No livro “Aids e envelhecimento homossexual — representações gerontológicas e a linguagem da patologia”, o sociólogo João Paulo Gugliotti avalia a representação da homossexualidade nos últimos 40 anos pelas áreas da ciência que estudam o processo de envelhecimento humano (biogerontologia).
Fruto de pesquisa de doutorado do autor, a obra revela, por exemplo, como a epidemia de HIV/aids mudou a representação de homossexuais (e das demais pessoas da comunidade LGBTQIA+) no mundo científico. “A mudança do paradigma de doença mental para um perigo epidemiológico não foi apenas uma mudança qualitativa de termos”, adverte João Paulo, nesta entrevista que concedeu em junho à Radis.
Ele se refere à passagem de um entendimento psiquiátrico da homossexualidade, que foi retirada da Classificação Internacional de Doenças [CID] em 1974, para uma vertente epidemiológica centrada no risco de contrair uma infecção sexualmente transmissível (IST).
Coordenador do Núcleo de Pesquisa Aplicada em Gerontologia e Envelhecimento (Nupage) e pesquisador de pós-doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), ele avalia os impactos desta mudança de visão nos protocolos, políticas públicas e até no relacionamento entre as pessoas.
Também sinalizou para o surgimento de uma “linguagem da patologia”, que reflete setores conservadores da sociedade que atuavam no campo científico nos primeiros momentos de enfrentamento à doença. Em sua pesquisa (e no livro), João Paulo mostra, contudo, um contraponto: o encontro com a obra da assistente social Florence Rush e com as mães de pessoas com aids, trazendo à cena depoimentos, cartas, fotos e documentos, em um belo registro sobre o papel das mulheres e do feminismo na luta contra o preconceito, revelando, ao mesmo tempo, a importância da gerontologia social e de grupos civis organizados no cuidado de pessoas com HIV/aids, o impacto de classificações estigmatizantes e a emergência de categorias médicas.
Em primeiro lugar, gostaria que você explicasse o que são estudos gerontológicos.
Quando falamos em gerontologia, via de regra nós imaginamos o trabalho da gerontologia social, especificamente no campo da assistência social. Ela se distingue da biogerontologia, que são estudos preocupados com processos biopatológicos de adoecimento e formas médicas e epidemiológicas de controle, aferição de riscos e, portanto, uma compreensão pouco comprometida com iniquidades em saúde a partir do padrão de mortalidade da população que envelhece. Quando abordamos população LGBTQIA+, por exemplo, pensamos nas iniquidades em saúde, desigualdades, formas de inclusão, respeito à diversidade e à diferença. Uma discussão situada no campo da gerontologia social, que sempre esteve, historicamente, mais preocupada com programas e políticas de inclusão. Já a biomedicina e a biogerontologia sempre estiveram mais atentas à compreensão dos processos de envelhecimento relacionados à saúde e à doença nas sociedades, em uma vertente muito mais dura de compreensão dessas diferenças — e, portanto, muito mais propensas a patologizar grupos sociais e estigmatizar pessoas, sem reconhecer suas determinações sociais.
Em que área se situa a sua pesquisa?
No meu estudo de doutorado, que resultou na publicação do livro “Aids e envelhecimento homossexual”, publicado pela Editora da Universidade Federal de São Carlos (EdUFSCcar) em setembro de 2024, analisei a literatura biogerontológica, que dialoga mais diretamente com o segmento biomédico, a área mais ampliada da medicina, do que com o serviço social ou com a gerontologia social. O estudo mostra como a biogerontologia não incorpora um debate importante que acontece nos anos 1970. Em 1974, acontece a despsiquiatrização da homossexualidade pela Associação Americana de Psiquiatria. Naquele momento, movimento social e profissionais de saúde engajados com direitos humanos acreditavam que os estudos iriam avaliar os impactos à saúde causados, por exemplo, pelas formas de preconceito e pelo estigma, e abordar aspectos negligenciados historicamente pela medicina, fazendo contraposição às tentativas de “reversão” ou de “tratamento” da homossexualidade. Mas, nos anos 1980, temos como contraponto a epidemia de aids.
O que muda a partir daí?
A partir da epidemia de aids, a biogerontologia passa a se ocupar de segmentos então marginalizados da população (ou seja, grupos como homens homossexuais, mulheres lésbicas e a população trans e intersex). Porém, ao incluir essas pessoas em análises biomédicas, a partir dos modelos de saúde-doença, passa a associar, quase que inequivocamente, essas pessoas à epidemia de aids e aos discursos de risco de infecções sexualmente transmissíveis. A biogerontologia, portanto, repatologiza esses grupos, porque não reconhece outras dimensões da vida social e as situa apenas dentro de uma gramática de adoecimento, em um contexto de uma problemática viral que afetava toda a sociedade. Isso confinou essas pessoas a determinados “grupos de risco”, o que acabou por patologizar as pessoas ao invés de cumprir a promessa de inclusão em sua totalidade. O ponto chave do meu trabalho tem sido apontar que políticas de inclusão nem sempre são benéficas, ao menos, quando reforçam estigmas vigentes e modelos explicativos unidimensionais que reduzem aspectos sociológicos e de saúde a meras questões biológicas centradas na patologia.
De que modo essa mudança na representação da homossexualidade como doença mental para a categoria de grupo de risco impacta a saúde das pessoas LGBTQIA+?
É importante ressaltar que não se fala aqui de uma compreensão médica, mas de formas de descrever adoecimentos, de associá-los a grupos na sociedade, que não têm peso apenas dentro da esfera clínica. São aspectos que impactam diretamente a vida das pessoas, a forma como as pessoas enxergam políticas públicas e como buscam informação, entre tantas outras coisas. A mudança de paradigma de doença mental para um perigo epidemiológico não foi apenas uma mudança qualitativa de termos, foi uma mudança nociva, já que se acreditava, naquele momento, que a aids tinha pulado de um reservatório humano, com origens em comportamentos sexuais “inadequados”, compreendendo populações não-heterossexuais e não-brancas, para a sociedade. A noção de “reservatórios de doenças venéreas” aplacou naquele momento o desejo da medicina e da epidemiologia em apontar, descrever e incluir segmentos vistos como desviantes na sociedade dentro de uma nova categoria médica.
Foi uma mudança de linguagem?
Uma mudança para o que eu chamo de uma linguagem da patologia. Ela retrata o contexto da década de 1980, nos Estados Unidos, e do governo ultraconservador de Ronald Reagan (1981-1989). Uma linguagem que é gestada no período mais letal da aids e que também reflete a forma como o CDC [sigla do Centers for Disease Control and Prevention, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos] enxergava as doenças, até porque os quadros do CDC em grande medida são quadros políticos. A forma como um quadro político que está à frente de um país enxerga determinados processos de adoecimento se reflete em alguma medida na forma como instituições e cientistas eventualmente tratam as pessoas em protocolos clínicos e pesquisas. Eles incluíram as pessoas LGBTQIA+ utilizando uma linguagem pejorativa, que criava uma espécie de cordão sanitário ao redor delas. A aids passou a ser mais vista como um problema de minorias sociais, raciais e sexuais, e muito menos como um problema coletivo, que deveria ser enfrentado com respostas coletivas.
E de que modo isso se apresenta hoje?
Vivemos tempos esquisitos, em que precisamos afirmar a Ciência a todo momento. E isso é importante, especificamente, para combater a desinformação. Vocês que estão à frente da Radis sabem disso. Só que a Ciência tem também um legado histórico muito nefasto, na forma como criou marginalidade para algumas pessoas. Então a defesa necessária da Ciência no presente precisa ser acompanhada de um certo ceticismo. Nos anos 1980, a Ciência era muito menos contestada, por questões que envolviam uma hegemonia dos meios culturais de massa. A transmutação da linguagem da doença mental para a linguagem epidemiológica criou a imagem contemporânea que liga a homossexualidade a uma sentença de morte, a um agravo, algo que seria inevitável por conta de um comportamento sexual inadequado. E isso tem raízes históricas e sociológicas na autoridade da figura do cientista, recorrentemente cristalizada na imagem do médico. Historicamente, vemos grupos sociais à margem da ciência produzindo formas de contra-conhecimento, disputando termos e ressignificando categorias discriminatórias em saúde. Tudo isso é relevante, embora deva haver ceticismo sempre, dos dois lados. A ausência de ceticismo na ciência, e entre cientistas, em particular, pode produzir consensos que nem sempre se orientam por perspectivas justas, pautadas pelos direitos humanos e por formas equitativas de nomear e enquadrar pessoas na pesquisa clínica, por exemplo.
O que está por trás disso?
A retórica de fundo não é científica, comprometida com o debate público, mas uma retórica de fundo moralizante. A Ciência, no curso da história, sempre esteve muito próxima de discursos moralizantes. Basta a gente pensar na eugenia; basta pensar que Henrietta Lacks, mulher negra e pobre, teve suas células roubadas nos Estados Unidos para estudos sobre câncer; basta a gente pensar no estudo de Tuskegee, no Alabama [também nos Estados Unidos] quando pessoas negras foram infectadas com sífilis e tratadas com placebo, numa época em que já havia a Declaração Universal de Direitos Humanos e protocolos éticos eram esperados. Basta pensar no uso da cloroquina no Brasil, muito recentemente.
Como isso aparece em sua pesquisa?
A ciência espelha, em alguma medida, problemas estruturais da sociedade que têm a ver com questões morais. O estudo parte de um certo incômodo sociológico que eu vou chamar de ceticismo: a gente precisa ver esses estudos biogerontológicos fora da lente desenvolvimentista que a caracterizou — admitindo que eles permitiam que a gente compreendesse algumas questões epidemiológicas de forma mais robusta — mas percebendo como algumas incorporações, mesmo que com boas intenções, acabaram criando uma representação para a homossexualidade que a associa a um perigo epidemiológico.
As mães e as mulheres, no curso da história, são as pessoas mais negligenciadas e violentadas dentro de processos de adoecimento
Além do estigma, essa representação também se reflete em protocolos e práticas de assistência que foram implementadas nos serviços de saúde. No livro, você propõe um contraponto quando relata a sua aproximação das mães de pessoas que viviam com aids. De que maneira a atuação do movimento social se contrapôs a este discurso e fez avançar uma visão mais social da epidemia?
Essa é uma questão fundamental. O coração do meu livro é o capítulo 4, que discute como a sociedade responde aos processos ligados à ciência, às instituições e aos governos, que não são processos exatamente Estado-centrados ou mercado-centrados, já que existem contramovimentos. O próprio Michel Foucault dizia isso: Onde tem poder, tem resistência. Não é à toa que o ativismo, pelo menos para o cuidado de pessoas acometidas pela aids, começa com as mães. As mães e as mulheres, no curso da história, são as pessoas mais negligenciadas e violentadas dentro de processos de adoecimento, de consultas, de protocolos terapêuticos e clínicos. A elas sempre foi incumbido o cuidado das pessoas, e isso serve a um enquadramento de gênero bastante poderoso e ainda vigente.
E como você chegou a elas?
A primeira parte da minha pesquisa foi uma revisão temática de literatura, quando já era possível perceber uma virada no discurso gerontológico. Quando fui para os Estados Unidos, pensava em estudar os cientistas, já tinha até algumas entrevistas agendadas em Boston. Mas sempre gostei muito de arqueologia, de artefatos antigos, papéis, folhas, fotografias. E de bibliotecas! E foram os descritores booleanos que me direcionaram a uma biblioteca feminista bem interessante.
E o que você encontrou?
Eu me deparei com um arquivo de uma assistente social chamada Florence Rush (1919-2008). Durante quase dois meses, todos os dias eu ia à biblioteca, abria caixas, fazia fotos e lia tudo com muito cuidado. Havia inclusive muitas cartas pessoais. Florence era também feminista. Publicou um livro chamado The best kept secret [O segredo mais bem guardado], em que relaciona casos de incesto com a criminalidade e com a delinquência. Feminista radical, ela também criticou o modo como a indústria pornográfica representava as mulheres. Até que, nos anos 1980, acontece algo na vida dela muito paradigmático.
O que, exatamente?
O primeiro documento que encontrei no arquivo foi uma carta, que ela preparou para uma conferência sobre HIV e aids. Era a primeira fala pública dela sobre isso. Na carta, ela conta que em um dia de julho o seu filho Matthew bateu à porta, pálido, dizendo que tinha aids. Naquele momento, era uma sentença de morte, não havia tratamento nem terapia disponível. As pessoas que desenvolviam a doença morriam em um intervalo de tempo maior ou menor. Ela conta que ficou em choque, mas ao mesmo tempo, olhando o rosto do filho, pensou que precisava fazer alguma coisa.
E o que veio a seguir?
A partir daí, Florence começou a cuidar do filho, levando-o a hospitais, buscando tratamentos e informações. Em 1982, não havia muitas informações sobre aids, não se sabia qual vírus causava a doença. Só depois, em 1984, quando o vírus foi isolado, é que se começou a trabalhar dentro de uma linguagem comum. Há toda uma descrição do trabalho médico, entre 1982 e 1986, considerado o período do pânico sexual. Muitas suposições morais ganhavam força. Alguns religiosos diziam que era punição divina. Outras pessoas falavam que era um “câncer gay”. Havia uma carga estigmatizante, não somente para as pessoas vivendo com HIV/aids, mas também para seus familiares. Florence também teve que lidar com o estigma.
As doenças replicam desigualdades na sociedade
E qual foi a repercussão disso?
Florence morava em Greenwich Village, bairro de Manhattan importantíssimo para os movimentos de contracultura — e para movimentos como Act up, associação criada para combater estigmas e preconceitos e que lutava pela inclusão de pessoas em protocolos médicos e no tratamento à aids. Florence se filiou ao Act up e à Coalizão de pessoas com aids. Nos meses finais da vida do filho, ela entendeu que não poderia parar por ali, precisava transformar aquilo em ativismo, em um modo de ajudar outras mães, heterossexuais, de famílias conservadoras como a dela. Elas enfrentavam questões que não apenas tinham a ver com a doença, mas também com a sexualidade. Florence entendia que era importante se falar de sexualidade na família. E que as mães idosas não tinham espaço dentro da coalizão, formada em sua maioria por militantes jovens. E daí, a partir de 1986, começou a reuni-las em seu apartamento. Os encontros formaram o grupo de mães de pacientes com aids. A partir do grupo, ela organizou eventos e falas públicas e, em 1996, a Newsline, revista editada pela coalizão de pessoas com aids, publicou uma edição sobre o envelhecimento.
Sobre o que falava a revista?
Veja que a epidemia começa entre 1981 e 1982, mas só em 1996 é publicada uma coletânea de trabalhos que relaciona a doença ao envelhecimento. A revista não falava apenas de adoecimento de pessoas idosas. Falava de mães mais velhas que cuidavam de filhos; de pessoas que não eram incluídas em protocolos para testes com AZT e outras drogas, porque elas eram “velhas demais”. As empresas farmacêuticas e o CDC só recrutavam pessoas mais jovens. Então o movimento de mães cuidadoras não tinha apenas foco no cuidado doméstico, mas também já tocava na pauta política do envelhecimento na sociedade. Um pouco dessa história do ativismo das mães está no quinto capítulo do livro, quando estamos falando de gerontologia social, comprometida com problemas sociais estruturais — diferente da primeira parte do livro, que fala de biogerontologia.
A partir de sua pesquisa, qual é o impacto real da epidemia de HIV e aids no envelhecimento de pessoas LGBTQIA+?
Quando se cria uma representação, e essa representação se torna hegemônica — ou quando se cria uma identidade sobre o aspecto cultural de disseminação de uma doença na sociedade, afirmando que ela está relacionada a um determinado grupo — a sociedade se desabona da preocupação com outras pessoas, ou de olhar para a doença dentro de um espectro maior. As doenças replicam desigualdades na sociedade. Hoje, o debate sobre HIV e aids entre pessoas mais velhas no Brasil ainda é muito incipiente; em 2015, a epidemia passou a ter uma preponderância de novos casos notificados entre pretos e pardos. Estes exemplos têm a ver com processos de desigualdade, já que se referem a pessoas que não conseguem acessar os serviços por inúmeras razões.
A epidemia ensinou aos homossexuais que a eles não bastava ter uma saúde boa; eles precisavam performar uma saúde excelente
E como isso afeta diretamente a população LGBTQIA+?
Dentro do movimento LGBTQIA+, de forma geral, existem representações muito particulares. Entre os homens gays, por exemplo, são preponderantes as representações que enaltecem a juventude e a liberdade. Embora sejam representações positivas, importantes, em grande medida também reforçadas pela indústria cultural, há um vácuo sobre o envelhecimento, até porque os modelos hegemônicos de masculinidade, de relacionamentos e as próprias corporalidades, são muito mais intensos e arraigados entre grupos historicamente subalternizados. Esses grupos disputam aceitabilidade social. E aceitabilidade está diretamente relacionada à adequação social e à normalidade.
Em que sentido?
A gente diz muito, dentro dos estudos de HIV e aids, que a epidemia ensinou aos homossexuais que a eles não bastava ter uma saúde boa; eles precisavam performar uma saúde excelente. Nos anos 1980, surgiu a ideia do corpo sarado, do corpo curado, que é alçado a ícone cultural hegemônico no meio gay, com uma relação muito forte com a juventude. Isso não é apenas um modelo de saúde, mas também é uma forma de pânico moral subjetivada pelas pessoas. Eu já fiz pesquisas em aplicativos de encontros, onde as pessoas buscam exatamente esse modelo do pânico sexual: homens discretos, másculos, jovens e “fora do meio”. Isso, por um lado, mostra como homens gays aprenderam a negociar seus desejos e sua identidade, subjetivando questões de saúde; por outro, aponta para os limites desses modelos hegemônicos vigentes que invisibilizam segmentos mais velhos, tanto em termos de políticas de saúde de uma forma mais abrangente, como de questões mais básicas, a partir de experiências afetivas e dos relacionamentos amorosos/sexuais.
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