Rosane, Téo, Jéssica e Toni são pessoas LGBT+ acima dos 60 anos e falam à Radis sobre seus processos de envelhecimento. Confira a seguir essas quatro histórias que ilustram a diversidade da vida de pessoas LGBT+60 em um país marcado pela discriminação e pelo preconceito.

Rosane, 63 anos, Fortaleza (CE)
Ela estudou História e Teologia na universidade, foi redatora de agência publicitária, dona de bar e programadora musical. Hoje, quando questionada sobre o que faz da vida, responde, sem titubear: “Sou cuidadora da minha irmã”, diz Rosane de Castro. Pelo telefone, ela revela trechos de uma trajetória conturbada que a trouxe até essa condição.
O Rango Bar foi um dos primeiros bares a acolher a diversidade na Fortaleza dos anos 1980. À frente do negócio, Rosane percebeu que exagerava nas doses e procurou ajuda nos Alcoólicos Anônimos (AA). Neste mesmo período, sua companheira a convenceu de levar a irmã, diagnosticada com esquizofrenia, a uma igreja evangélica.
Rosane conta que a irmã, que já havia sido internada em clínicas psiquiátricas algumas vezes, melhorou. Intrigada, ela também passou a frequentar os cultos e conseguiu parar de beber. Foram 16 anos na igreja. Como tinha experiência em comunicação, logo Rosane estava à frente das ações da igreja em jornal, rádio e televisão. Neste período, não falava sobre sua sexualidade. “O pastor fazia vista grossa”.
Logo após a morte da companheira, vítima de câncer, aos 45 anos, ela começou a perceber que o ambiente de trabalho na igreja estava se tornando hostil. “Tudo era muito preconceituoso”, lembra. Rosane ainda tentou fundar um grupo de gays cristãos, mas logo percebeu que não tinha vocação para pastora.



Ao mesmo tempo, sua mãe, já sem andar e com outros problemas de saúde, passou a demandar cuidados. Rosane voltou a morar com a família no bairro Jardim América, em Fortaleza. “Tornei-me oficialmente cuidadora”, resume. Além da mãe e da irmã, que também não anda mais, ela cuida de outro irmão, que vive com Alzheimer. “Quem toma a frente de tudo sou eu”, diz, resignada.
E quem cuida da Rosane, hoje com 63 anos? Ela diz que a morte da companheira a deixou deprimida e ansiosa. Mas o pior, relata, é não sentir nada, nem alegria, nem tristeza. Refugia-se nos livros e na música, conversa com uma prima — que também cuida da mãe com Alzheimer — e com uma amiga, que mora no Rio de Janeiro, e se fortalece com sessões de terapia gratuita no curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“A realidade é inacreditável”, desabafa Rosane, revelando que a peregrinação com a mãe, em diferentes hospitais públicos, a fizeram enxergar “o quanto o SUS é necessário”. Ela ressalta que nunca foi discriminada em nenhum serviço de saúde, mesmo quando revelou sua sexualidade, mas se ressente do restante da família, que a abandonou — “talvez por ser lésbica, solteira, sem filhos, eles achem que eu tenha a obrigação de cuidar”.
Ela vive quase exclusivamente em função dos outros; os poucos momentos em que se permite sair e se divertir, são aqueles em que amigos a “arrastam de casa”. Com o tempo, muita gente foi se afastando, diz, reconhecendo que hoje é difícil se relacionar, “sem ter muito o que oferecer”.

Téo, 70 anos, Linhares (ES)
“Eu apanhei muito, sofri muito. Minha mãe me expulsou de casa aos 14 anos”, diz, emocionado, Téo Pereira da Silva. Em conversa pelo telefone, ele diz que mãe, pai e irmãos “sempre perceberam minha cara masculina”. Até os 13 anos a vida foi na roça, relembra, quando já lhe destinavam os serviços masculinos. Seu sonho era fazer Veterinária ou Engenharia Mecânica, mas a primeira ocupação foi a de babá de duas crianças.
Logo a convivência com a “nova família” permitiu que ele passasse a trabalhar em um escritório e, em seguida, numa grande montadora de veículos. “Fiquei 32 anos na Mercedes Benz, em 1996 recebi o prêmio de melhor analista de garantia do Brasil”, orgulha-se Téo. Ele conta que o dinheiro recebido pelo prêmio foi essencial na conquista de sua independência. Comprou casa, carro, moto.
Com a aposentadoria, em 2002, ele decidiu se juntar aos movimentos sociais e lutar contra o preconceito na cidade, fundando a Associação Linharense de Apoio à Homossexualidade (Alah), onde ficou até 2013. Neste período, organizou paradas do orgulho LGBT, desenvolveu ações de prevenção às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e aids. Hoje, ligado ao grupo Gold, de Vitória, Téo também está no segundo mandato do Conselho Municipal de Saúde. “Fui 23 vezes a Brasília participar de conferências”, contabiliza.
O ativismo de Téo o ajudou a superar a distância da família que, aos poucos, foi diminuindo. Em 2005 ele passou a tomar conta da mãe; após a morte do cunhado, a família voltou a procurá-lo. “Depois que comecei a dar palestras e a ganhar dinheiro, mudaram o olhar”, diz ele, lembrando que a coisa era bem diferente quando o expulsaram de casa. “Eu me preparei bem para que não acontecesse o que eles previam. Tenho casa própria, outra na praia, carro do ano, sou independente”.




Téo conta que o ativismo o levou a cancelar o plano de saúde: “Aqui o SUS me atende muito bem”, atesta. Em relação ao acolhimento, ele considera que muito já foi conquistado “no pé de pano”, com respeito, mas reconhece que ainda há preconceito na abordagem de alguns profissionais, principalmente na oferta de alguns exames, como o preventivo. Ele diz que já ouviu de um profissional de saúde: “Por que fazer preventivo, se você é homem trans?”
Em relação à vida pessoal, ele diz que quem não o conhece ainda torce o nariz, mas ressalta que a discriminação também está presente nos espaços de luta coletiva: “Veja os grupos gays, só tem gente jovem. Se hoje estão liberados para andar de mãos dadas nas ruas, é porque muita gente lutou e até foi presa no passado”, lembra.
No entanto, Téo considera que hoje tem uma vida boa e saudável, pescando nas horas vagas, curtindo o fim de semana ao lado da companheira, uma agente de saúde de 54 anos que vive em Colatina, cidade a 120 km de Linhares. Orgulha-se da vida que construiu e dos bens que adquiriu, de não usar drogas e ser respeitado na sociedade onde vive. “Sou muito feliz na velhice. Faço o que quero, vou pescar quando quero, tenho carro zerado e um amor que vejo todo fim de semana”, diz, satisfeito.

Jéssica, 60 anos, Rio de Janeiro (RJ)
Ela parece um pouco nervosa quando começa a conversa com Radis. Do outro lado da linha, Jessica Maços Jordão fala do bairro da Penha Circular, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Respira e desabafa: “É uma luta diária, a da travesti”. Naquela manhã de maio, aguarda o resultado de uma biópsia que vai atestar se o caroço, encontrado por acaso na mama, é ou não indicativo de câncer. O exame fica pronto à tarde, e ela não esconde a ansiedade, que se mistura à indignação: “Nunca fui orientada a fazer uma mamografia”.
Aos 60 anos, Jessica não tem uma vida fácil. Mas a coisa ficou mais complicada quando a transição de gênero ficou mais visível aos olhos alheios. Jovem, com 20 e poucos anos, ela foi dispensada do emprego formal, no comércio da Zona Sul do Rio de Janeiro. “Não contratei Jessica, contratei outra pessoa”, alegou o empregador. A partir daí, não conseguiu mais trabalho. Porém, as contas não paravam de chegar.
Como acontece com muitas pessoas trans no país, Jessica interrompeu os estudos e recorreu à prostituição. Nos 20 anos seguintes, fez programas em cinemas do Centro do Rio, enfrentando a violência da polícia e o abandono da família, que também não aceitava sua condição de gênero. “Enquanto eu era gay, tinha emprego. Quando assumi quem eu era, perdi a empregabilidade”, pontua. “Mas eu precisava de dinheiro”.
O tempo passou e a família se distanciou, até o momento em que a mãe precisou de ajuda, após se separar do pai. “Eu sempre chegava com dinheiro. Com o tempo, ela foi me aceitando”, relata. As duas viviam na casa que Jéssica havia ajudado a construir. E a filha virou cuidadora, até a mãe falecer. Desde então, lamenta não ter com quem contar: “Vivo sozinha neste mundo, só posso contar com Deus”, revela.


Jéssica diz que tentou retornar ao mercado formal de trabalho, quando participou do projeto Damas [iniciativa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da Prefeitura do Rio de Janeiro de reinserção social de travestis e transexuais por meio de formação profissional]. Participou de cursos de gastronomia, fez inúmeras oficinas. Mas, por falta de oportunidades, voltou a fazer programas.
Hoje, sobrevive de benefícios sociais, em uma casa onde cuida de 25 gatos. Apesar do momento delicado de saúde, ela ressalta que, ao conhecer alguns projetos da Fiocruz, passou a cuidar melhor da própria saúde. “É o meu refúgio”, diz. Foi a partir de iniciativas da instituição que conseguiu atualizar seus documentos e mudar o nome de registro; por conta do tratamento hormonal, descobriu que tem hipertensão e diabetes, além de ter acesso a uma série de especialistas. “Foi um divisor de águas para mim”.
Em relação aos demais serviços de saúde, reconhece que o atendimento é um pouco mais acolhedor, mas ainda traz na memória episódios de discriminação e de negligência. “Antes não me deixavam fazer exame de próstata, alegando que eu não era homem; por outro lado, nunca me disseram para fazer uma mamografia. E agora estou eu aqui, com 60 anos, com esse caroço no seio”.
No dia seguinte à conversa, Jessica envia por mensagem a imagem do resultado do exame, que atesta a presença de um carcinoma. “Agora vou esperar a consulta com o oncologista e o mastologista”, diz em áudio.

Toni, 61, Curitiba (PR)
“Queremos que a morte nos encontre bem vivos”. Essa é uma das frases que define a “melhor idade” do professor e ativista Toni Reis, do grupo Dignidade, de Curitiba. Da Alemanha, onde comemora Bodas de Coral com o marido David, de 67 anos — um dos primeiros casais a terem sua união reconhecida no Brasil — ele envia mensagens em que resume sua trajetória, no mínimo atípica diante da realidade da maioria das pessoas LGBT+ com mais de 60 anos no país.
Nascido em Coronel Vivida e criado entre as cidades de Quedas do Iguaçu e Pato Branco, ele cresceu na capital Curitiba, onde vive até hoje. Foi em uma viagem à Europa que conheceu David, com quem vive há 35 anos. Eles adotaram três filhos: Alison, de 24, Alice, de 22, e Felipe, de 19. Os mais velhos já moram sozinhos; o filho mais novo, ainda com os pais.
Toni conta que, nesta boa fase, o casal passou a cuidar melhor da saúde, investindo em alimentação saudável e atividades físicas regulares, sem deixar de lado a orientação de especialistas. O objetivo, diz, é garantir qualidade de vida. Ele relata que a ideia é cuidar da saúde física e mental, o que inclui planos de continuar os estudos, mesmo depois de dois pós-doutorados. “Estou me formando em História, quero fazer Filosofia. Se der, Psicologia e Direito, se tiver on-line”, brinca, reforçando o desejo de sempre se atualizar.
E quem integra a sua rede de cuidados? Ele cita, em primeiro lugar, a família nuclear (ele, o marido, os três filhos e um genro); em seguida, a “família estendida”, que inclui a avó das crianças, comadres e compadres, além dos companheiros do grupo Dignidade, “pessoas que frequentam a minha casa, jantamos, temos almoço, sempre comemoramos o aniversário juntos”.






Em relação aos serviços de saúde, Toni conta que recebe atendimento na unidade de saúde do SUS, Ouvidor Pardinho, especializada em saúde do idoso, e usa o aplicativo Curitiba Mais Saúde, por meio do qual marca consultas e exames. “O SUS realmente funciona na nossa cidade”, elogia, destacando a preocupação em manter sempre atualizado o calendário de vacinas. O investimento em saúde tem trazido resultados, diz, animado, revelando que passou a tomar menos remédios e a apresentar taxas mais saudáveis: “Passei em todos os testes”, comemora.
Além de cuidar da família, ele faz questão de não perder o contato com os amigos. “É muito legal manter o contato para se sentir pertencente e não viver ensimesmado. É importante ter uma rede de pertencimento”. Mas, para isso, atesta, é importante investir nas relações.
Questionado sobre alguma experiência desagradável relacionada à idade que apresenta, o ativista revela que lida bem com as situações. Lembra de uma vez em uma viagem de avião, em que foi chamado de “idoso”, quando foi impedido de sentar-se na poltrona na saída de emergência. “Fiquei muito surpreso, mas levei no bom humor”, diz, elogiando o Estatuto da Pessoa Idosa e pontuando que isso não existe na Europa.
Ele diz encarar de forma leve o tratamento diferenciado que recebe, mesmo quando as pessoas falam que ele está velho. “Que bom que você enxerga bem, porque eu realmente tô velhinho, já perdi meus cabelos, tenho rugas, uma barriga que, mesmo fazendo abdominais, não sai. Isso é natural, é a vida”, diverte-se. Sobre o atendimento prestado aos idosos LGBT+, ele elogia, mais uma vez, os serviços do SUS que utiliza em sua cidade e recomenda aos profissionais que escutem o usuário e não proponham “mudanças bruscas” no seu estilo de vida. “Todos vamos morrer. Só que eu quero morrer com qualidade de vida”, afirma.
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