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Em um trecho do premiado Torto Arado — um dos mais comentados romances da literatura brasileira dos últimos tempos —, uma personagem conta por que decide romper em parte com a servidão tradicionalmente imposta à sua família, recusando-se a doar o melhor bocado de sua produção semanal para “o dono” da terra onde mora. “Só para não deixar que ele levasse meu suor, minhas dores nas costas, meus calos nas mãos e minhas feridas nos pés, como se fosse algo seu”.

Mas esse é apenas um breve fragmento extraído da metade final da história que começa bem antes, quando as irmãs Bibiana e Belonísia se machucam em um acidente enquanto remexem os segredos guardados na velha mala da avó Donana. Uma delas emudece. Dali em diante, a trama escrita por Itamar Vieira Júnior conduz o leitor pelos dias e noites em Água Negra — fazenda fictícia igual a inúmeras outras localizadas no sertão brasileiro — e pela vida de seus habitantes, trabalhadores rurais descendentes de escravizados, sua luta pela terra, seus traumas, suas memórias, os seus combates, a sua resistência. O resto é surpresa escrita em uma prosa arrebatadora.

Torto Arado é o terceiro livro do escritor de 41 anos, nascido em Salvador, geógrafo, formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e um apaixonado servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que, se precisasse escolher, afirma, trocaria todos os títulos acadêmicos pelo conhecimento que adquiriu durante 15 anos de ofício junto aos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, assentados da reforma agrária e povos do campo. “Eles têm muito a nos ensinar, basta ouvi-los”. Por meio da ficção, Itamar traz à tona o nosso passado colonial e escravagista, recuperando uma ancestralidade negada a muitos. Para o escritor, talvez resida aí a principal qualidade do livro, que conquistou os cobiçados prêmios Leya, Oceanos e Jabuti.

Foi com entusiasmo que Itamar Vieira Júnior aceitou o convite para uma entrevista à Radis. No bate-papo de cerca de uma hora que você lê na íntegra no site da revista, ele conta sobre a inspiração para o livro, a vida entre a literatura e a regularização das terras quilombolas, o convívio com as comunidades e tudo o que aprendeu entre os povos tradicionais. Também fala sobre a dificuldade de trabalhar com as questões agrárias no atual cenário brasileiro. Mas diz que possui uma “esperança engajada”, que lhe dá coragem para levantar diariamente e fazer o que precisa ser feito.


Itamar Vieira Júnior fez sua pesquisa de doutorado em estudos étnicos e africanos na comunidade de Iúna, na Chapada Diamantina. Quando concluiu a tese, aproveitou para encadernar um volume extra que fez questão de entregar pessoalmente aos quilombolas da região. “Eu disse a eles: ‘Olha, aqui está uma tese acadêmica, um trabalho científico, então se algum dia vocês tiverem algum problema, precisarem se apresentar à Justiça, precisarem fazer valer a sua história, mostrem essa tese, porque ela é um documento histórico também”. Ao ganhar o prêmio Jabuti de romance em 2020, ficou com o troféu, mas doou o valor de R$ 5 mil que recebeu em dinheiro para os quilombolas. “O mérito de Torto Arado não é apenas do autor. É mérito desse contexto onde o autor estava e que envolve o órgão onde ele trabalha, as pessoas com quem ele trabalha e o público, que permitiu que ele pudesse compartilhar histórias, ainda que imaginadas, mas histórias que têm sua base na realidade”, disse à RadiO seu livro é uma declaração de amor à terra e aos povos tradicionais, como já foi dito. De onde você parte para escrever Torto Arado?
Essa história surgiu ainda na adolescência, muito influenciada pelos romances que tratam desse mundo rural do Nordeste brasileiro. Cheguei a escrever 80 páginas de uma primeira versão. O mote da história era muito parecido, mas não dei continuidade, claro, porque não tinha maturidade. Por coincidência, eu segui estudando, me formei geógrafo, fui trabalhar como servidor público no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e lá pude ter mais contato com os povos do campo. Foi ali que essa história começou a ganhar mais densidade e foi atravessada por experiências do meu cotidiano de trabalho entre quilombolas, indígenas, ribeirinhos, assentados da reforma agrária. Ou seja, a história foi ganhando profundidade quando mergulhei de fato, por conta do meu ofício, no mundo rural brasileirO seu livro é uma declaração de amor à terra e aos povos tradicionais, como já foi dito. De onde você parte para escrever Torto Arado?
Essa história surgiu ainda na adolescência, muito influenciada pelos romances que tratam desse mundo rural do Nordeste brasileiro. Cheguei a escrever 80 páginas de uma primeira versão. O mote da história era muito parecido, mas não dei continuidade, claro, porque não tinha maturidade. Por coincidência, eu segui estudando, me formei geógrafo, fui trabalhar como servidor público no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e lá pude ter mais contato com os povos do campo. Foi ali que essa história começou a ganhar mais densidade e foi atravessada por experiências do meu cotidiano de trabalho entre quilombolas, indígenas, ribeirinhos, assentados da reforma agrária. Ou seja, a história foi ganhando profundidade quando mergulhei de fato, por conta do meu ofício, no mundo rural brasileiro.

O livro é também uma espécie de acerto de contas com a nossa história. Quanto de racismo e de nosso passado escravagista ainda estão entranhados em nós?

O Brasil é um país que tem um passado mal resolvido. Eu sempre lembro da frase do Millôr Fernandes [escritor, desenhista e humorista]: “O Brasil é um país com um enorme passado pela frente”. Tivemos quase quatro séculos de um sistema escravocrata perverso, de exploração do trabalho, e temos pouco mais de um século de uma pseudoliberdade depois da Lei Áurea. Ou seja, a liberdade também é uma construção e ela tem sido construída ao longo das últimas décadas. O traço mais marcante do racismo estrutural são as desigualdades. E as desigualdades no Brasil têm cor. Basta olhar para este momento. Estamos mergulhados numa grave crise sanitária e o impacto da pandemia na vida de homens e mulheres negras é infinitamente maior do que na vida das pessoas que não se declaram como negras. Então, o racismo estrutural permeia tudo, desde a força policial em comunidades predominantemente negras nas grandes cidades brasileiras até o impacto de uma pandemia na vida da população, que não é o mesmo para todos.

Como a literatura pode ajudar a nos redimir, de certa maneira?
A literatura não tem um propósito muito definido. A princípio, o propósito da literatura seria a arte, a fruição. Mas eu confesso que, assim como alguns esperam, tenho uma enorme fé na literatura porque, mesmo como arte, ela permite que a gente adentre o pensamento das personagens. Quando a gente pega um livro para ler, a gente faz um trato com o autor e com as personagens. Durante algum tempo, vamos viver aquelas vidas. Isso é um poderoso instrumento de alteridade, de empatia. Eu acredito que, dessa forma, a literatura pode contribuir para que a gente imagine a vida de outras pessoas, se coloque na pele de outras pessoas, para poder entender a complexidade de suas vidas.

Qual o maior mérito de Torto Arado?
Para mim, como autor e como leitor, o que tem de mais importante em Torto Arado é a possibilidade de construção de uma história comum, de um passado comum, a partir da ficção. Eu fico imaginando que, para muitos de nós, a nossa ancestralidade foi negada. Muitos não sabem de onde nossos antepassados vieram, em que circunstâncias viveram. Há muita história soterrada e eu acho que Torto Arado traz essa história à tona e tem capturado um pouco dessa familiaridade que todos nós temos com essas vidas. Mesmo que nós pessoalmente não tenhamos vivido essa história, alguém da família viveu, um pai, um avô, uma avó, um bisavô. Eu tenho visto isso entre os leitores, independente da sua origem ou classe social. Acho que o maior mérito do romance está em permitir que os leitores se conectem a uma história que, de alguma forma, é comum a todos, que fala de algo que nos interessa neste país. É a nossa história.

O livro se passa em um ambiente extremamente patriarcal, mas você faz uma opção por narrar pelas vozes de Bibiana e Belonísia. Por que são mulheres as narradoras? 

É interessante. Quando submeti o romance ao prêmio Leya, eu escolhi um pseudônimo neutro porque não queria que o fato de ser homem ou mulher influenciasse na decisão do júri. E foi bem curioso porque eles leram na dúvida se tinha sido escrito por um homem ou por uma mulher. Mas por que são mulheres as narradoras? Nesse meu caminhar de 15 anos entre comunidades e povos do campo, eu posso lhe garantir que, principalmente em comunidades quilombolas, 70% das lideranças são mulheres. Seja porque às vezes elas conseguem se escolarizar mais que os homens, ou porque muitas vezes os homens precisam migrar para trabalhar no corte da cana ou outras produções ou porque eles morrem mais cedo já que as mulheres tendem a se cuidar mais, o fato é que essas mulheres assumem esse lugar de liderança e poder. Isso para mim era contraditório, porque elas estão inseridas em um contexto extremamente patriarcal e machista. Como é que pode esse paradoxo? Então, dentro de uma população que é vulnerabilizada como a população quilombola, eu ainda busquei as personagens mais vulneráveis, que são as mulheres. E aí só fazia sentido narrar essa história se fosse pela voz dessas personagens mulheres. O mágico da literatura é que a gente pode ser qualquer coisa, a gente pode ser uma árvore, um homem, uma mulher, a gente pode ser um cachorro, um gato, a gente pode ser um espírito, qualquer coisa.

E nós, leitores, agradecemos. Seu contato com os povos tradicionais e os conflitos no campo vem de antes sua tese de doutorado inclusive foi realizada na comunidade quilombola de Iúna. Torto Arado seria possível sem essa vivência?

Acho que não. Trabalhar como servidor público há 15 anos, ter trabalhado com educação no campo e passado por muitos projetos, é um privilégio. Me levou a conhecer esse Brasil profundo. Se por acaso eu tivesse de fazer uma escolha, trocaria todos os meus títulos acadêmicos, tudo o que aprendi na universidade, pelo que aprendi entre eles. Porque é uma forma de narrar, de experienciar a vida, muito diversa e muito importante. Traz o peso da história deste país em tudo. Para mim, foi fundamental para entender muita coisa. Sem esse encontro, talvez esse livro pudesse até existir, mas não teria essa densidade.

Como tem sido trabalhar com regularização fundiária no Brasil atual? 

Tem sido muito duro, muito frustrante. Trabalhar com questões agrárias é um trabalho longo e árduo, que demanda tempo. Não se resolve no curto ou médio prazo. Qualquer tempo perdido pode levar toda uma história e uma vida de luta por água abaixo. E nos últimos tempos, temos uma paralisia das políticas voltadas para os povos do campo, que é muito diferente de governos passados, quando esse trabalho tinha uma centralidade. O Incra é um órgão que tem capilaridade, que chega a todo e qualquer município, nos lugares mais remotos do país. Quando entrei no Incra, ele era um órgão em ebulição. Tinha muitos programas, muitas políticas. Tudo isso foi rompido, foi quebrado. Acho que há um direcionamento do governo atual muito claro e que já estava posto, ainda na campanha e no programa de governo, quando eles falavam em “nem um centímetro de terra para indígena e quilombola” [uma referência a uma fala do então pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro]. Muitas vezes, a gente vê os movimentos sociais e a sociedade civil organizada sendo tratados como inimigos do povo. É muito frustrante. A gente tem vivido uma paralisia que se agravou sobremaneira com a pandemia, mas essas pessoas continuam precisando da política pública. Temos mais de 3 mil comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares e a gente não chegou a fazer 10% das regularizações fundiárias dessas comunidades. Há muitos trabalhadores acampados esperando que seja cumprido o que está disposto na Constituição sobre a função social da propriedade, esperando a desapropriação de área. Há muito para ser feito, mas tudo foi paralisado.

O que podemos seguir aprendendo com os quilombolas e povos tradicionais?

Há muito tempo, li uma entrevista do meu amigo Ailton Krenak [líder indígena, ambientalista e escritor] — que é uma pessoa que admiro muito, um dos grandes pensadores contemporâneos desses país. Um repórter português perguntou: “O que a gente pode aprender com os povos originários?” E aí o Ailton disse: “Nós temos 500 anos de luta contra o impossível, contra aquilo que nos corrói, que nos destrói, e ainda assim estamos íntegros. A gente atravessou esse tempo com muita resiliência, com muita força e com muita vontade de lutar”. E eu acho que o que a gente pode aprender com os povos tradicionais é justamente essa relação mais harmônica com o ambiente, essa resiliência de viver com menos, de não ter gana pelo consumo desenfreado, de ter uma relação mais consciente com o ambiente e com o seu entorno, com os recursos naturais. A Terra está numa crise violenta. Essa crise pandêmica tem origem no ambiente, ela acontece graças à degradação da natureza pelo homem. E a gente pode evitar isso e viver num planeta melhor. Nesse sentido, acredito que os povos tradicionais têm muito a nos ensinar, basta escutá-los, basta ouvi-los.

Você ainda se mantém como um otimista incorrigível, como já declarou ser? 

Eu tenho uma esperança engajada [risos]. Foi a expressão que encontrei para falar desse otimismo, que não é uma esperança passiva, em que a gente só espera…

E como um otimista, dono dessa esperança engajada, vem lidando com o atual contexto de retrocesso das políticas e agora também uma pandemia?

Confesso que mesmo me declarando um otimista, um esperançoso engajado, tem sido bastante difícil. Mas ao mesmo tempo que vejo todo esse recrudescimento representado pela extrema direita que ocupa o poder neste momento no Brasil, tenho visto na mesma medida a consciência de uma parcela significativa da sociedade em relação a todos esses retrocessos. Pessoas dos mais diversos espectros, da direita à esquerda, têm refletido um pouco sobre isso, o que me faz ser otimista. A pandemia nos jogou na cara a nossa fragilidade enquanto seres humanos e paralelo a isso se fortaleceu uma rede de solidariedade que tem permitido mitigar minimamente o sofrimento de muitas pessoas, seja de quem está na linha de frente dos hospitais cuidando incansavelmente desses pacientes, seja de quem está aqui na retaguarda participando de redes solidárias, arrecadando alimentos, contribuindo com o que pode. A gente não pode desprezar isso. É claro que estamos vivendo um momento muito grave, são mais de 345 mil vítimas só no Brasil, um governo negacionista que conduziu da pior maneira essa pandemia. Mas ainda assim tenho visto se formar uma rede de solidariedade, como nunca tinha visto antes. Acho que esse país continua a ser o país do futuro. A gente avança e retrocede, avança e retrocede… Estamos no momento de retrocesso, mas alimento essa esperança engajada de que a gente vai sair melhor de tudo isso. Precisamos dessa esperança para ter coragem de levantar todos os dias, falar com as pessoas, fazer as coisas que a gente precisa fazer, não abandonar o outro que também está precisando, ou seja, a gente precisa alimentar essa esperança de muitas formas, com ação e coragem, também.

TORTO ARADO – Itamar Vieira Júnior. 262 páginas. Editora Todavia.

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