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“Minha história com o HIV começa antes mesmo de eu saber sobre tudo isso.” Assim Rafaela Queiroz inicia o relato de sua trajetória de vida com o HIV. Ela adquiriu a infecção ainda bebê, por meio de transmissão vertical, quando o vírus é passado de mãe para filho na gestação, no parto ou na amamentação. A sorologia só foi descoberta com o adoecimento de seus pais, que faleceram quando ela tinha entre dois e três anos de idade. A irmã — que havia testado negativo — e ela foram adotadas por uma tia e seu companheiro, a quem passaram a chamar de pai e mãe. “Foi apenas com 8 anos que eu soube do HIV. Antes disso eu tinha conhecimento que havia um bichinho no meu corpo. Essa história começou a ser contada quando iniciei o processo de tomar medicamentos, aos 5 anos”, diz.

Os pais adotivos ofertaram amor e cuidado e optaram por não expor sua sorologia de forma ampliada. “O que eu agradeço muito, pois a escolha de visibilizar minha sorologia foi algo trabalhado por anos e quando me senti fortalecida iniciei os processos de ir contando para quem eu quisesse”, narra. Na adolescência, veio a experiência de revelar a duas amigas. Depois, a atuação voluntária no Programa Saúde na Escola (PSE), na Rede Jovem Rio+, quando se sentia segura no espaço para falar. Porém, a sensação libertadora de trazer sua história publicamente aconteceu no final da faculdade de Psicologia: “Minha experiência de visibilidade positiva se deu na última aula do último período da faculdade, através de uma dinâmica de reflexão sobre corpos HIV+ e expus que meus colegas conviveram com alguém com HIV por cinco anos”, relembra.

Rafuska, como é conhecida, atualmente é psicóloga e secretária executiva do Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas (MNCP) — aos 30 anos, trabalha diretamente com acolhimento e aconselhamento de pessoas com HIV, dentre os quais mulheres e jovens. “É somente através da troca, da união e de espaços de convivência que podemos nos sentir seguras para externar o que passamos e sentimos”, afirma. Ela conversou com a Radis sobre o cotidiano das mulheres que vivem com HIV — que é atravessado por vulnerabilidades muitas vezes ignoradas e até silenciadas. 

[Leia a entrevista completa, que é parte da reportagem da Radis de dezembro sobre mulheres vivendo com HIV/aids]


Quais desafios, demandas e vulnerabilidades são vivenciados pelas mulheres vivendo com HIV/aids? São muitas as realidades e condições de vida, mas o que marca essa experiência?

Queria começar dizendo que não há desafios que diferem no viver com HIV/aids entre gêneros, mas existem muitos desafios, pois nossas demandas são específicas e pouco levantadas e nosso viver esbarra em vulnerabilidades muitas vezes ignoradas e até silenciadas. Quando olhamos para a pandemia de aids, tendemos a não enxergar como se deu essa nova vivência para mulheres cisgênero e transgênero. No caso de mulheres cis, antes do viver com HIV, nós somos mulheres e enfrentamos desde o nosso nascimento o reflexo do machismo e da misoginia. Lidamos com o fato de nossos corpos, antes de nos pertencer, pertencerem aos outros. Somos julgadas pelas nossas roupas, como nos sentamos, se namoramos, se bebemos. Então, quando há uma IST [infecção sexualmente transmissível], logo somos comparadas a mulheres promíscuas, já os homens são olhados como “transantes”. Nós somos violentadas e mesmo assim há uma tentativa de culpabilização pela violência sofrida. Nossos desafios iniciam muito cedo, então quando somos atravessadas pelo HIV é “só” mais um desafio que passamos a ter que lidar, muitas vezes silenciadas.

Quando uma de nós consegue falar, falamos por muitas outras que não podem, não conseguem ou não desejam falar. Algumas de nós estamos inseridas em contextos de dependência financeira, violência psicológica e emocional. Quando se descobre que a infecção partiu de um relacionamento fixo, a sensação de não ter para onde ir é enorme. Nossas vivências vão da descoberta do HIV por uma traição. De uma descoberta tardia por profissionais que acham que mulheres casadas não podem contrair o HIV. Da descoberta no início, meio ou final de uma gravidez. Da descoberta na infância. Todas elas com algum apontamento que nos machuca. 

Para além desses fatores, lidamos com uma toxicidade maior dos antirretrovirais, violações dos nossos direitos sexuais e reprodutivos, violência obstétrica em maternidades que deveriam estar sensibilizadas para um atendimento digno e sem discriminação. Nós, mulheres com HIV, temos uma maior dificuldade em ter renda fixa, não só pelo impacto psicológico e emocional que a sorologia nos traz, mas pelo medo de discriminação e julgamento por uma sociedade que ainda exclui e isola nossas vivências.

Uma das questões levantadas pelo Movimento Nacional das Cidadãs Positivas são os impactos emocionais e na saúde mental dessas mulheres. Como a descoberta e a convivência com o HIV/aids pode impactar a autoestima? Numa sociedade machista e misógina, ainda há muita tutela sobre o corpo da mulher, seja por profissionais de saúde ou por familiares. Como enfrentar esse cenário? 

A descoberta do HIV pode vir de várias formas. Todas elas causam impactos emocionais e mentais. Afinal, sabemos que o peso de uma notícia ruim afeta qualquer pessoa e, para mulheres, há todo um peso social embutido nessa nova sorologia. Se é a mulher que descobre primeiro o HIV, há todo um medo de ter que falar com seu parceiro. O apontamento de traição vai vir de forma acusativa e violenta. Ao contar para familiares ou amigos, vem o peso de escutar frases culpabilizadas como: “mas você não segurou seu homem” ou “como você deixou isso acontecer?”. O HIV impacta das mais variadas formas: outra forma é do vírus e dos medicamentos que causam maiores lipodistrofia e lipoatrofias em nossos corpos. A perda ou acúmulo de gordura é visível, não é como a sorologia que pode ser escondida. O impacto na auto estima é diário e constante. 

É somente através da troca, da união e de espaços de convivência que podemos muitas vezes nos sentir seguras para externar o que passamos e sentimos. São espaços seguros e de escuta que ajudam a enfrentarmos os impactos que o HIV e a sociedade nos causam. Dessa forma, nós nos fortalecemos para conseguir falar e enfrentar profissionais, familiares e a sociedade dando voz ao que queremos, ao que podemos e ao que precisamos para termos nossos corpos, nossos direitos e nossos desejos respeitados. Mas ainda nos sentimos sozinhas nessa luta, sensibilizamos muitas pessoas nessa trajetória, porém ainda recebemos muitos relatos de discriminações na família, por profissionais e da sociedade. Precisamos do apoio de instituições e profissionais das mais diversas áreas. Juntas nós somos mais fortes, mas com mais apoio nós seremos invioláveis. 

Que lacunas ainda existem na assistência e no cuidado com as mulheres vivendo com HIV/aids nos serviços de saúde? E qual a importância do SUS para elas?

A grande lacuna ainda é um olhar individual para cada mulher. Nós somos diversas, temos contextos diversos. Uma pergunta para além de “você está tendo adesão?” já é um diferencial. Quando um profissional faz um atendimento para além de nos ver como “vetores” de um vírus, nós nos sentimos acolhidas como um todo. Quando se tem falha de adesão, uma pergunta sobre o porquê dessa não adesão vai ser mais eficaz do que “você quer morrer de aids?”. Realizar um atendimento com um olhar mais multidisciplinar é a nossa grande bandeira atual. Um profissional comprometido com a nossa qualidade de vida vai além de um olhar para a quantificação de carga viral. O SUS ainda é nosso espaço mais seguro, nosso grande espaço de cuidado e atenção. Sem o SUS, muitas de nós nem estaríamos mais aqui, isso inclui eu que nasci com HIV e tive acesso a acompanhamento e tratamento gratuito desde a descoberta do HIV. O SUS é nosso e seguiremos lutando por ele e pela manutenção dele em nossas vidas. 

“Mulheres com HIV: nenhuma conquista a menos”. Esse foi o título de um de seus textos recentes (https://agenciaaids.com.br/artigo/mulheres-com-hiv-nenhuma-conquista-a-menos/) e também tema do 9º encontro do MNCP. Que direitos e conquistas foram obtidos pelas mulheres vivendo com HIV/aids nesses 40 anos da pandemia de aids? Que ameaças estão colocadas no atual contexto político e de desmonte no SUS? E quais os desafios trazidos pela pandemia de covid-19 para essas mulheres?

Infelizmente não houve direitos e conquistas diretamente para mulheres vivendo com HIV/aids e sim barreiras e falta de escuta sobre nossas demandas. O texto criado a partir da realização do nosso 9º Encontro do MNCP traz justamente esses atravessamentos nos direitos que já temos, mas que seguem sendo violados. Infelizmente, ainda temos profissionais despreparados para a garantia de nossos direitos, como nossos direitos sexuais e reprodutivos. E ainda enfrentamos profissionais com pré-conceitos e julgamentos sobre nossos corpos e, consequentemente, sobre nossa sorologia positiva para HIV. 

No que se refere ao contexto político e de desmonte do SUS, temos a cada dia um maior afastamento de diálogo, afinal vivemos um governo que considera nossa qualidade de vida como “despesas”. A redução de exames, como a contagem de TCD4, e a descentralização do atendimento geraram, principalmente para pessoas de transmissão vertical, um afastamento do vínculo com o serviço e a equipe médica.

Além de todas essas violações, tivemos que lidar com essas situações dentro de uma nova pandemia, que é esta da covid-19. Retomou-se o medo, o isolamento, a sensação de solidão! Nunca falamos tanto sobre saúde mental e auto cuidado como nesta pandemia, e assim mais uma barreira de acesso surge. Existe a falta de psicólogos nas unidades e ainda a falta de profissionais que tenham um olhar sobre a especificidade do viver com HIV e para além desse viver. Tivemos denúncias de mulheres que relatam que se a carga viral está indetectável não há porque ter atendimento psicológico na unidade, limitando o cuidar apenas ao HIV, e sabemos que somos dinâmicas e o que mais conflitua nesse viver é como lidar com as discriminações sociais.

Como podemos pensar a prevenção no contexto das mulheres (de todas as idades e em todos os contextos de vida)?

Para pensar em prevenção para as mulheres, é preciso antes de tudo enxergar que somos diversas e, para além disso, entender que há vulnerabilizações de gênero, de território, de contextos que precisam ser olhados e devem ter espaços de escuta. Vemos que as estratégias de prevenção muitas vezes não colocam mulheres cis como público alvo, esquecendo que a violência de gênero em uma sociedade machista nos traz maior risco para contrair uma IST e o próprio HIV. Temos conversado muito sobre a não inserção de mulheres cis como público para PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), pois é de conhecimento que o diálogo sobre o uso de preservativo com seus companheiros tem muitas barreiras, inclusive por relacionamentos abusivos. Ter acesso facilitado a esse insumo possibilita a mulheres cis terem uma escolha para uma barreira contra a infecção do HIV. É preciso escuta, principalmente de nós mulheres que se infectaram com HIV, para que possamos juntas pensar e estruturar uma prevenção que contemple nossos corpos, nossas vivências e nosso contexto diverso e amplo. 

Como é para as mulheres vivendo com HIV/aids trazer as suas histórias publicamente e que estigmas precisam ser vencidos? Qual é a importância de estarem reunidas para se fortalecerem?

Para que mulheres consigam trazer suas histórias de forma pública atualmente, outras fizeram isso antes, como a querida Nair Brito que foi uma das mulheres mais importantes na Luta contra a aids. A partir dela deu-se a abertura para tratamento medicamentoso para todos. Hoje, buscamos o fortalecimento de mais mulheres que vivem com HIV/aids para que consigam enfrentar seus medos, tabus e depois disso os previsíveis estigmas e discriminações. Infelizmente, ainda temos uma sociedade que parou no tempo sobre o HIV. As pessoas ainda acham que beijo, abraço, sentar no mesmo local, lavar roupas juntas são formas de transmissão do vírus. É preciso sensibilizar e informar muito a sociedade sobre o viver com HIV/aids. Visibilizar nossas histórias, nossas vidas, nossas profissões é visibilizar a vida com HIV, é mostrar para a sociedade que vivemos e podemos viver bem!  

Nós nos reunirmos influencia e colabora muito para este fortalecimento. Podemos nos escutar, abraçar, conviver sem medo de discriminação, culpabilização e julgamento. Falamos de nossas dores, angústias, desejos e sonhos! “Juntas Somos Mais Fortes” não é só uma frase de impacto. É uma frase de união, acolhimento e fortalecimento nessa luta.

Gostaria que você contasse também um pouco de sua história de vida vivendo com hiv/aids.

Minha história com HIV começa antes mesmo de eu saber sobre tudo isso. Minha sorologia se deu por transmissão vertical, na gestação, no parto ou na amamentação. Na época que nasci, em 1991, não havia tratamento para HIV, não havia testagem no pré-natal e muito menos tratamento medicamentoso. Minha sorologia em si só foi descoberta a partir do adoecimento do meu pai sanguíneo, que já descobriu o HIV em estágio de aids. Foi recomendada a testagem na família, o que resultou em dois positivos e um negativo, minha mãe e eu estávamos infectadas pelo HIV e minha irmã não. Meu teste positivo foi com mais ou menos 2 anos. Por não ter tratamento, meu pai faleceu em 1993; sete meses depois minha mãe sanguínea também veio a falecer. Com o falecimento dos meus pais sanguíneos, ocorreu então a adoção. Minha irmã e eu fomos adotadas pela irmã do meu pai e seu companheiro. Como eu era muito nova, pouco tempo depois já os chamavam de pai e mãe. Foi apenas com 8 anos que eu soube do HIV. Antes disso eu tinha conhecimento que tinha um bichinho no meu corpo. Essa história começou a ser contada quando iniciou o processo de tomar medicamentos, aos 5 anos. 

Minha infância foi muito tranquila, meus pais sempre fizeram questão de tratar minha irmã e eu da mesma forma. Não passei por discriminação e estigma na família, o que refletiu em não sofrer preconceito na escola, até porque meus pais optavam por não expor minha sorologia de forma ampliada. O que eu agradeço muito, pois a escolha de visibilizar minha sorologia foi algo trabalhado por anos e, quando me senti fortalecida, iniciei os processos de ir contando para quem eu quisesse. Minha primeira experiência de contar minha sorologia foi no ensino médio para duas amigas, Danielle e Élida, por meio da internet no antigo MSN. Mais tarde iniciei atuação voluntária no PSE (Programa Saúde na Escola), na Rede Jovem Rio+, falava pontualmente sobre minha sorologia quando me sentia segura no espaço. E minha experiência de visibilidade positiva se deu na última aula do último período da faculdade, através de uma dinâmica de reflexão sobre corpos HIV+ e expus que meus colegas conviveram com alguém com HIV por 5 anos. Após isso escrevi um texto de exposição de sorologia no Facebook e foi um grande alívio, me senti não mais vivendo uma dupla identidade.   

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