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No ano em que o Brasil se prepara para organizar a 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, em julho de 2024, Anna Paula Feminella reafirma que a construção de uma agenda de fato inclusiva precisa considerar que os direitos das pessoas com deficiência estão em todas as políticas. Esse é o caminho para superar o capacitismo. “Se não tratar a deficiência como uma variável estratégica fundamental no desenvolvimento de políticas públicas, a gente vai continuar a ampliar as desigualdades sociais e as opressões contra as pessoas com deficiência”, aponta.

Desde janeiro de 2023, Anna Paula é secretária nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Ao assumir o cargo, ela se deparou com a urgência em retomar a pauta pela perspectiva dos direitos humanos — e não como caridade ou filantropia. “O Estado brasileiro tem que ser o garantidor desses direitos”, destaca.

Diante do que avaliou como “vazio” deixado na gestão anterior, Anna Paula faz um balanço do primeiro ano à frente da secretaria como um esforço em “arrumar e reestruturar a casa e tirar as cinzas”. Em maio de 2023, o governo determinou a elaboração do novo Plano Viver Sem Limite, com o objetivo de promover os direitos das pessoas com deficiência.

Nesta entrevista à Radis, a secretária, que é servidora da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), especialista em Gestão Pública e em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde se graduou, fala sobre o novo plano, construído doze anos após o lançamento da primeira versão. Além disso, ressalta que as políticas públicas devem compreender a diversidade das pessoas com deficiência — e que elas desejam ser reconhecidas, sem segregação, em todos os campos da vida. “A gente não quer falar apenas sobre deficiência”, afirma.

Ela ainda pontua o papel dos profissionais de saúde em desmistificar a ideia de que o corpo com deficiência é um corpo doente, que requer apenas cura ou reabilitação. E deixou um recado: “Olhe nos olhos e construa a relação direta com a pessoa. Não entenda a deficiência como uma tragédia, não busque uma explicação religiosa, esotérica sobre a causa, mas atue no presente”.

O que é o novo plano Viver sem Limite? 

É uma nova construção do Plano Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que retoma a política depois de um vazio desde o golpe da [presidenta] Dilma [Rousseff], em 2016. A gente ficou sem um plano que fosse mais sistêmico para garantir os direitos da pessoa com deficiência em todas as políticas públicas. O primeiro Viver Sem Limite foi lançado em 2011 e foi até 2015. Teve quatro eixos e focou no direito à saúde, à educação, à assistência social e na acessibilidade. A partir dos aprendizados desse primeiro plano, a gente quis colocar um guarda-chuva de possibilidades do sujeito de direitos. Para isso, identificamos as lacunas das políticas públicas que inviabilizam o pleno desenvolvimento e a participação social das pessoas com deficiência para assim construir uma política de Estado mais completa para superar todo o ciclo de invisibilidade, discriminação e violação de direitos.

Quais são os eixos estruturadores da nova versão? 

São quatro eixos bem diferentes. O primeiro é gestão e participação social. Como é que a gente vai alterar o Estado brasileiro? Como é que vai fazer a gestão de forma inclusiva, contemplando a participação social e o protagonismo das pessoas com deficiência? São medidas mais estruturantes. Ali estão a implementação de um Sistema Nacional da Avaliação da Deficiência pela perspectiva da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da LBI [Lei Brasileira de Inclusão, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015]. A gente está retomando a avaliação na perspectiva biopsicossocial e multiprofissional para que haja a devida identificação de quem são as pessoas com deficiência e quais são os suportes para que elas consigam ter os seus direitos equiparados às demais pessoas. O segundo eixo é uma agenda que nunca foi trabalhada. É a primeira vez que o governo federal conceitua a discriminação por deficiência e se dispõe a formular política pública para fazer o devido enfrentamento. O terceiro eixo é o mais tradicional, que é acessibilidade e tecnologia assistiva. No quarto eixo, entram todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. 

“É uma questão estruturante para a inclusão da pessoa com deficiência começar desde a educação básica a pertencer a um espaço social para além da família.”

Que problemas devem ser enfrentados como prioridade?

Um deles é a grande desigualdade social da população com deficiência, o acesso à educação e como se manter na educação. Tivemos o investimento do MEC em quase 3 bilhões de reais em ações que viabilizem a educação inclusiva. É uma questão estruturante para a inclusão da pessoa com deficiência começar desde a educação básica a pertencer a um espaço social para além da família. É importante ela estar na vida pública e em seu território. É preciso dizer que a população com deficiência não é igual, por isso a gente tem que ir para a periferia, para onde as pessoas ficam mais isoladas do poder público e as emergências humanitárias são maiores.

“Foi preciso retomar a perspectiva de direitos humanos e o diálogo entre os ministérios.”

Como superar as dificuldades e avançar na garantia de direitos?

O primeiro ano de governo foi o de arrumar e reestruturar a casa e tirar as cinzas. Foi preciso retomar a perspectiva de direitos humanos e o diálogo entre os ministérios. Outro salto qualitativo foi a Câmara Intersetorial, que está no campo do eixo da gestão. Sete ministérios que aportaram maiores recursos vão chamar outros ministérios para enfrentar problemas complexos e complementares. A questão da empregabilidade, por exemplo, não dá para ficar só na conta do MDHC e do Ministério do Trabalho. É somar esforços. Acredito que a gente ainda tem muito a avançar na formação de todos os profissionais que fazem atendimento ao público, os que atuam nas políticas públicas que ainda desconhecem aspectos fundamentais para a efetividade dos direitos. A identificação da sub-representação da pessoa com deficiência na política impacta na ausência de políticas públicas adequadas, acessíveis e inclusivas. Por mais que a política afirmativa de cota da população negra já esteja mais entendida, a cota para a população com deficiência ainda é vista como caridade. Ela não coloca a pessoa como sujeito de direitos e subalterniza essas pessoas.

Na sua avaliação, há abertura dos gestores no sentido de compreender a importância dessa pauta?

Havia, e ainda há, demandas reprimidas das pessoas com deficiência que nunca foram atendidas. Há grande mobilização das pessoas que nunca atuaram na agenda de direitos da pessoa com deficiência e muita disposição para aprender e fazer. O Ministério da Saúde está investindo bastante. Há uma demanda imensa por órtese, próteses, oficinas ortopédicas, tecnologias assistivas, profissionais qualificados. Há falta de terapeutas ocupacionais. Quando a gente fala dos direitos da pessoa com deficiência devido à heterogeneidade de suporte, recursos, metodologias e serviços, muitas vezes há interesses econômicos, às vezes legítimos e outros ainda baseados na perspectiva do lucro e não tanto na garantia de direitos. O Estado brasileiro tem que ser o garantidor desses direitos. Se os gestores públicos não construírem uma base crítica de entendimento da deficiência e de como prover os recursos públicos de forma adequada, podem ser corrompidos por interesses econômicos de venda de soluções fáceis para problemas complexos que não vão atender às necessidades.

Poderia dar um exemplo?

Dou como exemplo a super medicalização das pessoas com deficiência. Na agenda dos autistas, há muito interesse econômico envolvido e venda de solução rápida e fácil que, na verdade, é só um produto a mais do mercado. É preciso atuar com várias medidas e a gente tem que pensar em políticas públicas. Gosto de um referencial bastante didático da Luciana Jaccoud, pesquisadora do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], que diz que deve-se contemplar quatro tipos de políticas: as políticas afirmativas; as políticas formativas de conhecimentos sobre o tema; a política valorativa da presença da participação, com uma difusão dessa agenda; e a política repressiva, porque a impunidade incentiva a continuidade da situação. A gente já tem avanços normativos que precisam se efetivar. A lei não se autoexecuta e, por isso, é preciso medidas nesses quatro campos.

— Foto: Clarice Castro/MDHC.

Quem arca com os custos do capacitismo?

Ele recai muito sobre as famílias que empobrecem. É enorme a carga mental de uma família que não tem estrutura, condições e conhecimento quando recebe uma criança com deficiência. Elas sentem o impacto desde o momento em que o profissional de saúde não entende a deficiência e coloca a família numa condição de luto, na dimensão de uma tragédia desde o nascimento de um bebê com deficiência. Acredito que a gente está rumando para superar isso, mas ainda enfrenta os desafios de um território extremamente complexo. Por isso, vamos priorizar os mais distantes do poder público, como ribeirinhos, quilombolas, pessoas que vivem em territórios indígenas e periféricos.

Qual a importância de formar a gestão pública? 

É importante para entender e dar conta das especificidades das pessoas com deficiência como dado de realidade para a garantia e efetividade das políticas públicas e para que essas ações impactem na redução da desigualdade. Se não tratar a deficiência como uma variável estratégica fundamental no desenvolvimento de políticas públicas, a gente vai continuar a ampliar as desigualdades sociais e as opressões contra as pessoas com deficiência. 

Qual o papel dos movimentos sociais na construção de um Brasil mais inclusivo?

É fundamental. A gente tem incentivado a população com deficiência, organizações, agentes culturais e públicos a entenderem essa agenda e pressionar os governos estaduais e municipais por meio das conferências. Em 2024, vamos ter as conferências municipais e estaduais e, no início de julho, depois de oito anos, a 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Vivemos a retomada da participação social de baixo para cima e é esse trabalho de formiguinha que vai fortalecer essa agenda. É sintomático que a gente tenha uma Lei Brasileira de Inclusão, que passou por um processo legislativo de 15 anos. Isso demonstra o jogo de interesses, lobbies diferenciados e atores sociais envolvidos. E não só os movimentos das pessoas com deficiência, mas movimentos de organizações que historicamente tutelam essas pessoas.

Como se dá a divisão de forças entre os movimentos de pessoas com deficiência?

O cobertor é curto, então, é o surdo competindo por recursos com o cego e a pessoa com deficiência física. A gente precisa fortalecer o que nos unifica e combater essa opressão capacitista. Precisamos reconhecer essa emergência humanitária, nos unir no fortalecimento dessa identidade de forma valorativa, para que a gente impacte mais no Estado brasileiro nessa relação com os movimentos de pessoas com deficiência.

Há capacitismo no próprio movimento de pessoas com deficiência e como se expressa?

Há uma agenda de segregação que a gente quer também alterar e ela vem a partir de alguns movimentos. Entendo que o capacitismo é estrutural na nossa sociedade e está introjetado, por isso o desvendar para a gente mesmo. A gente precisa se colocar como parte do problema, como pessoas mergulhadas numa cultura capacitista para tirar esse moralismo. Muitas vezes é usado o “nada sobre nós sem nós” [lema do movimento], como se só eu tivesse a verdade e você não. Fazer política pública com o umbigo não dá certo porque há heterogeneidade das demandas. 

Como contemplar a diversidade das pessoas com deficiência em relação à representação política?

O fato de eu ser cadeirante não me coloca na condição de especialista em políticas públicas para todas as pessoas com deficiência ou no direito de falar em nome de qualquer outra pessoa. Se eu não tenho mandato e não fui eleita, não tenho esse direito, mas muitas vezes o movimento faz assim. Acho que os vícios dos movimentos sociais são vícios dos movimentos políticos em geral. Não é suficiente a gente entender a bandeira “nada sobre nós sem nós”. O que a gente tem falado é “tudo conosco, sem segregar”, porque a gente não quer falar apenas sobre deficiência. Às vezes enjoa falar só sobre isso, temos que entender de política econômica e outros assuntos já que somos seres políticos no amplo sentido.

Como você sentiu o olhar do outro sobre o seu corpo com deficiência?

Pela minha vivência de 31 anos sem deficiência, consigo comparar o que eu pensava com o que penso hoje. Era o corpo que eu tinha, um corpo desejável, e, de repente, perder isso, de uma hora para outra, e virar um corpo identificado como assexuado. É um corpo paciente. Sofri um acidente, como muitas das pessoas que se tornam pessoas com deficiência. O impacto aconteceu desde o momento em que fui fazer o atendimento médico. Fiquei 19 dias no hospital e, de repente, eu, que nunca fui uma pessoa de ficar nua na frente de qualquer outra, fiquei exposta. Não me via mais como a Anna mulher, na minha sexualidade ampla. E percebi o olhar do outro como um olhar de pena. É uma coisa horrorosa. A pessoa me conhece, olha para mim, faz um comparativo e chora na minha frente. Isso é um impacto enorme. Já faz 20 anos, hoje dá para falar, naquela época não. Fui mãe aos 40 anos, na cadeira de rodas, e perguntaram para minha amiga se eu tinha sido estuprada. Veja, aquela gravidez não era vista como fruto de uma relação sexual amorosa que gerou uma criança. É uma experiência que atinge em cheio a nossa própria autoimagem.

“Pessoas com deficiência têm direito à saúde e não precisam ser tutelados pelo acompanhante.”

Que recado você daria para um profissional de saúde melhorar o atendimento de uma pessoa com deficiência?

Para o profissional da saúde de todas as áreas, eu digo o quanto você é fundamental para desmistificar a ideia de que o corpo com deficiência é um corpo que requer cura ou reabilitação, ou um corpo paciente. A gente é mais do que isso, somos sujeitos de direitos. Há muito a se estudar, muita pesquisa a se desenvolver para que a gente ganhe mais autonomia. Pessoas com deficiência têm direito à saúde e não precisam ser tutelados pelo acompanhante. Quem está acompanhando a gente pode ajudar no suporte, na comunicação, mas olhe nos olhos e construa a relação direto com essa pessoa com deficiência. Por mais que você queira ou busque o apoio de um intérprete de Libras ou de qualquer outro profissional que faça a mediação da comunicação, se necessário, não perca a relação direta da pessoa com deficiência com você. Não entenda a deficiência como uma tragédia, não busque uma explicação religiosa, esotérica sobre a causa, mas atue no presente. É muito comum que as pessoas com deficiência sejam desacreditadas naquilo que falam. Isso dói muito. Às vezes o silêncio também informa e é importante tentar colocar a pessoa não naquela condição passiva e, sim, no diálogo à promoção da saúde de fato, não só na busca pela cura e reabilitação.

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