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Por mais de um ano inteiro, Sarah e eu dividimos o mesmo quinto andar de um prédio administrativo da Fiocruz, na avenida Brasil – no local, funciona a redação de Radis. Entre uma pauta e outra, cruzei com Sarah pelos corredores, na porta da sala para um “bom dia” apressado ou quando me trazia algo para enxugar o café invariavelmente derrubado por mim sobre a mesa de trabalho. Sabia que ela era ágil, que deixava o ambiente brilhando, que costumava chegar bem cedo e que, vaidosa, gostava de trocar ideias com Ana, com quem dividia os serviços de limpeza – vez ou outra agucei os ouvidos para pegar alguma dica de maquiagem que ela sugeria à amiga, na entrada do banheiro.

Mas não sabia seu nome completo (Sarah Gabriela dos Santos) nem que tinha feito curso de formação de bombeiro profissional civil. Que mora em Belford Roxo, município da Baixada Fluminense e leva mais de uma hora para se deslocar de ônibus de casa até o trabalho. Que tem dois filhos, apesar de apenas 23 anos. Que adora jogar videogame com eles em dias de folga. E que, se houvesse uma pandemia de uma doença misteriosa provocada por um vírus que mataria mais de meio milhão de brasileiros em um ano e meio, ela seria uma das primeiras a se oferecer para trabalhar na linha de frente em um hospital. Fez isso apesar dos riscos, por necessidade.

Quando a Fiocruz inaugurou o Centro Hospitalar para a Pandemia de Covid-19, no campus de Manguinhos, em maio do ano passado, Sarah se apresentou voluntariamente junto à empresa terceirizada para a qual trabalha. Estava pronta para mudar de setor, se fosse preciso. “Por ser um vírus novo que ninguém conhecia muito bem, os funcionários não eram obrigados a vir. Fui eu quem me coloquei à disposição, não só para trabalhar no hospital, mas também no plantão noturno”, explica. Como servente da área hospitalar ganharia adicional de insalubridade e isso lhe ajudaria com as contas que andavam apertadas.

No início, sentiu medo sempre que saía de casa, deixando os filhos de 4 e 6 anos aos cuidados da mãe e da avó, para se dirigir a uma rotina de trabalho em um hospital. Também ao voltar, ela tinha receio. “Apesar de só andar de máscara e com um potinho de álcool em gel, eu tinha medo de sair levando o vírus por aí. Não gostava nem de encostar nas coisas na rua por onde eu passava”, lembra. “Chegando em casa, tirava a bota e ia direto tomar um banho. Era assustador e precisava ter todo o cuidado. Minha avó tem mais de 70 anos”. O treinamento sobre o uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e de como agir durante e depois da rotina de trabalho ajudou a dissipar o temor.

— Foto: acervo pessoal.

Rapidamente, aprendeu a lidar com o capote, a face shield, as máscaras N-95 e toda uma sorte de nomes e conceitos que não lhe eram usuais. “Por se tratar de um hospital, a limpeza tem que ser impecável. Do contrário, tem os riscos da ‘contaminação cruzada’, que acontece quando um paciente que não tem covid pode contrair o vírus da doença ou mesmo uma outra bactéria por conta de uma limpeza mal feita”, aprendeu depressa. “Hospital tem esse tipo de coisa. Os leitos têm que estar bastante limpos e higienizados, até mesmo para ajudar na recuperação do paciente. É muita responsabilidade”.

Durante nove meses, Sarah foi uma das trabalhadoras responsáveis pela limpeza dos dezenove leitos em um dos corredores do centro hospitalar da Fiocruz, que no total abriga 195 leitos intensivos e semi-intensivos. Depois disso, assumiu a função de líder de equipe. Significa que cabe a ela agora coordenar um grupo de 19 pessoas, que se revezam, incansáveis, limpando piso e mobílias, retirando o lixo, varrendo os corredores e repetindo a operação depois de um intervalo – “fazendo a revisão das mobílias e do chão, limpando as lixeiras, outra vez executando a faxina no corredor, vendo se tem alguém precisando de ajuda”, Sarah segue explicando. Um mesmo leito pode ser limpo até quatro vezes durante um plantão.

Seu dia a dia é composto de plantões, numa jornada de 12×36 – quando o trabalhador atua em um expediente de 12 horas e ganha o direito ao descanso nas 36 horas subsequentes. Um dia, Sarah chorou. Durante uma limpeza rotineira em um dos leitos, percebeu que o monitor de sinais vitais de uma paciente apresentava uma alteração. Coube a ela acionar o médico plantonista. Mas mesmo com todos os cuidados dispensados, infelizmente, a paciente veio a óbito, algo que ela só descobriu bem mais tarde ao revisitar o quarto em busca de notícias.  “Isso mexeu muito comigo”, conta. “Estamos todos vivendo um momento muito triste no país e no mundo desde que a covid chegou tirando a vida de muitos. A gente acaba descobrindo que a vida é um sopro”.

Com as duas doses de Astrazeneca já recebidas – “da limpeza à enfermagem, todo trabalhador da saúde foi vacinado”, diz – e com o hospital vivendo dias menos intensos, ela se sente mais confiante e preparada para lidar com o estresse de uma rotina de trabalho extenuante que inclui elevada carga emocional. Em nenhum momento, Sarah se arrepende da escolha que fez logo que a pandemia se anunciou. A depender dela, pretende seguir trabalhando no hospital por mais tempo e já tem planos de voltar a estudar, quem sabe fazer um curso técnico de enfermagem, cogita. Também quer aproveitar cada momento com os filhos, a família, passear com o namorado, reformar a casa.

Tudo isso eu só soube ao entrevistar Sarah para uma reportagem inspirada pela pesquisa “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil” [cujo texto completo você confere na edição de Radis de setembro]. Não há como não lembrar de uma frase que ouvi na entrevista com Maria Helena Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocurz) e coordenadora do estudo. Ela me disse: “A sociedade de um modo geral e a população usuária dos serviços de saúde no Brasil não percebem os trabalhadores da saúde”. Mas é preciso notá-los. É urgente reconhecer a enorme diferença que fazem no cotidiano do nosso sistema de saúde.

Sarah, obrigada pela entrevista e por compartilhar com os leitores de Radis a sua rotina. Também um pouco de sua vida, seus sonhos e seus planos.

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