Advogado, o cearense Ricardo Weibe Tapeba era, no início de 2023, um dos nomes cotados para assumir o comando do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. Com a escolha de Sônia Guajajara para o cargo pelo presidente Lula, Weibe foi convidado pela ministra Nísia Trindade para estar à frente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que integra a estrutura do Ministério da Saúde.
Pouco depois de ser nomeado, Weibe já enfrentou seu primeiro desafio, com a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) no território Yanomami. A situação não era fácil. A notícia de que 570 crianças de até cinco anos haviam morrido de causas evitáveis na Terra Indígena Yanomami (TIY), entre 2019 e 2022, circulava em todo o país, que finalmente levava em consideração as denúncias feitas por lideranças da região (Radis 247).
Em entrevista à Radis, quase um ano depois, o secretário rememora os bastidores da operação e destaca a complexidade da situação, que ainda hoje faz vítimas em Roraima. Ele reconhece o fato, mas destaca alguns avanços em relação à prestação de serviços de saúde no território indígena, bem como informa algumas mudanças propostas para 2024, entre elas a recuperação da força de trabalho e da infraestrutura, e ainda a criação de um hospital especializado na capital Boa Vista.
Com a experiência de quem coordenou a Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince), compõe o departamento jurídico da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e foi eleito vereador para o segundo mandato pelo município de Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, Weibe também comentou como lida com os desafios, como reestruturar a saúde indígena no país, enfrentar a pauta anti-indígena no Congresso Nacional e propor mudanças para que a saúde indígena se torne efetivamente uma prioridade.
Para isso, ele conta com a experiência de quem vive retomadas desde criança e com a força espiritual e comunitária que recebeu do pai, o ativista Dourado Tapeba, e da mãe, a agente de saúde Sílvia Tapeba. Um conhecimento ancestral e comprometido, que pretende deixar como legado: “Nossa intenção é que esses conhecimentos sejam perpetuados e repassados para as gerações futuras”.
Após um ano da declaração de emergência sanitária em território Yanomami, denúncias na imprensa e relatos de lideranças apontam que a crise humanitária continua. Como você avalia o trabalho feito até agora?
É preciso reconhecer a importância dessa declaração, a primeira emergência sanitária de importância nacional em território indígena formalizada na história do nosso país. Estamos falando da maior terra indígena do Brasil, com quase 10 milhões de hectares com uma população de 31 mil indígenas, distribuídos em mais de 380 comunidades, o que gera uma dificuldade muito grande na parte logística, na entrada e saída de equipes de saúde. Temos uma limitação de acesso ao território, que se dá 98% pelo modo aéreo. Também estamos falando de uma emergência que foi provocada pela presença do garimpo ilegal no território, que contamina os rios e os peixes com o mercúrio, afasta os animais, provoca a desagregação social, impacta os modos de vida e a capacidade produtiva da comunidade. Além disso, criou-se um cenário favorável para que houvesse um surto de malária, além de fome e desnutrição grave. Foram esses os principais motivos de morte naquele território. Assumimos a gestão da Sesai no começo de janeiro de 2023, e logo na primeira semana de trabalho acionamos uma sala de situação com a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], que havia sido paralisada na gestão passada, quando decidimos encaminhar ao território uma equipe exploratória para fazer um diagnóstico situacional. Antes de voltar, a equipe nos repassou um alerta de muita gravidade no território. A partir dali, levamos ao gabinete da ministra Nísia a seriedade do caso. A ministra decidiu então editar uma portaria instituindo a Espin, quando iniciamos nossas ações no território.
E quais as dificuldades encontradas nesse primeiro ano?
É preciso colocar que a nossa ação é levar saúde para o território indígena. No caso Yanomami, temos um território onde há violência, garimpeiros são investigados por estupro e são foragidos da Justiça. A presença do garimpo é também sinônimo de insegurança, de ameaça contra as comunidades indígenas e contra os agentes públicos, o que inclui os trabalhadores da saúde indígena. De acordo com os relatos de lideranças e trabalhadores da saúde indígena, no início de 2023, havia no território mais de 200 comunidades desassistidas. Com o avanço da desintrusão do território, conseguimos ampliar nossa capacidade assistencial. Infelizmente o garimpo começou a voltar às áreas que haviam sido desintrusadas, e o problema da fome, da malária e da desnutrição foi voltando. Só conseguiremos levar assistência à saúde a todo o território quando de fato ele estiver livre do garimpo ilegal.
O que é preciso fazer, neste momento, para restaurar a saúde da população que vive no território Yanomami?
O que temos feito para tirar o povo Yanomami do cenário de desassistência tem sido aumentar nossa capacidade assistencial. Tínhamos oito polos-base fechados; desses oito, conseguimos reabrir sete. A gente tem demandado do Ministério da Defesa e das forças de segurança apoio para reabrir o oitavo e garantir uma rotina de assistência nessas áreas. Conseguimos ampliar de 690 para 960 o número de trabalhadores, profissionais de saúde contratados diretamente pela Sesai, e por parcerias firmadas com a Fiotec, vinculada à Fiocruz. Também há pessoas atuando de forma voluntária no território, ligadas a Unicef, Expedicionários da Saúde e Médicos sem Fronteiras, resultado de articulação institucional da Sesai. Mas só iremos de fato ter condição de restabelecer um modelo de atenção à saúde no território quando reestabelecermos a capacidade produtiva da comunidade. O território vive um conflito armado, com problema de drogas, álcool, estupros e aliciamento. O presidente Lula anunciou recentemente medidas que visam sair do cenário de ações emergenciais para ações mais estruturantes permanentes. Entre elas, estão a implantação de três bases interagentes no território, para garantir mais segurança pública na região.
E em relação à força de trabalho?
Vamos buscar ocupar todas as vagas de profissionais de saúde. A função de técnico de enfermagem, por exemplo, é um gargalo muito grande para nós. Temos mais de 100 vagas ociosas, porque infelizmente há uma limitação desse tipo de profissional de saúde no mercado. Para isso, vamos buscar estratégias para atrair profissionais. E olha que conseguimos ampliar o número de profissionais contratados. Também enxergamos, neste momento, a necessidade de sermos mais resolutivos dentro do território. Para isso, nossa intenção é implementar na região de Surucucu, que virou a principal base logística e operacional de toda a emergência sanitária, o primeiro centro de referência em saúde indígena para levar, além dos serviços de atenção primária, serviços de atenção especializada, saúde digital e telemedicina.
Como garantir maior resolutividade das ações?
Estamos fazendo um esforço muito grande para garantir a construção do primeiro hospital indígena do Brasil, em Boa Vista. A ideia é ter um hospital de retaguarda para todos os povos indígenas de Roraima. Além disso, também estamos com uma licitação em curso para a reconstrução da nossa Casa de Saúde Indígena (Casai). Um aspecto que gostaria de reforçar é que quando declaramos a emergência sanitária identificamos que a maioria das nossas unidades de saúde não dispunham de infraestrutura básica, de acesso à água potável, à energia elétrica e à internet. Conseguimos, a partir da emergência, fazer um debate público, institucional e interministerial e garantir, com apoio dos ministérios de Minas e Energia, da Saúde e de Telecomunicações, acesso à energia, à água potável e à internet nessas unidades de saúde. Se a gente não tiver uma estrutura básica, nenhum profissional de saúde se sentirá encorajado, atraído ou estimulado a prestar o seu serviço dentro desse território, onde ele vai precisar ficar 15, 30 ou 45 dias seguidos.
“A composição do Congresso Nacional não garante um conforto político para que a gente consiga avançar projetos progressistas, que enxerguem os povos indígenas como prioridade.”
Recentemente o Congresso promulgou a Lei 14.701 [que trata da demarcação das terras indígenas], considerada pelo movimento indígena como a Lei do Genocídio. Como é promover saúde em um contexto tão adverso?
Estamos em um governo composto por uma correlação de forças. Elegemos o presidente Lula, num projeto progressista, mas infelizmente a composição do Congresso Nacional não garante um conforto político para que a gente consiga avançar projetos progressistas, que enxerguem os povos indígenas como prioridade. Ao mesmo tempo em que o governo federal assegura o protagonismo indígena na Sesai, nos seus 34 Dseis e na própria Funai, cria o Ministério dos Povos Indígenas e traz de volta as instâncias de controle social e de gestão participativa, o Congresso tem uma agenda que é anti-indígena. Infelizmente não temos conseguido avançar muito ali com uma agenda de interesse das populações indígenas. Do ponto de vista da base governista, há um esforço para que todos os retrocessos que estão sendo legislados na Câmara dos Deputados e no Senado sejam mitigados. Tanto é que, em relação ao projeto de lei que envolve o Marco Temporal, houve uma disposição do presidente Lula em vetar uma parte desses prejuízos. Havia uma mobilização de grande parte da bancada governista em votar contra a proposta, já que o próprio Supremo Tribunal Federal tinha afastado essa teoria.
Como tornar a saúde indígena uma prioridade?
Há uma disposição do Governo Federal em reconhecer a saúde indígena como prioridade, tanto é que em maio de 2023 fomos à Genebra, na 76ª Assembleia Mundial de Saúde, e conseguimos aprovar uma proposta de resolução, liderada pelo governo brasileiro, reconhecendo a saúde indígena como uma prioridade mundial. A resolução também coloca a saúde indígena como prioridade da Organização Mundial da Saúde. A intenção é que cada país que possua população indígena possa implementar planos nacionais de saúde. O texto contou com a colaboração da Fiocruz, de especialistas e pesquisadores. Nossa intenção é, em 2024, realizar cinco seminários regionais e um nacional, para elaborar uma nova política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas.
Isso é reflexo da presença e do protagonismo indígena nos espaços de gestão da Saúde?
Com certeza! Fizemos um pacto com o presidente Lula, quando ele ainda era candidato, quando dissemos que nosso apoio não seria suficiente apenas com o voto, mas que de fato a gente queria incidir na gestão pública. Ele se comprometeu a criar o Ministério dos Povos Indígenas e a reforçar, reestruturar e fortalecer a Sesai e a Funai, colocando gestores indígenas para comandar a política indigenista brasileira. Estamos tentando recuperar estas duas instituições muito importantes: Funai e Sesai, que infelizmente tiveram suas ações fragilizadas e viviam num cenário de subfinanciamento. A gente não pode esquecer que a proposta de Lei Orçamentária aprovada no final de 2022 previa um corte no orçamento da saúde indígena da ordem de 59%. Conseguimos, no período de transição, logo após a eleição, manter os recursos e ter um incremento em 2023 para dar conta da realidade da saúde indígena.
E quais são as perspectivas para 2024?
Para 2024, conseguimos ter um novo incremento de cerca de 900 milhões de reais, além de um financiamento, dentro do Plano de Aceleração do Crescimento, do Proadi-SUS [Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde], do Fundo da Amazônia, do Água para todos. Estamos buscando tirar a saúde indígena do cenário de subfinanciamento. Há também um cenário de passivos na área da estruturação de unidades de saúde, de polos-base, de sedes de Dsei, de alojamentos para profissionais, uma demanda reprimida que a gente precisa dar conta. Também precisamos investir em saneamento básico. Apenas cerca de 20% dos territórios indígenas possuem saneamento básico. Nossa intenção é implementar nos próximos anos um programa nacional de saneamento indígena, que tenha a corresponsabilidade de outros ministérios e de outras instituições, com orçamento e responsabilidades nessa área. Nossa intenção é tirar a Sesai da cultura do isolamento e estabelecer uma relação de cooperação com os demais ministérios, uma relação interfederativa mais próxima que possa atrair novos parceiros e nos ajudar a dar conta desse passivo da saúde.
O tema do Acampamento Terra Livre, em 2023, foi “O futuro indígena é hoje: sem demarcação não há democracia”. Em que o senhor considera que já se avançou para a construção desse futuro hoje?
O tema está ligado diretamente à luta pela terra. Há um lema que diz que a luta pela mãe terra é a mãe de todas as lutas. Eu integrei o Conselho Nacional de Política Indigenista e fui relator da subcomissão de terra e território. Isso lá em 2012, 2013. Naquele momento, tínhamos 495 terras indígenas reivindicadas e 119 em processos de identificação e delimitação. Esse dado ainda não mudou. E é um dado preocupante porque isso equivale a cerca de 52, 53% das terras indígenas no Brasil que não possuem nenhum tipo de providência e segurança jurídica. É exatamente nessas terras onde temos muito conflito e muita violação dos direitos humanos. Isso cria dificuldades para que o Estado brasileiro garanta a implementação de políticas públicas. Há um entendimento extremamente equivocado de que só se deve assegurar saúde indígena, educação escolar indígena e outras políticas sociais se o território estiver devidamente homologado. Havia inclusive na Sesai uma orientação escrita que apontava nessa direção. Nós mudamos essa orientação, mas evidentemente temos áreas de retomada, que são de muito tensionamento, onde não há como a Sesai construir uma unidade de saúde de forma imediata. Mas temos enxergado a necessidade de avançar com as ações de saúde nessas áreas que não estão sequer demarcadas, delimitadas ou identificadas. Um objetivo que precisa ser alcançado é buscar, no diálogo com o movimento indígena, com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com o Fórum de presidentes de conselhos de estados de saúde, com os Condisi e com os conselhos locais, um novo arranjo de gestão que possa aperfeiçoar e fortalecer o controle social e a gestão participativa. No governo passado, essas instâncias foram praticamente exterminadas e não havia nenhum tipo de diálogo franco, aberto, institucional, com o movimento indígena brasileiro. Nós estamos recuperando e fortalecendo essas instâncias.
“Os povos indígenas cumprem uma função socioambiental que é milenar, ancestral e atual.”
Qual a principal contribuição que os povos indígenas podem dar para a preservação ambiental e o futuro do planeta?
Os povos indígenas cumprem uma função socioambiental que é milenar, ancestral e atual. Há a consciência de uma relação afetiva com a mãe terra, com o território, os biomas, os ecossistemas. Nós entendemos que o planeta Terra é uma casa comum e que herdamos esses territórios dos nossos ancestrais e temos que assegurar o futuro das próximas gerações. Temos alertado a sociedade mundial sobre a necessidade de nova dinâmica de relação com a mãe natureza. Hoje temos visto as mudanças climáticas e catástrofes ambientais. Especialistas colocam que isso vai virar um novo normal. Considero muito relativo nos acomodarmos com esse conceito de “novo normal”. O que a gente precisa fazer é insistir em uma nova consciência ambiental, em uma nova relação de desenvolvimento social e econômico que respeite a mãe natureza, seja o mais sustentável possível, emancipando-se inclusive dos combustíveis fósseis e tentando evidentemente superar desigualdades sociais, especialmente nessas regiões muitas vezes vistas somente como áreas para a exploração de recursos naturais.
O senhor é filho de um dos líderes da Apoinme e de uma agente de saúde. Como esses exemplos contribuíram em sua trajetória?
Meu pai é um grande defensor da saúde indígena, ajudou inclusive a criar a Sesai. Ele tem uma trajetória linda, é um conselheiro, uma pessoa que me ajudou a chegar onde estou e que continua ao meu lado, me orientando. Lá no nosso território eu cumpri muitas missões. Com 14 anos de idade, já atuava como professor indígena. Desde criança, participei efetivamente das 36 retomadas realizadas pelo nosso território, que foram fundamentais para assegurarmos áreas para a construção de escolas, unidades de saúde, áreas de plantio, moradias e áreas de lazer, das lagoas, dos riachos, dos campos de futebol. A luta pelo território sempre foi intrínseca à nossa representação política. Aprender a respeitar o território e a relação como a mãe natureza se deu no seio familiar. O papel do meu pai, da minha mãe e dos meus avós foi me ensinar a respeitar os conhecimentos tradicionais, valorizar as medicinas, respeitar os encantados, que são os protetores das florestas e das águas. Aprendemos muito e isso a gente leva para nossa vida. Nossa intenção é que esses conhecimentos sejam perpetuados e repassados para as gerações futuras.
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Parabéns! Ótima reportagem, rica em detalhes.
Muito obrigado pelo seu comentário!