

Nesta entrevista que concedeu à Radis, a médica, que também é professora do curso de Medicina da Universidade Federal de Rondônia (Unir) — e que recentemente defendeu tese de doutorado no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) sobre hepatite delta — explica como funciona o tratamento de diferentes tipos de hepatites, fala sobre a importância em se rastrear novos casos da doença em outras regiões do país, destaca a importância do método molecular para diagnóstico e quantificação da carga viral do vírus HDV, e reforça a vacinação como melhor forma de se prevenir a doença.

Como funciona o trabalho do ambulatório especializado do Cepem no tratamento de hepatites virais?

O ambulatório do Cepem é referência no estado de Rondônia para o tratamento e acompanhamento de portadores das hepatites virais. Nós atendemos pacientes de Porto Velho e de outras cidades próximas, como Ariquemes, Ji-Paraná e Vilhena [em Rondônia], assim como de Canutama e Lábrea [no Amazonas]. Felizmente, nós aqui contamos com a parceria do Laboratório de Virologia Molecular da Fiocruz no gerenciamento dos casos de hepatites. 

Como funciona a parceria?

As hepatites virais quando evoluem para as formas crônicas representam doenças silenciosas, com risco de evolução para cirrose e câncer de fígado. Imagine gerenciar todos os tipos de hepatites sem ter acesso a exames moleculares de carga viral, para decidir tratamento, acompanhar a evolução deste tratamento e verificar se o paciente está respondendo a ele? Para tratar e acompanhar um paciente portador crônico de hepatite viral, precisamos de exames laboratoriais como ALT e AST (aminotransferases) que traduzir inflamação; exames de função hepática (albumina, bilirrubina e INR); exames de imagem para averiguar o grau de fibrose hepática (elastografia hepática), além de exames sorológicos e moleculares, como o teste de carga viral desenvolvido pelo laboratório de virologia. Sem estes elementos nós não vamos conseguir dizer se o indivíduo é candidato a tomar antiviral ou não. 

O diagnóstico não é simples…

O diagnóstico de hepatite aguda é fácil, porque o quadro é florido. O paciente chega com icterícia, coceira no corpo, urina escura [colúria], fezes esbranquiçadas [acolia fecal], toda uma constelação de sinais e sintomas que facilitam o diagnóstico até para um leigo; já o paciente crônico, este pode chegar normal, sem nenhum sintoma. Então só é possível diagnosticá-lo por meio de exames laboratoriais. A gente precisa dos marcadores IgM (que indica infecção aguda) e IgG (que indica infecção crônica), além de outros exames. 

Como é feito o atendimento?

O ambulatório do Cepem atende as pessoas pelo SUS. Elas são encaminhadas pela Atenção Básica, já com diagnóstico de hepatites virais. No caso dos rapazes de Lábrea, eles foram encaminhados pela assistência social. Lá nós fazemos a testagem complementar, para entender em que nível de tratamento os pacientes se encaixam. São exames bioquímicos (hemograma, TGP, bilirrubina, ureia, creatina etc.), sorológicos (HIV e todos os marcadores de hepatite B) — para a gente identificar a replicação viral — e a carga viral do vírus HBV. Todos os pacientes que são positivos para B também são testados para delta, que é endêmica na região Amazônica.

Como estão os casos de hepatite delta no restante do país?

A hepatite delta já foi encontrada em estados do Nordeste e no Sudeste. Na verdade, ela existe no mundo todo. No Brasil, acredito que seja subnotificada, já que não se faz testagem para ela fora da região Norte. Eu fiz minha residência no Hospital das Clínicas em São Paulo e lá nunca tinha visto um paciente com delta. Só vi quando vim morar aqui, em 2004.

Como é feito o acompanhamento de pacientes?

O paciente testado recebe a prescrição e o formulário de dispensação de medicação e é encaminhado para o serviço municipal, de acordo com o protocolo do Ministério da Saúde. Mas eles continuam sob a nossa supervisão. No caso de um portador de hepatite C crônica, ao final do tratamento — e quando o paciente não tem uma lesão grave no fígado — a gente consegue dar alta, depois que comprova que curou. Mas um paciente com hepatite B, que não tem cura, a gente sempre vai acompanhar. O intervalo de retorno varia, conforme a gravidade, principalmente em casos de hepatites B e D, que são crônicas.

E em relação à hepatite C?

A hepatite C também pode se tornar crônica. A gente tinha um tratamento muito ruim, que só curava em metade dos casos. A partir de 2015, apareceram drogas maravilhosas para hepatite C, com pouquíssimos efeitos colaterais e que curam entre 97 e 98% dos casos. Antigamente a gente escolhia quem iria tratar, porque o tratamento era ruim e não garantia a cura. Agora a gente trata todo mundo. Tanto é que o número de pacientes com hepatite C caiu muito; hoje no nosso ambulatório, a maioria é de pacientes portadores dos vírus B e D, e daqueles com C que ficaram com fibrose severa e cirrose. A gente não dá alta nestes casos, porque o fígado cirrótico é um terreno fértil para o surgimento de um hepatocarcinoma [câncer] — o que justifica o rastreio destes pacientes. 

O que é a cirrose?

A cirrose é um processo nodular difuso, são cicatrizes que se formam no fígado por inflamação. Essa inflamação pode ser por vírus, por álcool, por gordura, por doença autoimune… No caso da hepatite C, você cura o vírus, mas o dano hepático está lá. Então esse paciente tem que ser rastreado. Pode acontecer de esse paciente se curar do vírus e apresentar câncer de fígado — e até precisar de transplante. Agora, a gente não vê isso com frequência. Com essas novas drogas, a gente consegue até tirar o paciente da lista de transplantes de fígado, tão grande é a melhora. 

E a hepatite A?

A hepatite A é transmitida por meio da água e dos alimentos contaminados. Não vira uma doença crônica. Às vezes o paciente chega, vindo de uma região de baixo saneamento básico, e você pede a sorologia e vê que ele já teve hepatite A. Ele nem sabe como ou quando foi. Pode ter passado como uma virose de infância, uma gastroenterite, uma crise de diarreia ou vômito, e ele nem soube. A prevalência de hepatite A é muito alta no Brasil por conta das precárias condições de saneamento básico. Norte e Nordeste têm uma prevalência maior que o Sul, mas agora, com as enchentes que aconteceram no Rio Grande do Sul, isso deve ter piorado.

Você fez atendimentos em Lábrea, onde há muitos casos de hepatites D. O que explica a alta endemicidade da doença na região?

A gente tem somente suspeitas. Na Europa, os casos estão mais ligados ao consumo de drogas ilícitas; no Brasil, e aqui na região Amazônica, a gente acredita que tenha relação com os hábitos culturais e cerimoniais. Há muitas suspeitas, mas poucos estudos. O que se sabe é que a transmissão intrafamiliar é maior do que por casos de transmissão sexual. Dos 37 pacientes que atendi na cidade, somente três não tinham histórico familiar de infecção pelo vírus em sua família. Cada vez que a porta abria era um doente diferente, mas a história epidemiológica era a mesma. Eu perguntava: “como você acha que pegou?” E eles respondiam: “Eu tive alguém que morreu com essa doença”. Alguém que morreu com icterícia, ou morreu sangrando, ou vomitando sangue. Uns jovens, uns ainda crianças. E aí fica a dúvida: por que na mesma família uns morrem e outros não? Por isso precisamos aprofundar as pesquisas, sobretudo estudar os aspectos imunológicos e genéticos destas afecções, porque elas é que podem nos dar essas respostas. 

Lábrea é conhecida como uma cidade onde há muito desmatamento. Pode haver alguma relação destes casos com desequilíbrios ambientais?

Também não temos comprovação disso, mas pode ser uma possibilidade, já que desregula todo o microbioma. Soube que também há muitos casos da doença na cidade. É importante destacar que a maioria das pessoas que a gente atendeu na cidade são muito carentes, agricultores que vivem de benefício social, com condições bem precárias de saúde e saneamento. 

Isso explica por qual motivo a hepatite delta é considerada uma doença negligenciada?

Talvez por ser mais endêmica na região Norte, a hepatite delta é esquecida pela indústria farmacêutica. A gente não tem uma medicação efetiva. Em muitos casos a gente utiliza o Interferon, uma medicação injetável, e os pacientes abandonam o tratamento porque não suportam o remédio. Essa medicação diminui o número de plaquetas, o elemento sanguíneo responsável pela coagulação do sangue. Então esses pacientes, já em um estágio avançado da doença, têm sangramento nasal ou sangramento gengival, quando tomam o remédio. Para você ter uma ideia, o número de plaquetas normal do indivíduo é entre 150 e 450 mil; nesses indivíduos, chega a 50 mil. Então fica difícil tratar. Nós já perdemos pacientes jovens assim. 

Qual é a importância do kit de diagnóstico molecular desenvolvido pela Fiocruz Rondônia? 

O kit é uma bênção para a gente que está na assistência, porque o fato de um paciente apresentar a sorologia positiva para delta não nos diz se ele está com a doença ativa ou se ele apenas teve contato com a doença. Quando o indivíduo é infectado pelos dois vírus no mesmo momento (HBV, da hepatite B, e HDV, da hepatite delta), que a gente chama de coinfecção, a situação se resolve mais facilmente. Isso não acontece quando o paciente já tem o vírus da hepatite B e se super infecta com o vírus delta, em um momento posterior. No fígado deste paciente já existe um vírus há muitos anos. Aí vem o delta, quando o indivíduo já está crônico. Nesta situação, a chance de evoluir para cirrose e para câncer de fígado é de 95%. É o exame de carga viral que nos diz se os vírus B e D estão ativos ou se apenas o indivíduo teve contato com eles no passado. 

A carga viral também auxilia no tratamento?

A carga viral é importante para definir o tratamento, o acompanhamento e o prognóstico dos indivíduos. É nosso guia. Quando a gente começa a dar o remédio, é preciso monitorar a carga viral para saber se o paciente apresenta uma resposta virológica satisfatória — se vai negativar a carga viral no prazo que se espera ou não. Isso é importante porque se o vírus continua ativo, o fígado continua sendo lesionado. Trabalhar sem saber a carga viral é trabalhar às cegas.  

O exame para detecção do vírus da hepatite delta só é feito na região Norte. Pode-se estimar que há uma subnotificação de casos de hepatite D no restante do país?

Correto. Quem tem hepatite B deve ser testado para delta no país inteiro, não só na região Norte. Talvez por isso não se saiba de casos fora daqui, porque não se busca. Como é que você vai encontrar o que você não busca? Esse protocolo de testagem para delta não existe no resto do país, mas seria muito bom que todos os portadores de hepatite B fossem testados, porque a gente iria saber a real epidemiologia da doença. Falam que só existe hepatite delta no Norte, mas só se pesquisa isso aqui. As pessoas viajam, têm contato umas com as outras. Então deve ter mais gente com delta por aí. A gente é que não sabe.

Como se prevenir contra a hepatite delta?

A vacinação teve um enorme impacto epidemiológico na transmissão da hepatite B e, consequentemente, nas suas potenciais complicações, ocasionando queda de casos de hepatocarcinoma e de indicações para transplantes de fígado, além de ter diminuído a mortalidade por doenças hepáticas crônicas. É importante destacar esse ponto, uma vez que ao imunizar as pessoas de forma adequada para o vírus B também estamos protegendo esses indivíduos da hepatite delta.

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