No final de 2024, o dicionário inglês Oxford divulgou o resultado da votação que elegeu “brain rot” como a expressão do ano. De acordo com o significado, o “cérebro podre” é reflexo da deterioração do estado mental ou intelectual de uma pessoa que consome de forma exagerada conteúdo online de baixa qualidade, sem nenhum tipo de desafio ou complexidade maior para o cérebro. Atividades como rolar a tela do celular em redes sociais por várias horas sem objetivo específico podem influenciar a nossa capacidade de concentração e de gerenciamento do tempo.
A terapeuta ocupacional Renata Maria Silva Santos, que fez sua pesquisa de doutorado em Medicina Molecular na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sobre o impacto do uso de telas na saúde mental ao longo do ciclo da vida, enumera algumas pistas que apontam que nosso cérebro está precisando de descanso em relação a esse tipo de uso. “Se você está sempre irritado, impaciente, com dificuldade de realizar tarefas mais tediosas ou de se concentrar em uma conversa mais longa, querendo trocar logo de assunto, buscando recompensas rápidas e com dificuldade de estabelecer uma conexão consigo, isso pode indicar que é necessário ficar mais atento”, explica [Leia mais clicando aqui].
Em entrevista à Radis, a pesquisadora destacou que principalmente no caso das pessoas adultas, que precisam trabalhar e estudar durante muitas horas em frente a computadores, o conteúdo tem maior interferência na saúde mental do que o tempo de exposição às telas, sejam elas de um tablet, smartphone, televisão ou até aquelas presentes nos transportes públicos. Além do conteúdo, o uso de telas para acessar redes sociais aumenta a chance de causar adoecimento psíquico.
O que queremos evitar com o uso das telas
O público brasileiro, em especial, chama a atenção das grandes corporações de tecnologia. De acordo com pesquisa feita pelo site de informações eletrônicas Electronics Hubs, em 2023, a média de tempo que o brasileiro fica em frente às telas é de nove horas por dia. O Brasil ficou em segundo lugar no ranking, perdendo apenas para a África do Sul, no levantamento que avaliou 45 nações.
O conceito de economia de atenção se torna pertinente a esse debate, porque entende nossa atenção como um recurso limitado (e disputado) dentro de um contexto capitalista, onde diversas plataformas criam estratégias para nos engajar em seus conteúdos — enquanto empresas anunciantes alimentam constantemente esses espaços virtuais com o objetivo de nos capturar como possíveis consumidores. A disputa é acirrada e o acesso gratuito a essas plataformas, no final das contas, não é tão gratuito assim, porque acabamos sendo nós as mercadorias.
Atrelados a esse conceito, que ganhou notoriedade com o economista Herbert Simon, nos anos 1970, outros dois também dialogam com o tema: ecologia da atenção e ecosofia da atenção. A ecologia, debatida por Yves Citton, aborda a influência do ambiente na qualidade da nossa atenção. Um ambiente ou uma sociedade com muitas interrupções, telas, barulhos e pouco espaço para o silêncio dificultam essa capacidade atencional.
O psicólogo, psicanalista e escritor Christian Dunker, um dos autores do livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” (2021), publicado pela editora Autêntica, conversou com Radis sobre como essas teorias se relacionam com o cotidiano. “No fundo, esses conceitos são políticas que direcionam o modo como vamos olhar para o sofrimento, como vamos reconhecê-lo e transformá-lo”, contextualiza.
“Na economia de atenção, ela se torna matéria-prima para aumento do consumo e da produtividade. É olhar para um transtorno a partir do ponto de vista econômico”, diz. Já na ecologia, o professor afirma que há uma diversificação e uma qualificação da atenção diante das experiências.
Ele explica que Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, tinha uma teoria da atenção que era fortemente orientada para a nossa tentativa de se defender do mundo. De acordo com ele, essa teoria explica como localizamos perigos e negamos certas coisas, fazendo com que o nosso regime atencional seja desenvolvido para reduzir angústia, enquanto nos autoengana. “Há coisas que se a gente começar a prestar atenção vão doer. Então, a gente foca em outra coisa. O que não está podendo receber sua atenção e o que está recebendo atenção demais de sua parte?”, questiona.
O psicanalista afirma ainda que um dos sintomas comuns nesse sistema que integra a ecologia da atenção são crises de ansiedade. “A pessoa não sabe de onde elas vêm e não têm controle sobre elas. O controle é a atenção. Depois dessas crises, a pessoa fica com um efeito residual curioso, em que ela passa a prestar atenção ao batimento do coração, aos barulhos, e isso causa perturbação”, descreve.
Ao evitar o incômodo e a angústia, deslocamos nossa atenção para o que parece mais prazeroso e fácil momentaneamente, como rolar a tela do smartphone em redes sociais constantemente. Segundo Christian, isso tende a ser atraente justamente “porque reduz a ansiedade, mas de um jeito preguiçoso, já que reduz o trabalho atencional.”
Ele complementa com um exemplo: “Você gosta de zebras? A rede social te dá sugestões de conteúdo de zebras. O que faz com que você não perceba outras coisas? Você treina o jeito de ter atenção e quando entra numa aula de álgebra, por exemplo, você desmonta, porque articulou sua atenção de uma forma que a própria rede explica tudo”, afirma.
Para o pesquisador, esse uso pode acabar dando a sensação de que a pessoa está atrofiada, como se esperasse que alguém fosse ler um livro para ela. Ele cita a dificuldade que muitas pessoas sentem para realizar atividades mais complexas, com menos estímulos visuais, que precisam de atenção prolongada, após a longa exposição às redes.
Recompensa fácil para o cérebro
A busca do ser humano por evitar o desprazer também é mencionada por Renata. “Com o prazer a gente tenta diminuir uma tensão psíquica. Todas as vezes que você tem uma grande carga cognitiva para prestar atenção em algo importante, logo depois você busca dar vazão a isso com uma recompensa rápida, como dar uma olhadinha no celular”, exemplifica. Essa escapada para alívio da tensão psíquica, segundo a pesquisadora, pode prejudicar a percepção que se tem do tempo. “Quando a pessoa percebe já viu quinze vídeos curtos, riu um pouco, viu uma propaganda, a vida de fulano, as fotos e aí já se passaram 40 minutos”.
Ela menciona que a nossa busca por recompensa fácil é motivada pela teoria da autodeterminação, um modelo psicológico que explora a motivação humana e o bem-estar. “Quando a gente tenta suprir necessidades básicas de autonomia, competência e vínculo e não consegue, então a tela vem para suprir”, constata. É por esse motivo também que surge a dependência das redes sociais, segundo ela.
Renata afirma que o prazer para o cérebro pode vir de algumas formas: saboreando uma comida gostosa, fazendo sexo, recebendo um elogio. E as plataformas, justamente por compreenderem esse funcionamento do sistema de recompensa, oferecem vídeos curtos e engraçados. “Se você tem outras coisas que podem te dar essa mesma recompensa, sem precisar de grande esforço ou trabalho, você vai procurar o mais fácil”, pontua.
Uma criança de cinco anos, por exemplo, consegue manter a atenção sustentada por uma média de quatro a seis minutos. “As atividades baseadas em tela, do tipo desenhos animados, têm que ter aqueles estímulos saltitantes, para realmente chamar atenção. 30 segundos depois, já mudou totalmente, porque é muito difícil manter a atenção de uma criança”, explica.
Já Christian exemplifica a interferência das telas no caso de pacientes depressivos, que necessitam de um “empurrão”, de um incentivo de alguém, para saírem da cama. “O primeiro gesto depende muito do movimento do sujeito. E o que a tela pode fazer? Ela tira esse primeiro gesto e a pessoa começa a procrastinar, porque a atenção está treinada dessa forma”.
Se a pessoa dependente da rede social passa um tempo sem acessá-la, pode começar a sentir efeitos colaterais, como apatia, cita ele. “Era tanto estímulo e tanta zebra que uma hora não sei mais o que eu quero ou gosto. Tudo ficou meio cinza”, aponta. Renata menciona também outros sintomas, como falta de ar e sudorese.
Christian destaca sintomas de ausência de fixação. “A pessoa não tem interesse em falar com os outros, em estar com os outros. Ela detesta se você liga para ela, porque ela quer texto, quer ler quando quiser”, descreve. Ele afirma que “essa outra patologia social” gera um conjunto de convites de ausência de si, fazendo com que a atenção seja toda para o outro e não para a própria pessoa.
Ecosofia da atenção
A ecosofia, por sua vez, traz uma proposta conceitual mais abrangente sobre a atenção. Não a enxerga apenas como um recurso ou mercadoria influenciada pela sociedade, mas como uma prática que envolve sabedoria e cuidado. O conceito, inspirado pelas obras dos filósofos Arne Naess e Félix Guattari, trata a atenção como uma postura ética diante de como lidamos com o tempo e o cuidado em relação a si mesmo e ao outro.
O psicanalista afirma que a ecosofia parte de um modo de se relacionar com a atenção a partir do “cuidado de si”. “É uma sabedoria que é pausada, que está no tempo. Uma forma de agir que é consoante àquele momento em que você está. Só pode ser assim quem está atento ao seu próprio tempo. Não o tempo do outro, não o tempo do mundo”, diz.
Christian afirma que uma pessoa que adota essa postura diante da vida não perde tempo, porque sua atitude atencional está ligada à sabedoria. Perder tempo não está relacionado ao neoliberalismo, em que todo tempo tem que ser usado, onde “tempo morto é ruim”, um pensamento que o professor considera “criminoso para o psiquismo e que pode gerar sintomas”. Não perder tempo, nesse caso, vincula-se à ideia de que a atenção está ligada à curiosidade, inclusive à curiosidade de descobrir mais sobre si, um “risco subjetivo”, em sua opinião.
O conceito de ecofosia da atenção também se associa à prática da meditação, onde a pausa e a respiração desaceleram o ritmo da mente agitada, reflexo de uma vida extenuante imposta pela realidade capitalista, em que nem sempre é possível, para grande parte da população, que ainda luta pela sobrevivência mais básica, refletir sobre si e buscar mudanças subjetivas.
O professor explica que, nessa abordagem, a meditação não significa não pensar em nada, mas se apresenta como um estado de pesquisa mental — às vezes podendo se desdobrar para experiências de um esvaziamento atencional de si, prática muito importante e restaurativa. “É possível que resiliência tenha uma relação com essa capacidade de ter um pulmão atencional. Provavelmente você vai deixar sua atenção ser parasitada por processos ideológicos e econômicos. Todo mundo está querendo sua atenção e você vai lá e entrega para o primeiro gaiato que diz: ‘atenção, atenção’?”, provoca.
O neoliberalismo introduz essa ideia de que você deve ser avaliado 360°. Então, são necessários mais empenho, mais treino, mais atenção aos próprios processos atencionais
No período pós-guerra, Dunker conta que a atenção era focada naquilo que a pessoa trabalhadora era especialista. Ela apertava o parafuso e fazia apenas isso. Depois, a atenção é demandada para uma abordagem multitarefa, em que é necessário gerir várias atividades ao mesmo tempo. Se antes a atenção era remetida a um chefe, “o neoliberalismo introduz essa ideia de que você deve ser avaliado 360°. Então, são necessários mais empenho, mais treino, mais atenção aos próprios processos atencionais”, contextualiza.
A terapeuta ocupacional Renata explica que a ideia de produtividade na visão da Organização Mundial da Saúde (OMS) precisa de uma finalidade, em que seja possível equacionar o trabalho com as atividades domésticas e com o cuidado da própria saúde. Ela recomenda práticas em que possamos nos atentar ao começo, meio e fim dos processos, como na jardinagem, onde é possível plantar uma semente e depois ver uma planta nascer. “É igual à colocação do parafuso da esteira industrial do Chaplin [no filme “Tempos Modernos”, de 1936]. A sua mão funcionou, mas você viu os frutos?”, pondera.

		

					
					
				
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