Franciléia Paula aprendeu a colher as histórias de seus avós e pais como quem retira uma fruta do pé. Nos relatos que falavam de solidariedade e partilha nas comunidades quilombolas do Pantanal mato-grossense, desde criança ela foi entendendo que o preparo do alimento — do plantio até a colheita, passando ainda pela elaboração de receitas e pelo despertar dos sabores — era uma prática coletiva. “Nos meses de julho a agosto era o tempo de preparar a roça de toco ou coivara, e depois esperar a primeira chuva de outubro para plantio do arroz de noventa dias que era colhido em janeiro”, escreve, recuperando as memórias de infância. O “muxirum” — palavra de origem indígena que foi incorporada nas roças quilombolas — marca todo o percurso do alimento, em que a comunidade se reúne, em mutirão, para o trabalho com a terra.
Práticas ancestrais de agricultura dos povos pantaneiros, como o muxirum e as roças de toco, são fundamentais para o manejo agroecológico dos sistemas agrícolas, explica Fran, como é conhecida, engenharia agrônoma, quilombola, pantaneira e educadora popular da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Mato Grosso. Porém, essa herança ancestral corre o risco de desaparecer. O motivo: o avanço do agronegócio sobre as terras quilombolas. “Esses territórios não são regulamentados, titulados pelo Estado. Isso provoca vários conflitos agrários com fazendeiros, o que tem gerado perda de território, que coloca em risco a manutenção dessas práticas de agricultura e, consequentemente, vai pressionado para um esvaziamento das comunidades”, conta à Radis, ela que também é membra do GT Povos Tradicionais, Etnicidade e Ancestralidade da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).
Os olhos de Fran viram de perto os impactos dos incêndios que atingiram o Pantanal em 2020, no maior registro de fogo na região — de janeiro a outubro, cerca de 4,1 milhões de hectares do Pantanal brasileiro foram queimados, o que corresponde a 28% do bioma, segundo o Instituto SOS Pantanal. A região de Cáceres, onde Fran atua, foi uma das mais atingidas. “Se considerarmos o rastro da destruição, ele chega a ser imensurável. A gente sabe que tem coisas que se perderam: foram destruídas pelo fogo e não serão restauradas, justamente por conta da fragilidade ecológica do bioma”, ressalta. Além da destruição da vegetação e da morte de animais, os incêndios também atingiram comunidades, que perderam colheitas e casas. “Isso tem provocado impactos que afetam diretamente os modos de vida nas comunidades tradicionais, que dependem da floresta em pé e de seus territórios protegidos e assegurados”, afirma.
A resistência contra a devastação também tem levado à valorização de práticas de agricultura sustentável, sem agredir a terra, que fazem parte da cultura dos povos tradicionais. É o caso das redes de trocas de sementes, em saídas encontradas pelos pequenos agricultores para conservar variedades de espécies centenárias e adaptadas às condições locais de agricultura. “As redes de trocas de sementes tradicionais na Baixada Cuiabana são um exemplo de conservação de espécies — de espécies para alimentação, sementes e mudas que são utilizadas para fins medicinais e que cumprem um papel importante na manutenção da biodiversidade desses biomas e no seu equilíbrio”, pontua.
Com sua mãe, seu pai e seus avós, Fran também aprendeu que não há saúde humana sem respeito à Terra. Uma coisa está associada à outra. “A saúde do corpo depende da saúde da Terra, do planeta, que é muito maior do que nós, seres humanos”, afirma. No site Ancestralidades (www.ancestralidades.com.br), voltado para a valorização de saberes tradicionais, ela traz alguns desses relatos que misturam memórias e vivências sobre agricultura e saúde do corpo e da terra: “O conhecimento sobre os remédios do mato, como aprendi a chamá-los desde criança, são vastos e riquíssimos, utilizados na maioria das vezes de forma preventiva”, escreve. Os textos nascem de um processo de escuta da sabedoria transmitida pelos mais velhos; e são um convite para ampliar o olhar sobre saúde e o nosso vínculo com a Mãe Terra, em um contexto em que “vivemos uma pandemia que é um sintoma de desequilíbrio entre nós e a natureza”. “É urgente pensarmos em ações para começarmos a agir e recuperar a saúde do planeta, se a gente quiser continuar existindo”, reflete.
[Leia a entrevista completa com Fran Paula, que é parte da reportagem de capa da edição de agosto]
2020 foi um ano de luto para o Pantanal. Em meio à pandemia de covid-19, o bioma registrou o maior número de focos de incêndio da história. Como as populações tradicionais pantaneiras têm resistido à essa devastação? Como elas têm exercido um protagonismo na resistência e na luta socioambiental?
Os povos tradicionais pantaneiros são os principais agentes ambientais e exercem uma vigilância que é permanente sobre o bioma. E são esses povos, nas suas comunidades e nos seus territórios, que têm monitorado e apontado as principais consequências desses últimos incêndios no Pantanal. Também têm buscado alternativas para permanecer nessas comunidades e para restaurar áreas que foram destruídas pelo fogo. Eles têm se organizado nas frentes e brigadas locais populares. Estamos nos articulando em redes com grupos sociais e ambientais no estado, que atuam em defesa do Pantanal, para denunciar essas agressões. No caso dos incêndios, temos cobrado a responsabilização, porque são incêndios criminosos, como já foi apontado pelas investigações do Ministério Público, que indicaram que estão relacionados à abertura de novas áreas nas fazendas e à renovação de pastagens. Mesmo com todo esse levante e articulação que os povos tradicionais sempre tiveram, os desafios são grandes. Se considerarmos o rastro da destruição, ele chega a ser imensurável. A gente sabe que tem coisas que se perderam: foram destruídas pelo fogo e não serão restauradas, justamente por conta da fragilidade ecológica do bioma.
Assistimos a um cenário de desmonte nas políticas ambientais, com a paralização dos órgãos de fiscalização e tentativas de flexibilização e desregulamentação nas leis ambientais. Essa tendência é acompanhada de ataques e negligências com a agricultura familiar e a agroecologia. Que interesses pautam esses ataques e como esse desmonte das políticas públicas nessas áreas têm impactado a vida das comunidades tradicionais?
São os interesses do agronegócio e da bancada ruralista no Congresso, que tentam flexibilizar as leis ambientais para legalizar a exploração desenfreada das nossas florestas e dos bens naturais. Em contrapartida, o governo usa essas florestas como mercadoria, não garantindo a proteção dos nossos territórios. Muito pelo contrário, incentiva a grilagem de terras indígenas, não reconhece territórios quilombolas. Isso tem provocado impactos que afetam diretamente os modos de vida nas comunidades tradicionais, que dependem da floresta em pé e de seus territórios protegidos e assegurados. Estamos de frente a uma ofensiva dos setores ruralistas e governamentais, que agem nessa tentativa de flexibilização das leis ambientais e também na omissão diante de conflitos e impactos que têm sido gerados a partir de um modelo desenfreado de exploração dos biomas e das florestas.
“O Muxirum é uma prática centenária, resultado da herança sociocultural de povos indígenas e negros que formam a identidade desse povo pantaneiro. E que permaneceu por séculos sendo reproduzido pelas comunidades. Prática realizada tanto por homens como pelas mulheres.”
Como essas duas questões se relacionam — agricultura e meio ambiente? O que os povos tradicionais têm a nos ensinar sobre agroecologia?
O agronegócio é um modelo de destruição, relacionado às mudanças climáticas, de não produção de alimentos. Eu acredito que agricultura nem é isso. A agricultura é feita a milênios no planeta e nós temos muito que revisitar os conhecimentos tradicionais de se fazer agricultura de verdade, que garanta a produção de alimentos, o manejo sustentável e a conservação das florestas. O planeta precisa desse equilíbrio até para se manter vivo. O que vivenciamos hoje é justamente o contrário. Um modelo agrícola de produção do agronegócio que é alicerçado numa exploração desenfreada e na destruição do meio ambiente, e é óbvio que isso é insustentável. A pandemia que a gente vive é resultado desse modelo predatório e fracassado. Eu tenho dito que aquilo que o agronegócio não consegue se apropriar, ele tenta deslegitimar, atacar ou rotular como “atrasado”. Isso ocorre com os saberes e os conhecimentos sobre agricultura dos povos tradicionais, que são responsáveis na verdade por sistemas resilientes no tempo a diversas mudanças. Através do manejo do território, de forma racional e adotando uma diversidade de práticas agrícolas tradicionais, são responsáveis pela manutenção de engenhosos sistemas agrícolas. Isso é ciência. E é agroecologia praticada há muito tempo.
Como é possível resgatar as ancestralidades — indígenas, quilombolas, pantaneiras — na agricultura? Conta um pouco das experiências que você tem vivenciado na prática nesse sentido.
Não gosto muito de usar a palavra “resgate”, porque dá essa ideia de que a gente vai resgatar algo que se acabou ou desapareceu. Em muitas comunidades, são práticas que existem até os dias atuais. Acontece que isso corre o risco de sumir ou de acabar, na medida em que essas comunidades vão perdendo os seus territórios e sofrendo vários impactos com o avanço do agronegócio, a destruição das florestas, a utilização excessiva de agrotóxicos e transgênicos, que vão contaminando o solo, o ar, a água, as sementes, e isso vai provocando vários processos de violações de direitos e minando as possibilidades de manter os modos de vida e as práticas ancestrais de agricultura. Aqui no Pantanal, a gente tem muitas comunidades quilombolas e tradicionais que ainda realizam os muxiruns agrícolas, que é um método de organizar o trabalho agrícola a partir da cooperação de várias pessoas, o que otimiza o tempo e também permite o trabalho coletivo e, consequentemente, trocas de saberes durante as etapas do muxirum, seja ele para limpeza das áreas ou para plantio e colheita nas roças de toco. Tanto o muxirum quanto as roças de toco, que são práticas ancestrais dos povos pantaneiros, e que são fundamentais para o manejo agroecológico dos sistemas agrícolas, estão ameaçados de desaparecer. Esses territórios não são regulamentados, titulados pelo Estado. Isso provoca vários conflitos agrários com fazendeiros, o que tem gerado perda de território, que coloca em risco a manutenção dessas práticas de agricultura e, consequentemente, vai pressionado para um esvaziamento das comunidades. Só para se ter uma ideia de que falar em práticas e sistemas agrícolas tradicionais está muito ligado com o manejo do território, com a garantia de proteção de um ambiente equilibrado que normalmente não depende só das comunidades indígenas, quilombolas, pantaneiras, mas de todo o entorno. É uma visão mais ampla de território.
Você tem um texto sobre “A Saúde do Corpo da Terra”. Como podemos pensar o equilíbrio entre a saúde humana e a saúde da Terra na perspectiva dos saberes dos povos tradicionais?
Devemos começar não desassociando uma coisa da outra. A saúde do corpo depende da saúde da terra, do planeta, que é muito maior do que nós, seres humanos. O texto é um convite para nós ampliarmos o nosso olhar sobre a saúde, sobre a nossa existência e sobre as ações que praticamos diariamente. Hoje vivemos uma pandemia que é um sintoma de desequilíbrio entre nós e a natureza. É urgente pensarmos em ações para começarmos a agir e recuperar a saúde do planeta, se a gente quiser continuar existindo. O texto é um processo de escuta da minha mãe, que é uma mulher negra, quilombola, pantaneira, que adquiriu o dom da sabedoria com minha avó e outros mais velhos, que é justamente compreender esse intenso processo de relação que a gente tem com a natureza, nas práticas de cura ancestrais e tradicionais do meu povo.
“Esse ano o fogo destruiu milhares de hectares das nossas florestas, que viraram cinzas. Não foi possível pedir saúde para a lua, quando a fumaça por dias encobriu o céu. Não sabemos se encontraremos hortelãs do mato, jatobás e abelhas nos próximos anos. Adoecemos com o Pantanal, e tememos pelo futuro.”
Mais da metade dos brasileiros vivenciaram alguma situação de insegurança alimentar no fim de 2020, segundo pesquisa da Rede Penssan. Que alternativas podem ser pensadas, a partir da agricultura familiar e da agroecologia, para o enfrentamento dessa questão e a garantia de segurança e soberania alimentar?
A fome é fruto da desigualdade social do país e da falta de políticas públicas e ações para a redução das desigualdades, o que vai distanciar a população do acesso a alimento. Essa desigualdade também atinge a agricultura familiar brasileira, na medida em que ela é a responsável pela produção de alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, como observamos nos dados oficiais do Censo Agropecuário. Enquanto a agricultura familiar e os sistemas alimentares agroecológicos não têm o devido apoio ou incentivos governamentais para se expandir, ampliar e fortalecer os canais de comercialização — e também o consumo desses alimentos —, o agronegócio, que não produz alimentos, recebe vários incentivos e políticas públicas de crédito, assistência técnica e apoio governamental para suas cadeias de produção. A gente precisa urgentemente repensar o sistema de abastecimento de alimentos no país, que precisa ser descentralizado das mãos de grandes corporações do setor de produtos alimentícios e voltar a discutir reforma agrária. Considerando que o Brasil é um dos países que mais concentra terras e que essas terras estão nas mãos do agronegócio para produção de commodities e não de alimentos, sem dúvida que a gente precisa também da reforma agrária para garantir terra e condições para a agricultura familiar seguir produzindo alimentos, bem como de políticas públicas para apoiar esses grupos, associações e cooperativas que existem no Brasil todo, e fazer com que esse alimento chegue aos consumidores. Precisamos também de um Estado democrático de direito, para garantir direitos que são fundamentais, como o direito humano à alimentação, que inclusive está previsto na Constituição brasileira.
E como o tema da soberania alimentar se relaciona à preservação ambiental?
A conservação dessas sementes tradicionais, ou crioulas, como são conhecidas — e citando o nosso caso, no Mato Grosso, das redes de trocas de sementes tradicionais —possui benefícios que vão muito além da conservação genética dessas variedades, que são centenárias e super adaptadas às condições locais de agricultura. Mas também significa autonomia dos agricultores e das agricultoras nas suas comunidades, produzindo suas próprias sementes. É um caminho muito importante para a soberania alimentar. As redes de trocas de sementes tradicionais na Baixada Cuiabana são um exemplo de conservação de espécies — desde espécies para alimentação, de sementes e mudas que são utilizadas para fins medicinais e que cumprem um papel importante na manutenção da biodiversidade desses biomas e no seu equilíbrio. Sem dúvida, soberania alimentar está muito relacionada à preservação e conservação ambiental. No caso das sementes, que são patrimônio dos povos, garantem uma autonomia sobre o que os agricultores decidem plantar ao longo do tempo, sem depender de insumos ou pacotes externos, que são considerados “tecnológicos” por essa agricultura do agronegócio.
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