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* Colaboração especial para Radis

Claudio Alves, jovem negro e morador de uma comunidade em Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro, costumava jogar RPG com amigos de classe média. De uma hora para outra, seus companheiros começaram a desaparecer das partidas. Claudio procurou saber o porquê. Descobriu que os garotos estavam todos estudando para o vestibular. Menos ele. O ano era 2006. Nessa mesma época, recebeu de uma amiga da igreja um panfleto sobre um certo Pré-Vestibular para Negros e Carentes Pastoral da Juventude, mais conhecido pela sigla PVNC-PJ — ou apenas “Pré-PJ” —, que ele passou a frequentar.

Claudio não entrou de primeira na universidade. No ano seguinte, matriculou-se outra vez no cursinho e, mesmo com dificuldades para conciliar os estudos com o trabalho como operador de telemarketing, prestou vestibular e foi aprovado no concorrido curso de Direito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ele ainda estava na metade da faculdade quando voltou ao PVNC-PJ, dessa vez como professor.

Desde então, sua história serve de incentivo para estudantes recém-chegados ao cursinho, onde atualmente ocupa a função de coordenador-geral. Nesta entrevista, Claudio explica em detalhes o funcionamento do PVNC-PJ — que, em um cenário favorável, costuma atender até 70 pessoas por ano —, fala dos desafios enfrentados durante a pandemia e ajuda a entender a importância do projeto, que vem não apenas garantindo o acesso de jovens negros e carentes às universidades públicas. Para Cláudio, que hoje está cursando uma pós-graduação em Direito na Uerj, essa é também “uma forma de luta política por igualdade material, reparação histórica e social, isonomia e equidade, enfim, uma luta por educação e justiça social”.

Como e quando surgiu o Pré-Vestibular para Negros e Carentes Pastoral da Juventude?

O Pré-PJ, como ainda é carinhosamente chamado, foi criado em 1994, em Duque de Caxias. Recebeu esse nome porque a maioria de seus idealizadores era composta por jovens engajados da Igreja Católica. Desde então, ocupa o prédio anexo da Catedral de Santo Antônio, atual Centro Pastoral Frei Willy. Entretanto, seguindo a Carta de Princípios do Movimento PVNC, o Pré-PJ mantém uma linha de atuação laica e coloca como centro da discussão a questão racial, política e social nas suas mais diversas nuances. O objetivo do projeto é, além de tentar garantir o acesso de jovens negros e carentes às universidades públicas, formar agentes de transformação social conscientes do seu papel histórico, que também divulgariam a ideia do PVNC, formando novos núcleos nas periferias.

Qual a maior motivação para promover o pré-vestibular?

Cremos que uma das principais motivações para que o PVNC-PJ exista e resista até hoje seja a redução das desigualdades sociais por meio de uma educação libertadora e crítica, para a população pobre e marginalizada em geral, e negra em especial. São essas as que mais sofrem com as desigualdades, sendo também as maiores vítimas de suas consequências.

Como o pré-vestibular se mantém? Alguma taxa é cobrada dos alunos?

O PVNC-PJ se mantém sem nenhum apoio financeiro do Estado: o sustento das atividades vem de colaborações e taxas repassadas dos candidatos e alunos ao Núcleo, que faz a sua gestão e administração por meio da Coordenação. Quanto a valores, é importante ressaltar que não é um “pagamento”, considerando a qualidade e excelência do corpo docente e de todos os esforços implementados em favor dos alunos. O valor dessas contribuições varia sazonalmente de acordo com as necessidades do Núcleo. Na atual gestão, o valor para inscrição é de R$ 10,00; e a contribuição mensal é de R$ 35,00 por aluno.

Como a pandemia afetou as aulas?

A pandemia foi um contexto bastante desafiador no qual tivemos que enfrentar a dificuldade dos alunos tanto em ter acesso à internet, quanto a aparelhos que possibilitassem o acompanhamento das aulas de maneira remota. Sem contar que a maioria do nosso público já vem de uma educação defasada e muitos estão afastados da sala de aula há muito tempo, o que agrava essa dificuldade no ensino remoto.

A evasão dos alunos do curso é um problema?

Sim, em regra esse é um problema com o qual nos deparamos ao longo desses anos, e os motivos são os mais variados: a violência nas áreas onde os alunos residem, o custo da passagem e problemas familiares são alguns exemplos. Além disso, a evasão ocorre com muita força após os alunos se depararem com as primeiras provas, e a realidade excludente implícita nelas.

O que motiva o corpo docente a trabalhar de graça em um pré-vestibular comunitário?

Cremos que seja um projeto social, político e pedagógico de longo prazo com o qual podemos mudar a sociedade por meio de uma educação libertadora e contra hegemônica, com o fim de romper, ou ao menos amenizar, a relação estabelecida de status quo. Cremos ainda que é uma forma de luta política por igualdade material, reparação histórica e social, isonomia e equidade, enfim, uma luta por educação e justiça social.

Qual o impacto dos cursinhos comunitários e populares no acesso ao Ensino Superior?

Há um grande impacto social à medida que são disponibilizadas e viabilizadas ferramentas competitivas para diminuir desigualdades na educação. Esses cursos — juntamente com as ações afirmativas, entre elas a política de cotas, na qual inclusive o PVNC teve forte atuação — tornaram possível para muitas pessoas algo que, numa conjuntura sem esses fatores, seria praticamente impossível. Dentro das universidades, creio que o somatório dos fatores Pré-Vestibulares Comunitários mais ações afirmativas serviu para a inclusão de jovens negros, pobres e periféricos nas universidades, mas também para fomentar o debate sobre o tema e, sobretudo, para desconstruir a falácia da meritocracia, tendo em consideração que já ficou comprovado que os estudantes advindos dos cursos comunitários e das ações afirmativas têm igual ou melhor desempenho que os demais estudantes; o que lhes faltava era a oportunidade. Eu falo em somatório de fatores porque entendo que a eficácia dos cursos por si, sem as políticas fomentadas pelos movimentos sociais em geral e pelo movimento negro em especial, no qual se inclui o PVNC, não seria plena.

E, por outro lado, em que medida esses cursos contribuem para modificar a realidade de jovens que não teriam como pagar para estudar?

A mudança de perspectiva para quem se engaja e leva a sério, não só os estudos, mas a reflexão crítica sobre os fatos sociais e históricos, e consegue se perceber dentro deles, gera, ao meu entender, a propagação dessa ideia tanto dentro quanto fora de casa. Não por menos, é relativamente comum ver familiares e amigos se interessando e ingressando nas universidades após o caminho de algum precursor. Oportunamente, é importante ressaltar que, mais do que um “cursinho comunitário”, esses cursos são ou estão em sua maioria ao lado de movimentos sociais, assim como é o caso do Movimento PVNC, que é um movimento social, e como movimento social estamos fazendo ciência social aplicada, fazendo história, uma história de luta e resistência contra hegemônica por meio da educação.

O caminho da reportagem

Esta reportagem foi realizada por estudantes de jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob a supervisão da jornalista, professora e repórter de Radis Ana Cláudia Peres. Entre fevereiro e maio de 2022, durante uma disciplina com caráter de laboratório, Carlos Vinícius Quirino, Júlia Amorim, Juliana Simão, Luíza Zauza, Maria Elisa Araújo, Nicole Higino, Nicole Santos e Rodrigo de Araujo mergulharam em todas as etapas do processo, desde a definição da pauta até apuração, redação e edição dos textos. A pauta dos cursinhos populares mobilizou todos. Entre os entrevistados, colegas de curso que passaram pelas salas de aula dos pré-vestibulares comunitários compartilharam suas histórias. Dois dos alunos que assinam a reportagem — Juliana e Rodrigo — também tiveram suas trajetórias iniciadas em cursinhos. A atualidade e relevância do tema renderam boas conversas sobre a democratização do acesso à universidade e sobre o jornalismo. O resultado você confere abaixo.

https://radis.ensp.fiocruz.br
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