Redução da taxa de coberturas vacinais, com altíssimo risco de reintrodução de doenças como a poliomielite; queda acentuada de consultas, cirurgias, procedimentos diagnósticos e terapêuticos realizados pelo SUS, atrasando o início do tratamento de doenças crônicas, como cânceres e doenças cardiovasculares; retorno de registro de internações por desnutrição infantil provocadas pela fome; estagnação na trajetória de queda da mortalidade infantil e aumento de mortes maternas (de 54,8 para 107,2 por 100 mil nascidos vivos entre 2019 e 2021).
Esta é parte da radiografia revelada pelo Grupo Técnico da Saúde (GT-Saúde) do então governo de transição, constituído por 21 integrantes, entre os quais a socióloga Nísia Trindade Lima, que viria a ser anunciada ministra da Saúde (veja perfil clicando aqui), e quatro ex-ministros da pasta — o relator José Gomes Temporão, Alexandre Padilha, Arthur Chioro e Humberto Costa. Um diagnóstico de deterioração da saúde do Brasil a partir de 2016, aprofundada pela pandemia de covid-19, que levou à piora generalizada em indicadores, a ponto dos especialistas classificarem o contexto atual como “uma crise sanitária de extrema gravidade”.
O GT-Saúde analisou mais de duas centenas de documentos encaminhados por entidades e movimentos da sociedade civil, contendo pontos de alerta e recomendações sobre diversos assuntos de relevância para a saúde, conta o co-relator do grupo, o médico sanitarista Adriano Massuda. Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ele foi secretário de Saúde de Curitiba, secretário-executivo substituto do Ministério da Saúde (2011-2012), secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta (2015) e consultor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS).
O grupo ainda realizou 38 reuniões com diferentes órgãos de governo e segmentos da sociedade, como representantes dos trabalhadores da saúde e comunidade científica. Tudo isso em três semanas. A ministra Nísia, revela Massuda à Radis, esteve em praticamente todos os encontros. “Foi um trabalho intenso, com um grupo muito experiente e pluripartidário, para traçar um diagnóstico preliminar e subsidiar a nova gestão a recuperar, reconstruir e atualizar o papel de protagonista do Ministério da Saúde (MS)”, diz.
Autoridade nacional
Das dez medidas prioritárias elencadas pelo GT-Saúde, a primeira era resgatar a autoridade sanitária e a capacidade técnica do MS para a coordenação nacional, tripartite e participativa da gestão do SUS. Para o grupo, o atual quadro sanitário é decorrente de um conjunto de retrocessos institucionais, orçamentários e normativos que promoveram o desmonte de políticas do MS, afetando o funcionamento de programas bem-sucedidos, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI), o Mais Médicos, o Farmácia Popular e as políticas na área de IST-aids, além do funcionamento de serviços que compõem as redes assistenciais do SUS (Atenção Básica, Saúde Mental, Saúde da Mulher, Urgência, Pessoa com deficiência, Saúde da População Negra, Saúde Indígena).
Como chegamos até aqui? Massuda aponta que o MS começou a perder autoridade no pós-impeachment da presidenta Dilma Rousseff, quando o governo Temer indicou para o cargo Ricardo Barros (PP-PR), “um ministro totalmente contrário à ideia de sistema universal, integral, com gestão participativa”. Esse processo, segundo ele, foi reforçado por medidas de austeridade fiscal — em especial a Emenda Constitucional (EC) 95, que congelou o piso da saúde nos patamares de 2017. “Dos anos 1990 até 2015, o ministério exerceu seu papel de coordenador do SUS por meio da construção de políticas de maneira pactuada nas comissões intergestores, cuja implementação era induzida por meio do financiamento”, lembra. Menos dinheiro, menos indução de ações.
Entre 2018 e 2022, estima-se que as perdas para o SUS em função da EC 95 chegaram a quase R$ 60 bilhões — descontando-se os gastos por medida provisória relacionados à covid, que não foram contabilizados no teto de gastos. Na gestão Bolsonaro, observa Massuda, a diminuição dos recursos se acentuou do ponto de vista do volume total, com a absorção do orçamento secreto (emendas de relator) na programação orçamentária do MS. No Projeto de Lei Orçamentária de 2023, o piso de saúde foi consumido pelas emendas de relator em cerca de R$ 10 bilhões — e, para isso, houve redução da Farmácia Popular (queda de 59%), do Mais Médicos/Médicos pelo Brasil (queda de 51%), da Saúde Indígena, entre outros.
“Perdas do SUS (entre 2018 e 2022): estimativa de quase R$ 60 bilhões em função da EC 95.”
Projeto de desmonte
“O papel de coordenação do Ministério se deteriorou ainda mais com a postura do governo Bolsonaro de substituir o federalismo de cooperação pelo confronto interfederativo desde seu início, e em seguida com o negacionismo com que encarou a pandemia”, acrescenta o co-relator. O desmonte, afirma ele, “estava a serviço de determinado projeto que não identificava a possibilidade de um país como Brasil dispor de um sistema universal e integral”.
Para Massuda, a tentativa deliberada de enfraquecer as bases estruturantes da saúde pública brasileira encontrou maior resistência a partir da pandemia de covid-19, quando o SUS se revelou importante para segmentos além dos que historicamente faziam sua defesa.
O tamanho do rombo ainda está para ser devidamente definido, ressalta ele. “O GT-Saúde fez apontamentos a partir de dados disponíveis, mas não teve acesso, por exemplo, às contratações do MS”, diz. Informações relativas ao estoque de vacinas e medicamentos foram classificadas em caráter reservado. Tribunal de Contas da União, Conselho Nacional de Secretários de Saúde e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde estimam que 10 milhões de doses de vacina contra covid estariam próximas do vencimento.
Um fato é a queda da produção assistencial do SUS em 2020 comparada a 2019, superior a 2 milhões de procedimentos. Para pacientes com câncer e outras doenças crônicas não transmissíveis, houve prejuízo de 70.089 procedimentos ambulatoriais e 4.714 hospitalares em relação ao esperado para o período. “Há um volume imenso de cânceres que deixaram de ser diagnosticados e tratados, chegando às emergências hoje em estágios bastante avançados”, alerta ele.
“Quedas nas coberturas vacinais: Vacinas como BCG, meningococo C e poliomielite, que tinham coberturas próximas de 100% em 2015, apresentaram cobertura vacinal por volta de 70% em 2021. De acordo com o GT-Saúde, há desabastecimento de vacinas nos pontos de vacinação e perda de estoques, incluindo para covid-19.”
Desigualdade aprofundada
“É fundamental ter um diagnóstico mais preciso de quais foram as populações mais afetadas para estabelecer planos de recuperação, que passam necessariamente pelo fortalecimento da atenção básica, com alocação de médicos e equipes completas nas áreas de maior necessidade e ação estruturante de regiões de saúde para atender a demanda reprimida pelas especialidades”, avalia Massuda.
O relatório traz indícios de que os mais impactados foram aqueles com histórico de exclusão — população negra, mulheres, indígenas, pessoas em situação de rua, LGBTQIA+. Antes mesmo de a imprensa comercial registrar a tragédia humanitária na Terra Indígena Yanomami (leia mais clicando aqui), as páginas do documento já denunciavam a desestruturação dos programas de cuidado às crianças indígenas e a suspensão de ações de mitigação da insegurança alimentar e nutricional, por exemplo, resultando na elevação alarmante de óbitos para esse grupo populacional. Também está ali o aumento da mortalidade materna em 89,3% em todo o país desde 2019 — 53,4% desses óbitos foram por infecção da covid, principalmente em mulheres negras e indígenas.
“Mortes maternas: de 54.8 para 107.2 por 100 mil nascidos vivos entre 2019 e 2021.”
Ruptura na participação
Outra integrante do GT-Saúde, a pesquisadora da Fiocruz Brasília Maria do Socorro Souza, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), credita o aprofundamento das desigualdades na saúde à “total ausência de participação social” nos governos Temer e Bolsonaro. “O Estado é mais democrático à medida em que a sociedade participa mais das decisões do governo. A partir do momento em que a gestão rompe abruptamente o diálogo com a sociedade, a dimensão da cidadania se enfraquece”, argumenta.
O documento da transição aponta desconsideração e deslegitimação das decisões do Conselho Nacional de Saúde no cumprimento de suas competências legais, especialmente as relativas à execução orçamentária e financeira do Ministério da Saúde, a exemplo da desaprovação do Relatório Anual de Gestão (RAG). Em 2019, foi extinta a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), criada em 2003 para ampliar espaços públicos e coletivos para o exercício do diálogo e da pactuação das diferenças, preservando subjetividades e singularidades. “A SGEP tem uma simbologia muito grande, é o espaço das políticas de equidade e de planejamento participativo do SUS, e isso tudo foi por água abaixo”, comenta Socorro.
Na avaliação dela, Bolsonaro negou questões raciais, de gênero e de orientação sexual. Foi misógino, racista, homofóbico. Teve um pensamento “elitista neofascista”, que não reconheceu nem respeitou a diversidade de sujeitos. “Esse governo sequestrou vários conceitos fundamentais da nossa democracia, tentou desmontar as bases do Estado democrático, e isso abalou a cidadania”, acrescenta, em conversa com a Radis.
SUS é equidade
“Não dá para construir políticas de equidade sem participação efetiva de sujeitos com histórico de opressão e dominação. Não dá para construir políticas de saúde para a população negra sem ouvir representações do movimento negro. Não dá para construir políticas de saúde da mulher sem ouvir organizações de mulheres. O mesmo para a população LGBTQIA+, a população em situação de rua, a população do campo. Quando se interrompe essa escuta, o resultado é o que estamos vendo na crise yanomami”, opina Maria do Socorro. “Toda política de equidade no SUS é de resgate de uma humanidade que foi roubada”.
Socorro conta que, nas audiências do GT-Saúde, pipocaram relatos de piora nos indicadores de saúde por parte de segmentos convidados a falar, como pessoas com patologias, pessoas com deficiências e usuários dos serviços de saúde mental. “Estavam todos adoecidos”, resume. Para ela, o governo Lula deve ser pautado pela diversidade e pela participação social, mesmo nas pautas consideradas mais duras — filas, cobertura vacinal, desabastecimento farmacêutico: “Não se pode dar uma resposta, homogeneizando a população e inviabilizando as necessidades específicas. Quem sofre mais com as filas? Quem menos se vacinou? Onde faltam remédios?”.
Outra estratégia a ser aplicada, segundo a pesquisadora, é a transversalidade. O relatório da transição fala que as políticas voltadas à redução das desigualdades sociais e promoção de equidade devem ser transversais. O momento exige “respostas complexas para questões complexas”, diz Socorro. E a saúde tem papel setorial importante, mas precisa compor com as demais áreas do governo. “Temos que pensar em outros arranjos de participação, intersetoriais, para fazer a diferença”.
10 ações e medidas prioritárias
- Fortalecer a gestão e a coordenação do SUS
- Reestruturar o PNI para recuperar as altas coberturas vacinais
- Fortalecer a resposta à covid-19, emergências de Saúde Pública e desastres naturais
- Garantir acesso e reduzir filas para consultas, exames, cirurgias e procedimentos especializados
- Fortalecer a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)
- Fortalecer a Saúde da Mulher, Criança e Adolescente
- Fortalecer a Saúde Indígena
- Resgatar o Programa Farmácia Popular do Brasil e a Assistência Farmacêutica no SUS
- Retomar o desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde
- Fortalecer Saúde Digital
Fonte: Relatório GT-Saúde
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