A primeira edição da pesquisa “Nascer no Brasil” foi um divisor de águas no que diz respeito à saúde materno-infantil no país e ajudou a formular políticas públicas, especialmente na área de atenção ao parto e, na sequência, às mães encarceradas (com o seu desdobramento “Nascer nas prisões”), como relembramos na edição 271 de Radis. A entrevista com a pesquisadora Maria do Carmo Leal, a Duca, revisitou os avanços conquistados e, ao mesmo tempo, avisou que os resultados da pesquisa “Nascer no Brasil 2” — realizada dez anos após a primeira edição — estavam próximos de serem disponibilizados.
A primeira etapa do novo levantamento foi publicada recentemente em “Nascer no Brasil 2 — Retratos do parto e do nascimento no estado do Rio de Janeiro”. A divulgação dos dados nacionais está prevista para 2026, acompanhada do lançamento de uma série documental de seis episódios chamada “Nascer no Brasil 2 — Até onde avançamos?”.
Como parte das celebrações do aniversário de 71 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Maria do Carmo e o Grupo de Pesquisa Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente apresentaram (3/9) os resultados sobre o estado do Rio de Janeiro, com um debate com representantes das secretarias de saúde do estado e do município do Rio de Janeiro.
O retrato do nascimento, parto e, desta vez, aborto no Rio de Janeiro englobou 1.923 mulheres entrevistadas entre 2021 e 2023, em 29 maternidades públicas e privadas e 18 municípios fluminenses. Foram coletadas informações de cadernetas e prontuários e realizadas entrevistas com gestores e profissionais de saúde. Entre as mulheres, 1.762 foram ouvidas no pós-parto (com 1.752 nascidos vivos e 10 natimortos) e 161 após um aborto. Tudo isso resultou em sete artigos acadêmicos publicados na Revista de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
A coordenadora da pesquisa, Maria do Carmo Leal, afirmou que a divulgação dos dados preliminares tem muito a ver com o fato de historicamente o Rio de Janeiro pensar sobre as questões que abrangem o país, por ter sido capital federal. Por outro lado, o estado também apresenta dados alarmantes, como elevada mortalidade materna, fetal e perinatal, além da incidência de sífilis congênita, superior à média nacional. Na apresentação, Duca abordou algumas das temáticas dos artigos, além de recomendações para promover mudanças a partir dos resultados divulgados.

É preciso melhorar o pré-natal
Apesar da cobertura quase universal do pré-natal no Rio de Janeiro — que alcança 98% das gestantes — e da melhora expressiva no número de consultas, com mais de 70% das mulheres realizando oito consultas ou mais durante a gravidez, os resultados ainda são insatisfatórios. O acompanhamento do primeiro trimestre de gravidez de forma plena e com a realização dos exames necessários só acontece com dois terços das mulheres, mesmo entre aquelas atendidas no setor privado.
Duca explicou que o levantamento foi feito a partir da cópia das informações registradas na caderneta da gestante, o que permitiu padronizar os dados coletados. À medida que a gestação avança, os índices caem. A suplementação, por exemplo, apresenta desempenho ainda pior no setor privado, enquanto a vacinação adequada não passa de 30% em ambos os segmentos.
No segundo trimestre de gravidez, não há a repetição de exames como deveria acontecer. Apenas 15% das mulheres atendidas no setor público e 35% no setor privado fazem esse acompanhamento de forma adequada. Os índices também são pequenos quanto às orientações que as gestantes devem receber, por exemplo, sobre alimentação, tabagismo, parto e aleitamento (12% no setor público e 42% no privado).

“É fato que não estamos bem. Temos muitas consultas, mas é preciso melhorar”, analisou Duca. “Seria necessário ter algo similar à Rede Cegonha [chamada agora de Rede Alyne] para a atenção pré-natal. A Rede Cegonha conseguiu que pudéssemos melhorar a atenção ao parto, respeitando tudo o que era recomendado”, disse [Leia sobre a mudança do nome no quadro].
Para a pesquisadora, um dos dados que aponta para a necessidade de melhora no pré-natal é o diagnóstico de sífilis congênita na hora do parto. “Se a mulher chega com sífilis congênita nessa etapa, denota algo muito grave, uma falha no pré-natal. Na primeira ou segunda rotina, essa mulher não foi testada, mas daria tempo de tratá-la. Um terço aparece na hora do parto. Como um pré-natal com tantas consultas não conseguiu evitar que essa mulher tivesse um bebê com um caso de sífilis congênita?”, questionou.
Atenção ao parto: avanços e mobilização
Maria do Carmo enfatizou a importância da mobilização e da conscientização das pessoas para a criação de políticas públicas. Um dos exemplos citados foi o Programa Cegonha Carioca, que busca a gestante em casa com uma ambulância. “Por que essa política bem-sucedida do município do Rio não pode ser copiada pelos outros municípios do interior e da região metropolitana? Ela eliminou um problema que era enorme na cidade”, constatou.
A pesquisa identificou melhorias no parto vaginal realizado no SUS, como a presença de acompanhante em 72% dos casos e a adoção da posição verticalizada para parir — que favorece o parto vaginal — em 95% desses nascimentos, assim como o trabalho de parto assistido por enfermeiras e o uso de métodos não farmacológicos. “Estamos vendo uma mudança de cultura”, afirmou.

Duca também citou a quase eliminação da episiotomia e da manobra de Kristeller [técnicas muito usadas no passado, mas que hoje são associadas a complicações para mãe e bebê]. “É algo que ainda não está perfeito, mas é uma mudança enorme na atenção ao parto, fruto de política pública. Por isso digo que podemos mudar a atenção ao pré-natal também”, avaliou.
Já no setor privado, o parto vaginal acontece apenas em 15% dos nascimentos no Rio (e 20% no Brasil). “É muito pouco, mas quando o parto vaginal ocorre no setor privado, é um parto ótimo”, apontou. Maria do Carmo explicou que a melhora do parto vaginal no setor privado foi possível graças à formação dos profissionais no setor público e à luta das mulheres pelo direito ao parto vaginal, com a criação de um programa chamado Parto Adequado. “É política pública misturada com movimento social e a gente tem esse resultado que é uma mudança fundamental na atenção ao parto nesse país”, destacou.
Violência obstétrica e saúde mental materna

“As mulheres já não são as mesmas e elas notam o que não é mais necessário”, afirmou Duca, ao apresentar os dados sobre violência obstétrica. A alta taxa de 65% de mulheres que sofreram algum tipo de violência mostra que elas estão mais conscientes sobre atitudes dos profissionais que não deveriam acontecer. Os índices revelam que a maior parte dos atos acontecem no pré-parto ou durante o parto. Toques vaginais inadequados são as ocorrências mais citadas (46%), segundo a pesquisadora.
Outro ponto que chama atenção é que 25% das mulheres apresentaram algum tipo de sofrimento psíquico no momento do parto, seja com sintomas de ansiedade, depressão ou estresse pós-traumático associado ao parto. A pesquisa também traz informações sobre aleitamento materno, desfechos de saúde de gestantes adolescentes ou acima de 35 anos e sobre práticas hospitalares.
Duca destacou algumas recomendações elaboradas por ela e outros pesquisadores, direcionadas a gestores, profissionais de saúde, instituições de ensino, além das próprias mulheres e suas famílias. Entre os pontos centrais está a necessidade de maior atenção à contracepção — medida fundamental para prevenir gestações indesejadas. As orientações também incluem ampliar o acesso a unidades especializadas para gestantes de alto risco e aprimorar a gestão pública do pré-natal.
Perfil das mulheres
- Mais mulheres se declararam negras: 70% das entrevistadas são pretas ou pardas e com idade entre 20 a 34 anos
- Mais de dois terços das puérperas entrevistadas residem na região metropolitana do Rio de Janeiro
- Quase 60% têm ensino médio completo ou mais (bebês nascendo com mães mais escolarizadas)
- 81% vivem com companheiro
- Quase metade era mãe pela primeira vez
- Diminuição da taxa de fecundidade de adolescentes (taxa de 10% abaixo da brasileira) e postergação da maternidade (mulheres após 35 anos tendo filhos)
- Quanto à intenção de engravidar (gravidez intencional ou programada): no sistema público, um terço (ou menos) das mulheres tiveram intenção de engravidar; no sistema privado, cerca de 60% das mulheres tiveram intenção de engravidar
Rede Cegonha é agora Rede Alyne
Anteriormente chamada de Rede Cegonha, a Rede Alyne é a reestruturação da antiga rede pública de cuidados a gestantes e bebês e ganhou este nome por causa de Alyne Pimentel, grávida de seis meses que morreu em 2002 por negligência no atendimento. O caso levou o Brasil a ser o primeiro país condenado por morte materna pelo Sistema Global de Direitos Humanos em todo o mundo.
A Rede Alyne é uma das cinco redes temáticas do SUS. Ela está organizada em seis componentes fundamentais: pré-natal; parto e nascimento; puerpério e atenção integral à saúde da criança; sistema logístico; sistema de apoio e sistema de governança.

Saiba mais
- Leia os artigos com os dados sobre o Rio de Janeiro na Revista de Saúde Pública, v. 59 n. S1 (2025): https://revistas.usp.br/rsp/index
- Teaser do documentário Nascer no Brasil 2 — Até onde avançamos?: https://www.youtube.com/watch?v=JQMISX8aitg
- Apresentação ENSP 71 anos: Nascer no Brasil II – Retratos do Parto e Nascimento no Estado do Rio de Janeiro: https://www.youtube.com/watch?v=teDoWw0zik8
- Nascer no Brasil 2 – Retratos do Parto e Nascimento no estado do Rio de Janeiro (Sumário Executivo): https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/wp-content/uploads/2025/09/sumario-executivo-2025-NB-Rio-de-Janeiro.pdf
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