Maitê Dahdal é médica de família e comunidade, tem 30 anos e mora em Campinas, maior cidade do interior de São Paulo. Graduada em 2017, atualmente ela cursa mestrado em medicina translacional, já fez uma pós-graduação em cuidados paliativos, realiza atendimentos em consultório e trabalha com educação médica. É justamente nessa função que ela aborda um tema que foi pauta na Radis, na edição de julho de 2025 (274), o gaslighting médico, situação que se caracteriza pela invalidação de sintomas por parte de médicos e outros profissionais de saúde, que agravam o sofrimento de pacientes.
Para ela, é preciso falar abertamente sobre o tema, justamente para que os profissionais entendam a prática como uma forma de violência e melhorem suas condutas. O poder que esses profissionais exercem sobre seus pacientes por vezes pode acarretar situações de minimização de sintomas, mais comuns contra mulheres e minorias: “Essas populações já enfrentam o histórico de marginalização e desconfiança institucional, que também se reflete no sistema de saúde”, analisa Maitê.
Confira a seguir a entrevista completa e saiba mais sobre o assunto.
Além de médica, você também trabalha como educadora e fala com propriedade sobre um tema que possivelmente nem todos os seus colegas abordariam com a mesma naturalidade, que é o gaslighting médico. Explique brevemente esse conceito.
O gaslighting médico é uma forma de violência sutil, mas que pode ser muito danosa para os pacientes. Isso acontece quando o médico invalida a percepção e queixas do paciente ou distorce e minimiza esse relato. Por exemplo, quando o médico diz “isso é coisa da sua cabeça”, mas sem uma investigação, sem uma escuta adequada. É muito comum ocorrer com mulheres, que às vezes trazem queixas e essas são reduzidas e relacionadas ao ciclo menstrual sem que haja uma investigação para isso. Existem queixas que, sim, podem estar relacionadas ao ciclo menstrual, podem ser coisas da cabeça da pessoa, mas nós, médicos, precisamos escutar, dar segurança a esse paciente. Precisamos acolher, estar ao lado dele. Então, o gaslighting médico acontece quando o médico sai desse papel de estar ao lado e simplesmente se coloca numa situação de estar acima, como a relação médico-paciente mais paternalista, em que o médico manda e decide o que é melhor para a pessoa de forma autoritária, sem trazer a perspectiva daquele indivíduo.
Qual seu grau de aproximação com o tema e como ela ocorreu?
Minha aproximação com o tema aconteceu porque desde o início da minha prática clínica eu já atendi muitos pacientes que trazem queixas relacionadas a atendimentos anteriores, de se sentirem invalidados por outros profissionais de saúde, e por isso demorarem muito para buscar ajuda. Isso é bem comum, pessoas que demoram a buscar outro médico porque já tiveram experiências anteriores muito ruins. Também temos visto cada vez mais nas redes sociais relatos de pacientes que trazem queixas quanto à escuta de médicos, escuta de profissionais de saúde, e eu sempre me atentei muito a esses temas. Daí, aos poucos descobri o termo gaslighting médico, que fez total sentido, porque realmente já vivi muitas situações assim, de pacientes que trazem queixas que foram realmente invalidadas, que foram distorcidas pelos médicos, e o paciente muitas vezes já vem machucado, vem armado em uma nova consulta por conta dessas experiências prévias que foram bem ruins.
Originalmente o termo gaslighting significa uma espécie de abuso psicológico e manipulação, praticado principalmente contra mulheres. Essa associação com a medicina é relativamente nova, não? Como você enxerga essa abordagem entre os médicos?
O termo gaslighting é muito novo no campo médico, ainda muito pouco falado, e espero que isso melhore. Mas a gente tem relatos muito antigos disso. Não é à toa que o termo histeria se deriva da palavra grega útero. Hoje, a gente sabe que a histeria é uma doença psiquiátrica complexa, mas no passado ela era atribuída à presença de útero, ou seja, ela era atribuída à mulher. Então, se a gente olhar para a história, há muitos relatos disso no passado. A gente vê que tem uma resistência para alguns profissionais de saúde, quando a gente fala sobre isso, quando traz esse conceito, porque parece que é uma acusação beirando as situações criminais, mas precisamos entender que isso não é uma acusação. Quando falamos desse tema, é uma abertura para o diálogo, para a gente reconhecer as dinâmicas de poder que podem ser corrigidas, para nós, médicos, otimizarmos a nossa prática clínica, para trazer uma atenção maior para a comunicação clínica, para lidar melhor, inclusive, com incertezas.
Quando geralmente ocorre essa situação?
O gaslighting médico geralmente ocorre quando a gente tem uma doença mal compreendida, quando há uma dificuldade de comunicação, quando tem um tempo limitado para falar com o paciente. Envolve também muitas questões culturais, éticas, então é algo muito profundo, mas quanto mais a gente falar sobre isso, mais vamos conseguir trazer luz para um problema que é real, porém, muito pouco falado, e que ele deixe de ser problema futuramente, para que a gente realmente vá saindo desse aspecto de causar um dano, de causar uma violência em alguém. À medida que a gente entender que o gaslighting médico pode ser uma forma de violência, de causar danos, a gente não vai querer causar isso.
Existe uma negação sistemática da experiência do outro e isso pode acontecer por abuso de poder da autoridade médica
O que caracteriza o gaslighting médico e quando o paciente pode suspeitar que foi vítima dessa violência?
O gaslighting médico está associado à postura do médico, à comunicação que ele vai ter, quando ele invalida o sofrimento e as queixas do paciente, não tem uma escuta qualificada ou sugere que esses sintomas são exageros ou invenções. Existe uma negação sistemática da experiência do outro e isso pode acontecer por abuso de poder da autoridade médica. Porque o médico tem uma posição de poder, uma posição de autoridade na relação médico-paciente e a gente sempre tenta, pelo menos na minha linha de trabalho, ir contra essa autoridade, ir contra essa dinâmica de desigualdade de poder, porque o paciente é o especialista em si. Ele é quem sabe o que acontece consigo. Eu sou apenas especialista em saúde e preciso unir o meu conhecimento com a vivência e experiência dele para chegar em alguma conclusão. Ou seja, o gaslighting médico ocorre quando o paciente sente que está tendo seus sintomas ignorados, quando sai da consulta se sentindo culpado, se sentindo descredibilizado. Às vezes chega a ter vergonha de ter procurado ajuda médica, porque o médico invalida tanto o que ele está sentindo, que se sente um inútil de ter procurado ajuda para algo que afinal nem existe ou era tão simples, falando de forma irônica.
O gaslighting médico também pode ser uma expressão de preconceitos estruturais que precisam ser enfrentados na formação e na prática médica
Algumas pesquisas indicam que mulheres, pessoas negras e a população LGBTQIAPN+ estariam mais propensas a sofrerem esse tipo de violência em um atendimento médico. A seu ver esse recorte reflete a forma como nossa sociedade já trata esses grupos mais vulnerabilizados?
Sim, o recorte de gênero, raça, sexualidade é muito essencial nesse debate. Essas populações já sofrem, já enfrentam o histórico de marginalização e desconfiança institucional, que também se reflete no sistema de saúde. As mulheres, por exemplo, são frequentemente tratadas como histéricas ou ansiosas. Pessoas negras relatam suas queixas sendo minimizadas ou associadas à resistência a dor, inclusive já tem pesquisas comprovando que mulheres negras recebem menos analgesia de parto do que mulheres brancas, por exemplo. E a população LGBTQIAPN+ enfrenta barreiras adicionais e tem muitas suposições indevidas sobre a sua saúde. Então, esses fatores evidenciam que o gaslighting médico também pode ser uma expressão de preconceitos estruturais que precisam ser enfrentados na formação e na prática médica. A gente precisa pôr luz a esses preconceitos estruturais para que consiga minimizar isso futuramente. E já temos dados científicos que comprovam isso. A Academia Americana de Emergência descobriu que mulheres esperam cerca de 33% a mais do que homens para receberem remédios para tratar suas dores abdominais quando elas procuram um pronto atendimento, por exemplo. As influências psicológicas, sociais, culturais e preconceitos estruturais contribuem para que esse público seja mais vítima de gaslighting médico do que outros.

Há também muitos relatos de pessoas com doenças raras ou de difíceis diagnósticos queixando-se que são logo rotuladas em quadros de agravo mental sem a devida análise. Por que isso ocorre?
Isso acontece porque existe uma lacuna muito grande na formação médica, que valoriza muito pouco a incerteza e a escuta. Então, do ponto de vista cultural, do que as pessoas imaginam, é considerado errado o médico não saber o que a pessoa tem. É considerado errado falar para o paciente que é preciso estudar e investigar mais, que vai ter que discutir o caso com outro especialista. Isso é visto como fraqueza, mas na verdade é um gesto de responsabilidade, de respeito com o paciente, e isso faz com que essas doenças que são mais raras ou mais difíceis de serem diagnosticadas, estejam mais próximas do diagnóstico correto.
Esse tema deve ser mais discutido na própria formação médica?
No meu entendimento, sim. Certamente esse tema deve ser mais discutido na própria formação médica. Na minha formação, que não é tão antiga assim [ela se graduou em 2017], eu não tive nenhum tema relacionado a isso. Na minha residência médica [família e comunidade] eu já comecei a ter contato com algumas violências que podem ser praticadas pelos profissionais de saúde contra os pacientes e é muito frustrante a gente ver isso, imaginar que podemos ser agente causador do sofrimento quando estamos lá para tirar o sofrimento do paciente. E muitas vezes a gente está causando erros e causando danos tentando dar o nosso melhor, porque o melhor que nos foi ensinado nem sempre é o melhor para o paciente. Por isso a gente tem que individualizar as nossas condutas e precisamos trazer para a medicina e levar às faculdades essa perspectiva do poder das assimetrias. Pensar uma relação médica que não é mais paternalista. A gente tem que mudar essa perspectiva do passado, trabalhar esses preconceitos inconscientes; e valorizar a escuta ativa como ferramenta terapêutica. Ensinar o que é gaslighting médico significa ensinar a cuidar melhor. Acho que essa discussão tem que fazer parte do currículo. É como ensina o pensamento de Michael Balint (psicanalista húngaro): “O médico é o instrumento terapêutico menos utilizado”. A nossa presença, o ‘ser médico’ já é muito terapêutico quando a gente escuta, quando a gente acolhe.
Agora fazendo outra abordagem, você também atua fortemente com a telemedicina. Como vê a expansão dessa modalidade de atendimento em relação à pauta do gaslighting médico? As consultas por telas podem ser tão acolhedoras, empáticas e atenciosas quanto às (boas) presenciais? Esse seria mais um desafio?
A telemedicina é um recurso muito valioso, que ampliou muito o acesso à continuidade do cuidado. Traz alguns desafios como a questão de estar fisicamente distante do paciente, mas é importante entendermos que o médico que tem dificuldade de conexão do ponto de vista de relação médico-paciente no presencial, também vai ter na telemedicina. E o médico que é atencioso, que sabe escutar no presencial, também vai praticar essa escuta na telemedicina. Então, a empatia e a escuta devem e podem ser mantidas numa consulta online, mas exige intencionalidade. Isso está muito mais relacionado ao profissional do que ao método que está sendo utilizado, à forma como a consulta está sendo ofertada, seja presencial ou online. O risco do gaslighting médico não diminui por ser uma consulta virtual. A postura ética e o acolhimento do médico devem estar presentes em qualquer forma de atendimento. E é extremamente possível fornecer vínculos e ótimas conexões por meio das telas, mas exige que esse profissional já seja assim.
Como você poderia orientar outros colegas a não cometerem o gaslighting médico em seus atendimentos e a se conscientizarem sobre esse problema?
Acho que não tem como falar de gaslighting médico sem falar do método clínico centrado na pessoa. A primeira orientação que eu daria é que a gente precisa entender o que o paciente está vivenciando com esse sintoma. Por exemplo, dor de cabeça pode ser algo para mim e uma coisa muito diferente para você. O que diferencia é o que faz o paciente se sentir assim. O que essa dor de cabeça está trazendo de transtorno? Qual é a experiência que esse paciente está tendo com esse sintoma? Quais são os sentimentos, as preocupações que ele tem em relação a esse sintoma? Então, só de a gente escutar isso e validar o sofrimento e se comprometer a entendê-lo, já estamos trazendo uma abordagem muito mais empática e cuidadosa. Acho que vale muito a pena falar sobre isso e refletir sobre como é a sua posição de autoridade diante do paciente. Como é esse impacto? Como é essa relação? O bom médico não é aquele que tem todas as respostas, mas o que sabe caminhar junto com o paciente na busca pelas respostas, porque, como falei, o paciente é especialista em si e eu sou a pessoa que conhece sobre saúde e medicina. Essa é a diferença entre nós.
Na perspectiva do paciente, o que pode ser feito para evitar passar por uma situação dessas? Que dicas você daria de medidas que podem ser adotadas nesse sentido?
É muito difícil detectar o gaslighting médico quando ele está acontecendo e é muito difícil o paciente fazer algo que possa evitar o acontecimento disso durante a consulta. Quem a gente realmente tem que tratar para evitar isso é o médico. Mas é possível ajudar o paciente a identificá-lo, caso aconteça. Quais seriam os sinais de alerta? Quando o médico não te escuta ou fica te interrompendo, quando ele diminui seus sintomas, quando atribui seus sintomas à sua orientação sexual, a seus hábitos de vida, seu peso, seu sexo, sem uma escuta qualificada. Quando ele diz que os seus problemas são por conta de ansiedade, de depressão, de estresse, mas também sem essa escuta, ou quando fica apressando você. Então, um exemplo bem clássico, um homem idoso que está trazendo queixas de dores no corpo, pouca energia e o médico vir e falar que é do envelhecimento. Não, mas espera aí, talvez não seja por isso. Será que não tem algo mais acontecendo? E vale para o paciente ter registros do que ele tem sentido, porque daí, quando passar por uma consulta que infelizmente seja muito ruim e gere essa dúvida, se está bem ou não, se está sentindo aqueles sintomas ou não, se aquilo que relatar na consulta tiver sido invalidado, esse paciente vai ver que anotou o que estava sentindo e isso mostra que é ele, o paciente, está certo e não o profissional.
O gaslighting médico é também uma das faces de um sistema que opera com muitas desigualdades
Há algo importante que você não tenha mencionado e julgue pertinente pontuar?
Eu acho que a gente, como sociedade, precisa ampliar o debate sobre violência sutis e violências estruturais nos espaços de saúde. A medicina, no geral, está passando por uma fase de muitas mudanças. A gente tem notado muitos problemas que precisam ser corrigidos e debatidos. O gaslighting médico é também uma das faces de um sistema que opera com muitas desigualdades. A gente falou muito aqui, mas trouxemos muita culpa para o médico. Também é uma culpa da sociedade, é uma culpa estrutural dos serviços de saúde que nos violentam, para que a gente opere de uma determinada forma. Veja como é complexo: o gaslighting médico pode ser também resultado de uma violência institucional que é cometida contra nós, médicos, e nos obrigam a atuar dentro de um molde que cause danos ao paciente. É uma sequência de problemas que pode vir do sistema de saúde para o médico. O médico não é só um vilão, ele também pode ser vítima. E quando ele é vilão, não é necessariamente porque está querendo ser uma pessoa má, muitas vezes isso vem de forma inconsciente e a gente só vai conseguir trazer para a consciência se falarmos sobre isso, se a gente fortalecer os profissionais como cuidadores e mostrar que quanto mais a gente escutar, mais chances a gente tem de ser um instrumento de cura.
Quanto mais a gente escutar, mais chances a gente tem de ser um instrumento de cura
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