A expansão do que se designa Saúde Global, na sua versão hegemônica, privilegia a legitimação de uma concepção única de cuidado, baseada na monocultura da biomedicina, avalia João Arriscado Nunes. Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, onde é um dos coordenadores do programa de doutoramento “Governação, Conhecimento e Inovação” e integra a equipe do Centro de Estudos Sociais (CES), o pesquisador tem uma visão crítica sobre o fenômeno que, entre outras consequências, interfere no direito à saúde e na definição de políticas relativas à saúde global. Nesta entrevista, em que analisa a repercussão deste fenômeno a partir do que propõem as epistemologias do Sul — proposta que questiona a produção de conhecimento dominante e inclui saberes silenciados pelo capitalismo e pelo colonialismo —, ele explica como o controle de ameaças e as condições de financiamento definem hoje as estratégias e prioridades em saúde, acentuando a “linha abissal” que separa o conhecimento hegemônico de outras práticas e saberes, e traz consequências para a vida dos indivíduos. “A saúde deixou de ser uma aspiração para ser uma obrigação”.
Como podemos definir Saúde global?
A expressão saúde global é usada para designar um fenômeno bastante multifacetado, complexo e contraditório, mas está associada, geralmente, ao processo de progressiva expansão da concepção ocidental e eurocêntrica de Saúde — e que designamos de saúde biomedicalizada. Essa concepção é subordinada a uma monocultura de saber, a monocultura da biomedicina. Esta admite algum pluralismo interno, que pode ser a base de versões críticas que têm surgido nos últimos anos, especialmente a partir do trabalho de pesquisadores em antropologia médica, de profissionais e pesquisadores de saúde comprometidos com os diretios humanos e de formas de ativismo na saúde. A biomedicalização da saúde ocorre por via de formas de organização, de financiamento, de formação, de titulação e de validação dos saberes e das práticas que a constituem, mas também por um processo através do qual qualquer problema ou processo pode ser biomedicalizado, convertido em problema sob a jurisidição da biomedicina.
O que isso significa?
Hoje, tudo pode, num momento ou em outro, ser patologizado, transformado numa anomalia, num objeto de tratamento, e legitimar as práticas e saberes da biomedicina. Falar em saúde hoje já não significa apenas falar na capacidade de enfrentar a doença ou o que nós costumávamos associar à doença; significa também a identificação de situações que podem configurar um risco futuro e doença ou distúrbio, ou qualquer situação de perturbação, de transtorno ou mal-estar, seja qual for a sua origem, suscetível de ser transformada numa anomalia, que certamente poderá caber numa especialidade da medicina — ou então numa das diferentes formas de terapia legitimadas pela medicina.
Como isso se reflete na promoção à saúde?
A própria designação “positiva” da saúde, a ideia de que a saúde é a promoção de um bem-estar geral, físico, mental e social, parece ter-se transformado em uma espécie de obrigação. Nós hoje temos o dever de cuidar da nossa própria saúde, de ter um estilo de vida saudável, de comer o que se deve comer e evitar o que não se deve, de fazer exercícios, de não fumar e não ter pequenos vícios. Tudo isso é prescrito por este tipo de concepção de saúde. A saúde não se tornou uma aspiração ao bem-estar geral, mas sim uma obrigação.
Qual a repercussão dessa mudança de visão?
As pessoas serão consideradas irresponsáveis se não tomarem conta da sua saúde e não se submeterem a uma vigilância permanente, que só pode ser exercida pela biomedicina: check-ups, exames, além de todas as tentativas não só de prevenir, mas também de verificar se somos suscetíveis a algum tipo de doença. De tal forma que muita gente a quem não foi diagnosticada uma doença, mas que tem uma probabilidade, por reduzida que seja, de ter um problema, passa à condição de doente saudável, “healthy ill”, como lhe chamou a bióloga Ruth Hubbard. São pessoas com saúde, mas que poderão vir a ficar doentes em alguma fase da sua vida.
Qual a origem desta concepção?
Em 1948, quando foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos Humanos e se constituiu a OMS, a saúde era definida como um direito. O direito de desfrutar um melhor estado de saúde possível, saúde física, mental e social, independentemente da raça, do sexo, da nacionalidade, da região, classe etc. Havia uma chamada para que medidas fossem tomadas para que as pessoas pudessem de fato viver nesse estado de saúde. Nas décadas seguintes, no entanto, se expande o modelo da saúde biomedicalizada — que, se parte da ideia da cobertura universal, não significa necessariamente direito à saúde. Significa que em alguns casos ela pode resultar em políticas que são impostas por aqueles que financiam as iniciativas de saúde.
Pode dar um exemplo?
O enfrentamento à aids, a partir da década de 1980, ilustra isso. No início, o problema afetou algumas categorias de pessoas, como homossexuais, usuários de drogas, hemofílicos e muitos haitianos, que fugiam da violência e instabilidade política do seu país para os Estados Unidos. Houve um período em que, à chegada, eles eram detidos pela guarda costeira e levados para a base da Guantánamo, onde ficavam de quarentena, para verificar se estavam infectados. A esta altura já se sabia que era o vírus HIV, mas ainda não havia terapia. A ideia não era tratá-los, mas conter a entrada de pessoas com a doença no país. Naquele momento, toda a população haitiana era considerada população de risco para a aids. Depois, nos anos 2000, começaram a aparecer, na África, variantes do vírus, e percebeu-se que as possibilidades de encontrar uma cura, uma vacina ou um tratamento eficaz dependiam do conhecimento disso. Houve, então, uma corrida para se realizar acordos de cooperação, no momento em que já se começa a ter tratamento eficaz com os antirretrovirais. Em uma reunião do programa Fundo Global, financiado por estados, fundações privadas e organizações multilaterais, os especialistas debateram se seria mais eficaz adotar uma estratégia baseada na prevenção ou uma baseada no tratamento. Não havia qualquer dúvida de que a aids deveria ser tratada nos países do Norte. Mas a ideia de trata-la no resto do mundo era um problema.
“A razão para que se tratem as doenças no Sul pode não ser haver pessoas a sofrer, mas sim porque estas podem ser um risco, uma ameaça ao resto do mundo”
Por quê?
Havia a preocupação de que isso poderia ser perigoso para o resto do mundo. A primeira objeção apontada era que as populações dessa África que era imaginada não teriam a disciplina temporal necessária para tomar regularmente os medicamentos, nem para comparecer regularmente aos exames e à verificação do vírus, ou que a ausência de infraestruturas adequadas, e não só na saúde, não permitiriam uma intervenção adequada. Imagine se essas pessoas começassem a tomar mal os antirretrovirais e contribuíssem para aumentar a resistência do vírus, ou para o surgimento de variantes resistentes. A intervenção no continente poderia significar uma ameaça. O episódio revela uma das linhas de orientação da saúde global: uma constante tensão entre a orientação humanitária e orientação securitária. A razão para que se tratem as doenças no Sul pode não ser haver pessoas a sofrer, mas sim porque estas podem ser um risco, uma ameaça ao resto do mundo.
Qual o impacto nas intervenções?
O que é importante, nesta concepção, é garantir que as doenças não se alastrem. O controle de tudo que assuma a face de epidemia, de pandemia ou de qualquer tipo de surto transformou-se em condição que determina as políticas relativas à saúde global. O Sul, entendido aqui como Sul geográfico, mas também como o Sul localizado do outro lado da linha abissal, aparece como uma grande ameaça, e as questões de saúde global passam a ser questões de segurança. No caso da aids, a face humanitária acabou por prevalecer e venceu a posição de que se deveria, de fato, avançar para uma estratégia de tratamento com antirretrovirais. Havia o argumento de que, havendo a possibilidade de combater eficazmente uma doença, era um dever de quem tinha esses meios permitir o acesso àqueles que não os tinham. Mas as instituições responsáveis por essa intervenção seriam dos países do Norte. O domínio dos meios para intervir na saúde e combater doenças tratáveis é hoje uma poderosíssima arma dos países centrais. O fato de grande parte destas intervenções serem financiadas por estados, como os Estados Unidos, que contribuem com grande parte do financiamento da OMS, ou por doadores privados (fundações, organizações multilaterais, Banco Mundial etc.), claramente tem uma influência decisiva no modo como os recursos serão utilizados. Em episódio recente, a Palestina requereu a admissão na Organização Mundial da Saúde. Isso significaria que teria autonomia na utilização dos fundos disponibilizados pela organização. O pedido foi contestado por Israel e Estados Unidos — que ameaçou retirar o financiamento do país para a saúde nos territórios palestinianos ocupados —, um mecanismo de dominação colonial. Em outro caso, uma pequena organização que trabalhava com mortalidade materna nas comunidades do Nepal e do Tibete teve seu apoio condicionado ao monitoramento dos resultados por uma organização privada. As intervenções deveriam ser registradas e inseridas em uma base de dados. Os avaliadores alegavam ainda que não era possível determinar se o projeto funcionava, já que a base de população era restrita; exigiam a realização do projeto num âmbito maior. Mas o projeto só funcionava graças à forte articulação com os saberes e práticas locais. Por essa lógica, a produção de conhecimento era muito mais importante do que a própria intervenção.
Como relacionar esta discussão com as epistemologias do Sul?
Este caso mostra como funciona, no plano local, a biomedicalização da saúde global: práticas que não podem ser integradas e validadas na linguagem biomedicalizada simplesmente não são reconhecidas ou validadas, independentemente dos resultados efetivos da sua intervenção. Um exemplo claro de uma monocultura de saber, que suprime outros saberes ou valida somente os que podem ser expressos nos termos da biomedicina. A saúde global não reconhece a linha abissal, que separa de um lado um tipo de medicina associado a um determinado tipo de sociabilidade e, do outro, intervenções que podem ser violentas ou se apropriar de saberes e de práticas — e que são integradas desde que validadas pela saúde global. O não reconhecimento desta linha também significa perceber os problemas de saúde apenas como problemas de acesso e de extensão dos recursos e práticas da saúde biomedicalizada. E não reconhecer os que estão do outro lado da linha como cidadãos.
Que temáticas de comunicação você considera importantes, neste momento?
O Rio de Janeiro, por conta da ocupação e também pela forma como se normalizou, de certa forma, a violência sobre as populações pobres, enfrenta uma questão importante: por que a morte de pessoas que são integradas, de cima, constitui notícia, mas as mortes de dezenas de pessoas que são mortas “embaixo”, associadas a incursões da polícia, já não têm a mesma visibilidade? O que é que faz com que haja certos tipos de problema, que põem em risco a vida, ganhem visibilidade e outros não? Outro aspecto que também faz parte dessa discussão é que antes havia uma espécie de acordo, geralmente observado, de proteção para agentes de saúde que estivessem numa situação de conflito, tentando prestar auxílio aqueles que eram feridos. Isso deixou de acontecer quando os bombardeios que se faziam no Afeganistão, no Iraque, na Síria, no Iêmen, começaram a atingir instalações clínicas, hospitais, ambulâncias. Essas situações passaram a ser classificadas e justificadas como danos colaterais. Recentemente uma paramédica voluntária foi alvejada, de frente, em Gaza. Ela não foi a única. Houve a tentativa de mostrar que a presença dos paramédicos naquela situação era uma forma de proteger e encobrir atividades terroristas. Então há toda uma desqualificação que permite matar. Isto é novo: a ideia de que o cuidado passa a ser visto como uma proteção daqueles que são matáveis. Essas situações são normalizadas pelas próprias notícias. Sempre houve situações em que as pessoas morriam e podiam morrer nessas circunstâncias, mas a ideia de que hoje se pode legitimar esse tipo de prática em nome da luta contra o terrorismo, por exemplo, é uma coisa nova.
É uma desqualificação do cuidado.
Exatamente. Outra coisa também que é muito novo são os ataques aos chamados sistemas vitais, que asseguram a sobrevivência da população. Eles atingem a infraestrutura, os depósitos de lixo, as fontes de água. Os resultados são desastrosos. Nós que olhamos para a saúde a partir das epistemologias do Sul e da linha abissal, começamos a perceber que havia situações em que a saúde legitimava a passagem ao outro lado da linha, suspendia, provisoriamente, algumas condições de abissalidade. Nunca as eliminava, mas pelo menos durante um tempo suspendia algum dos seus efeitos, como as crises humanitárias ou situações de emergência. Porém, neste momento, essas situações se tornam, elas próprias, alvo de violência.
Ainda é comum, na saúde, o investimento no aspecto instrumental da comunicação. Qual a sua opinião sobre isso?
Eu tenho refletido, com colegas, bastante sobre isso, a partir do trabalho de Charles Briggs, um antropólogo especialista em linguagem que criou o conceito de “biocomunicabilidade”, a capacidade de se transformar os fenômenos da saúde em fenômenos de comunicação. Ele alerta que a comunicação não é um instrumento, mas parte do próprio processo. Não se pode dizer que existe o fenômeno e que depois se produz comunicação sobre ele. Não, o fenômeno também é produzido na comunicação. O ato de comunicação é simultâneo ao ato de se fazer existir. Muitas vezes os problemas de saúde, aqueles mais graves, dependem muito da forma como são constituídos através da comunicação.
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