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A disautonomia é uma disfunção do sistema nervoso autônomo (SNA) que afeta pelo menos 70 milhões de pessoas no mundo [Leia matéria aqui]. Por ser responsável pelo pleno funcionamento de ações vitais e inconscientes de nosso organismo, um descontrole do SNA é altamente prejudicial ao bem-estar e ao equilíbrio dessas pessoas. Contudo, apesar de seus efeitos por vezes serem incapacitantes, trata-se de uma condição ainda negligenciada e subdiagnosticada — o que leva também ao próprio desconhecimento da sua existência.

Janaina Pasinato sofre com os efeitos da disautonomia desde 2005 e exemplifica as dificuldades impostas pela condição: “A gente sofre, a gente pena, a gente desmaia em uma fila porque ninguém sabe o que é. A disautonomia não é reconhecida no Brasil como uma incapacidade. Você não consegue ter prioridade no atendimento, não consegue nada. É como se isso não existisse na medicina”, alerta.

Em casos como o relatado por Janaina, em que essa incapacidade se torna frequente e impõe limitações de longo prazo, a disautonomia pode sim ser considerada uma deficiência. No entanto, por não ser identificada visualmente, muitas pessoas que vivem essa condição não usufruem de direitos que deveriam ser assegurados, como prioridade em assentos e no atendimento. É o que destaca Simone Sá, advogada especialista em direito médico e da saúde e pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, em entrevista à Radis.

“A importância desse reconhecimento como uma deficiência seria para que o acometido pudesse gozar de todos os direitos garantidos aos deficientes”, afirma a advogada. Natural de Espinosa, cidade mineira situada a 570 quilômetros de Belo Horizonte, Simone é mestre em direito das relações internacionais e especialista em outras áreas, como o direito médico e da saúde, cível e ambiental.

Em 2020, ela descobriu que possui disautonomia e o diagnóstico lhe aproximou do tema. Hoje é também idealizadora do projeto Cactos Raros, atua como voluntária na Comissão de Doentes Raros da Associação de Deficientes de Montes Claros (Ademoc), integra a Comissão de Pessoas com Deficiência da 11º subseção da OAB/MG e representante da OAB/MG na Comissão da Pessoa com Deficiência do município de Montes Claros (MG). 

A advogada falou sobre como o fato de ter uma deficiência invisível e pouco disseminada dificulta ainda mais o cotidiano dos pacientes crônicos e graves de disautonomia e abordou questões trabalhistas e previdenciárias durante a entrevista. 

Como você se aproximou do tema da disautonomia e por quê? 

A disautonomia sempre foi uma condição clínica minha ao longo da vida, apenas não a denominava dessa forma devido à ausência de um diagnóstico correto e ao desconhecimento da nomenclatura. Apenas no início de 2020, já com muitas sequelas, fui diagnosticada com uma condição rara, a síndrome de Ehlers-Danlos (SED). No meu caso, a disautonomia se manifestou na forma da Pots [síndrome da Taquicardia Postural Ortostática]. O SNA regula funções que não controlamos conscientemente, como frequência cardíaca, pressão arterial, suor e temperatura corporal, com perdas bruscas de consciência, e em crises mais graves pode ocasionar desmaios.  Desde então, me adaptei, me reinventei e ao longo da minha trajetória, também procuro ajudar outras pessoas que estão enfrentando os mesmos desafios de acesso à saúde e qualidade de vida.

Em que situações a disautonomia pode ser considerada uma deficiência? 

As várias formas de disautonomia podem trazer muitas sequelas e prejuízos aos pacientes em seu cotidiano, tanto nas tarefas diárias quanto em suas vidas laborais. São consideradas pessoas com deficiência (PCD), segundo o artigo 2º da 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência/Estatuto da Pessoa com Deficiência): “aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Nesse passo, seria possível uma pessoa com disautonomia ser considerada uma pessoa com deficiência, desde que essa condição lhe imponha limitações de longo prazo, como por exemplo: ter desmaios frequentes que obstruam sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade com as demais pessoas, ou dores de cabeça e problemas cervicais intratáveis com outras comorbidades. Isso, claro, desde que haja relatório de um médico da área específica. A importância desse reconhecimento como deficiência seria para que o acometido pudesse gozar de todos os direitos garantidos aos deficientes.

“Uma vez superada a conscientização, tais pessoas passariam a ter seus direitos civis assegurados.”

O que seria necessário para haver esse reconhecimento? 

Para que haja reconhecimento na sociedade seria necessário que a conscientização fosse em maior escala, não só dependendo daqueles que vivem com doenças invisíveis, mas com apoio de pessoas comprometidas de todos os setores, para que pudéssemos dar voz a esse movimento e libertar milhares de pessoas de seus sofrimentos diários. Uma vez superada a conscientização, tais pessoas passariam a ter seus direitos civis assegurados. 

Que direitos (civis e trabalhistas) as pessoas que vivem com essa condição passariam a ter, se reconhecida como uma deficiência? 

Teriam garantias como: tramitação processual com prioridade; atendimento prioritário em estabelecimentos públicos e privados; vagas preferenciais para pessoas com necessidades especiais; acesso a concursos públicos por meio de cadastro de reserva de vagas, dentre outros. Já na esfera trabalhista, podemos citar: redução de jornada de trabalho; readaptação do cargo ou função exercida; adaptação do local de trabalho em virtude das suas condições especiais; acesso a vagas destinadas às pessoas com deficiência etc.

É possível se aposentar em decorrência da disautonomia?

Quanto à aposentadoria por invalidez, também conhecida como benefício por incapacidade permanente, é devido ao trabalhador com disautonomia de forma que ele esteja permanentemente incapaz de exercer qualquer atividade laborativa e que também não possa ser reabilitado em outra profissão, de acordo com a avaliação da perícia médica do INSS ou, sendo de regimes próprios, por seus órgãos competentes. O benefício é pago enquanto persistir a invalidez e o segurado pode ser reavaliado; no caso do regime geral, pelo INSS, a cada dois anos. Entretanto, inicialmente, o cidadão deve requerer um auxílio-doença (benefício por incapacidade temporária), que possui os mesmos requisitos da aposentadoria por invalidez. Caso a perícia médica constate incapacidade permanente para o trabalho, sem possibilidade de reabilitação para outra função, a aposentadoria por invalidez será indicada.

“Sofremos preconceitos, julgamentos e críticas por possuirmos limitações que as pessoas não conseguem ver.”

Você pode falar um pouco sobre o conceito que aborda em suas redes sociais sobre as “pessoas com deficiências invisíveis”?

Em meu Instagram (@simonesadvogada), abordo esse tema porque além de advogada de pessoas com doenças que causam deficiências invisíveis também sou uma delas. E sofremos preconceitos, julgamentos e críticas por possuirmos limitações que as pessoas não conseguem ver no nosso estereótipo, como a ausência de uma perna, uma prótese etc. Algumas deficiências não são perceptíveis a olho nu, como, por exemplo, um aparelho auditivo ou qualquer outro equipamento que possa nos ajudar a identificar uma deficiência visível e ceder nosso lugar no metrô, ou a não lançar um olhar julgador a um motorista aparentemente saudável que esteja estacionando o seu carro em uma vaga para deficientes. E como essa deficiência não pode ser vista, por vezes ela é negligenciada. 

“Sem estarem cientes das deficiências invisíveis, muitas pessoas tendem a ignorá-las.”

Poderia falar mais sobre a importância da ampliação desse entendimento junto à sociedade?

Sem estarem cientes das deficiências invisíveis, muitas pessoas tendem a ignorá-las. Além do estigma, o descrédito normalizado das deficiências invisíveis pode revelar-se economicamente prejudicial àqueles que as vivenciam. Destaco aqui alguns dos problemas enfrentados pelas pessoas com doenças invisíveis: falta de informação; conscientização ainda incipiente na sociedade; falta de conhecimento por parte dos profissionais da saúde para diagnóstico precoce; falta de centros de referências especializados; problemas no trabalho, ocasionando dificuldades financeiras e de ordem pessoal; e saúde inconstante, com sofrimentos físicos e mentais.

Existe algum movimento organizado no sentido de disseminar o tema na sociedade, que você tenha conhecimento?

No que se refere aos movimentos organizados nesse sentido, foi através da página do Instagram @disautonomiabrasil que me senti impulsionada a também fazer a minha parte e fomentar a sociedade para essa discussão.

Que mensagem você gostaria de deixar sobre o tema?

Esse assunto deve ser levado de forma ampla e irrestrita à sociedade, dado o grande sofrimento que as doenças invisíveis causam a milhares de pessoas que são obrigadas a viver como se fossem pessoas típicas, a fim de que as mesmas possam ser respeitadas em suas limitações e façam jus a todos os direitos inerentes a elas.

Formas de visibilizar as deficiências invisíveis

Gradativamente, algumas iniciativas de informação e sensibilização vão sendo realizadas para visibilizar condições invisíveis, como a disautonomia. Um desses exemplos é a carteirinha de prioridade, um documento para auxiliar na reivindicação de assentos preferenciais em transportes e serviços públicos. Além dela, o colar de girassol já é um dispositivo que vem ganhando mais notoriedade e nos últimos meses passou a ser reconhecido por lei no Mato Grosso do Sul e no Distrito Federal, por exemplo. O item consiste em um cordão estreito, feito de tecido, verde, com estampa de girassóis e significa que seu portador possui uma deficiência invisível e deverá ter prioridade em atendimentos e acomodações. Seu uso é opcional, não sendo necessário para usufruto dos direitos assegurados a pessoas com deficiência. Nos locais onde o uso do colar de girassol já é regulamentado, a lei determina que os estabelecimentos públicos e privados orientem os funcionários sobre seu significado e garantam o atendimento adequado aos seus portadores sem constrangimentos. 

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