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Jornalista, pesquisadora, escritora, youtuber, desenvolvedora, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Aos 11 anos, Sophia Mendonça recebeu o diagnóstico de autismo. Tempos depois, assumiu ser uma mulher transgênero. Sua dissertação, defendida em março de 2022, analisou a interseccionalidade entre autismo e transgeneridade no Twitter e como a questão do gênero atravessa a vida das pessoas autistas. “A transgeneridade complexifica a condição de ser autista. Uma pessoa autista tem uma tendência maior à ansiedade e depressão, por exemplo, e a outras condições coexistentes também”, observa.

Em entrevista à Radis, Sophia fala de sua trajetória e de tantos enfrentamentos dolorosos. Sophia tinha dificuldade de autonomia, sempre contou com uma amiga de suporte ou uma professora, utilizou estratégias de camuflagem social para esconder ou disfarçar a sua condição e foi muito julgada. “Minha dor e sofrimento, meu jeito de ver as coisas eram colocados na conta do autismo por profissionais de saúde ou familiares. Como se o autismo me fizesse ser uma pessoa mais frágil e sem a capacidade de ter percepção real do que ocorre. Isso foi muito sofrido”, diz ela. 

Como você descobriu ser uma pessoa autista?

Fui diagnosticada autista aos 11 anos de idade. Sou filha de uma mulher também diagnosticada autista [conheça a trajetória de Selma no texto “Camuflagem social”]. Quando era mais nova, sempre tive alguns traços e manias consideradas esquisitas ou excêntricas, ou fora do padrão para crianças daquela idade. Até os 7 anos, eu chamava muita atenção pela inteligência e não havia grandes queixas de pessoas com as quais eu convivia. Mas eu tinha muita dificuldade para expressar meu hiperfoco, principalmente com crianças. Com adultos, eu conseguia conversar sobre temas muito complexos. A maneira como eu interagia com os meus hiperfocos, que na época eram novelas, desenhos animados e filmes da Disney, era muito diferente de como as crianças interagiam com esses mesmos focos. 

Quais as dificuldades que você enfrentou?

Eu tinha dificuldade de autonomia. Havia sempre uma amiga de suporte ou uma professora. Entrei no Ensino Fundamental, com 7 anos, e foi muito difícil porque vi que era uma outra linguagem. Eu tinha que interagir com crianças da minha idade e sentia que elas não me entendiam, que eu não conseguia me expressar bem, que era sempre inadequada. Na época, pensei em usar estratégias que a gente chama de camuflagem social ou masking no autismo. Eu queria me adaptar e adequar ao que os outros queriam e esperavam de uma pessoa bem comportada. Aos poucos, fui me tornando mais sociável na escola. Os professores achavam que eu era uma criança muito educada e tímida, mas inteligente. Só que eu comecei a ter crises de ansiedade. Eu me segurava tanto na escola que ficava um pouco agressiva e agitada em casa. Pulava, ficava nervosa, andava para lá e pra cá, jogava coisas no chão. Isso acelerou a busca pelo diagnóstico. Fiz uma série de avaliações neuropsicológicas, fui a um psiquiatra especialista e eles detectaram que eu era autista.

Como você foi rotulada até então? 

Fui rotulada como uma menina mal-educada, mimada e birrenta. Na realidade, eu tinha uma dificuldade de autorregulação, com mudanças na rotina e com o próprio ambiente que não era acessível. Tenho as sensibilidades mais aguçadas, tanto sensoriais quanto sociais, e sofria muito. Eu me sentia sozinha. Mesmo tendo o apoio da minha mãe, eu era sempre rechaçada. Minha mãe não tinha uma postura passiva, ela era muito rigorosa. Quando eu tentava comunicar a minha dor e sofrimento para profissionais de saúde ou familiares, tudo era colocado na conta do autismo. Como se o autismo me fizesse ser uma pessoa mais frágil e sem uma percepção real do que ocorria, ou mesmo de ter essa percepção. Isso foi muito sofrido. 

Houve mudanças nas relações pessoais depois da confirmação do autismo?

Minha maior dor foi a invalidação e desqualificação da minha fala por familiares e profissionais de saúde. Parece que as pessoas sabem o que me deixa nervosa e em crise, o que piora o meu quadro. Tenho impressão que fazem de propósito para desqualificar o meu argumento. Isso ficou visível quando eu iniciei a produção de conteúdo sobre autismo, em 2015, e a palestrar. As pessoas me enalteciam e eu ficava para baixo. Para mim, era um meio de compensar a maneira como elas me viam, como alguém aquém. No começo, eu era vista como uma personagem do autismo, não como uma especialista e uma pesquisadora. Foi doloroso. Já adulta, consegui equilibrar meu comportamento e como eu devo me adaptar para conviver melhor em sociedade. 

Quais foram as dificuldades no processo de afirmação de gênero?

A transição social fez diferença na minha trajetória porque esse aspecto básico da minha identidade foi negado pelo capacitismo de alguns profissionais. Fui julgada que eu não era trans mesmo falando claramente que eu sempre vivi como mulher. Minha mãe falava isso desde que eu tinha 2 ou 3 anos. Mas fui desqualificada por outras pessoas, sobretudo profissionais de saúde mental. Agora, faço tratamento hormonal, fiz a cirurgia de redesignação sexual [de afirmação de gênero] e tenho acompanhamento com psicólogo especialista em autismo e com psiquiatra especialista em transgeneridade. Sinto que finalmente eu posso partir do básico, que minha identidade está sendo comunicada, que eu posso me expressar do jeito que eu sou. Fiquei menos deprimida e ansiosa. Depois da transição, eu tive finalmente essa leveza de poder me reconhecer no que eu expressava e até de ter uma relação amorosa, de interagir melhor com os amigos.

Que importância teve o diagnóstico nesse processo?

O diagnóstico é importante em qualquer fase da vida, mesmo se for dado na terceira idade. Primeiro, ele dá um amparo legal para a pessoa, de direitos que não são privilégios. A pessoa autista é uma pessoa com deficiência, ou seja, ela tem uma característica que esbarra na limitação do ambiente e isso provoca um prejuízo funcional em sua vida. A gente precisa de algum tipo de suporte mesmo nos casos mais sutis de autismo e já é um começo ter o amparo da legislação. No meu primeiro livro, Outro Olhar, eu falo que quem conhece as regras do jogo tem mais chances de vencer no final. Porque o diagnóstico possibilita que a gente se conheça e tenha mais conforto e autocompaixão para se comunicar com o outro e estar bem consigo mesma. 

Como era a abordagem e as propostas de tratamento?

Fui tratada por profissionais muito conservadores à época. Parecia que tudo [que eu falava] era uma fraqueza e falha de caráter. Isso me incomodava muito. Eu queria ser aceita por ser uma vida única, singular, não queria ter trejeitos mais masculinos ou falar de futebol para ter amigos como falaram. Queria compreender como as outras pessoas funcionavam e queria que elas compreendessem como eu funcionava para que a gente construísse algo legal juntos. Fui conseguindo isso aos poucos. Nesse sentido, o diagnóstico facilitou a minha interação com o outro. Eu passei a cobrar menos das pessoas, ser menos ingênua e também saber o que eu deveria cobrar dessa interação. Consegui separar o joio do trigo. 

Que desconfortos o autismo trouxe para você?

Na infância, eu não tinha dimensão do quanto eu poderia ser inconveniente em algumas interações. Meus pais não eram muito sociáveis e lembro que as poucas pessoas que ia na minha casa falavam que eu era muito literal. Na adolescência, entendi o quanto eu poderia ser desagradavel e isso gerou um sentimento de rejeição. Eu desenvolvi fobia social e foi uma época difícil porque se antes eu era uma criança extrovertida até demais e que chamava atenção por esses excessos, na adolescência eu parecia aquela pessoa que não estava participando do ambiente, meio desanimada, até por causa da medicação, que na época era muito forte. Naquele momento fui atendida por profissionais  que não tinham tanta bagagem na psicoterapia e eu tinha que me regular por meio de medicação. A medicação trouxe um ar mais robótico à minha comunicação.

Qual a importância do diagnóstico para a pessoa autista? 

As pessoas autistas não são só o diagnóstico. Esse é seu modus operandis [modo de agir], que afeta sua  vivência. Mas essas pessoas têm etnia, classe social, orientação sexual, identidade de gênero. Tudo isso também vai afetar como elas interagem com o mundo. O autismo não é uma doença e as pessoas autistas são um grupo social que, assim como são as pessoas LGBT e as pessoas negras, coloca em xeque a ideia de que todo mundo tem uma maneira mais ou menos similar de processar as informações sensoriais, sociais e tudo mais. 

Qual o estereótipo da pessoa autista?

O estereótipo da pessoa autista é de um homembranco, cisgenero, heterrossexual ou assexual, com uma capacidade quase nula ou nula de comunicação, ou com uma inteligência privilegiada ou esquisitices e excentricidades muito evidentes. Na prática, a realidade é bem mais neurodiversa e o espectro pode se manifestar de maneiras muito diferentes. Esse padrão heteronormativo vai se retroalimentando. Muitos profissionais deixam de diagnosticar o autismo em mulheres por não terem tanto conhecimento sobre o que se estuda sobre autismo, principalmente sobre autismo leve, no feminino. 

Há diferenças na expressão da sexualidade por parte de uma pessoa autista?

Do ponto de vista físico, o autista funciona como uma pessoa neurotípica. Há estudos que indicam uma maior prevalência de diversidade sexual e de gênero no autismo do que nas pessoas típicas. A transgeneridade é 7.59 vezes mais comum em autistas do que nas pessoas típicas. Mas a sexualidade não é só o ato sexual em si. Ela envolve uma relação que se constrói no encontro com o outro e uma certa leitura social, uma capacidade de não ser tão ingênuo. Por isso que a sexualidade no autismo tem algumas peculiaridades que devem ser observadas. 

Qual a intersecção entre a transgeneridade e o autismo?

A transgeneridade complexifica a condição de ser autista. Uma pessoa autista já tem uma tendência maior à ansiedade e depressão, por exemplo, e a outras condições coexistentes também. Além disso, tem um fator que limita a sua participação na sociedade e a sua vida cotidiana, seja por preconceito ou pela própria auto-aceitação. A transgeneridade é algo fora dos padrões normativos e deixa a pessoa mais vulnerável a crises de depressão e ansiedade que dificultam a interação com o outro. Quando eu estava no início da transição sempre tive dificuldade em fazer atividades do dia a dia. Eu lembro que antes da minha transição era mais tranquilo pedir ajuda. Mas quando eu não tinha uma passabilidade [termo que significa “passar-se por”] tão boa, eu tinha uma aparência vestida como mulher, mas com mais sinais masculinos na aparência física, as pessoas tinham um jeito mais agressivo de lidar comigo. Isso já é um fator complexificador. Essa vivência pode ser ainda mais desafiadora quando junta preconceito e transfobia. 

O que a sua trajetória de aceitação revela?

Dá para ser autista e ser feliz. A gente precisa de apoio, suporte, amor familiar e autonomia. Para autistas certas atividades envolvem uma série de competências e funções executivas que a gente tem de maneira alterada. Às vezes a gente vai ter dificuldade em uma questão da vida diária, mas mesmo os autistas mais comprometidos em algum grau querem ter a sua visão de mundo respeitada e de poder tomar decisões sobre a sua própria vida. Quando a gente une a autonomia e interdependência, que se completam, a gente consegue ser muito feliz e ter qualidade de vida. Somos mais felizes e fazemos os outros felizes também. Hoje, eu me sinto mais feliz, segura e plena mesmo enfrentando vários desafios.

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