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Aos 61 anos, casada e mãe de dois filhos, Jacqueline Rocha Côrtes é uma mulher trans que vive com HIV desde 1994. Ela foi cofundadora da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (RNP+Brasil) e é integrante do Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas (MNCP). Professora de formação, ela trabalhou no programa das Nações Unidas para a aids (Unaids) e como chefe da Assessoria de Cooperação Internacional no então Programa Nacional de IST/aids do Ministério da Saúde. Em 2016, ganhou o seu próprio documentário, “Meu nome é Jacque”, de Ângela Zoe, disponível no Globoplay.

[Leia a entrevista completa com Jacqueline, que é parte da reportagem de capa sobre mulheres vivendo com HIV]

Gostaria que você começasse contando a sua história de vida com o HIV/aids. Como foi a descoberta? Que desafios você enfrentou ao longo dos anos para vencer os estigmas e o preconceito? 

Eu me chamo Jacqueline Rocha Côrtes. Também muito conhecida como Jacque. Vivo com HIV, com aids na verdade, desde 1994. Vão-se aí 27 anos. Sou uma mulher transexual redesignada. Fui uma das cofundadoras da Rede Nacional das Pessoas Vivendo com HIV/aids (RNP+Brasil) e uma incentivadora e integrante do Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas (MNCP), onde ocupei por três anos a representação na América Latina. 

Descobri a sorologia para o HIV em 1994, com o diagnóstico no dia 6 de junho, mas com suspeitas a partir de fevereiro e março. Descobri por acaso. Voltemos a 1994. O cenário do Brasil em relação à aids: puro e total estigma. Não mudou tanto, mas melhorou um pouquinho. Sem tratamento adequado com a terapia antirretroviral (TARV). Era um momento bastante adverso. Havia o agravante do preconceito e estigma por ser um vírus que é transmitido por via sexual, primordialmente. Como a aids chegou no mundo como “peste gay”, ela se tornou uma doença extremamente estigmatizada e estigmatizante — e discriminatória.

Eu sou professora de inglês, não mais atuante. Eu dava aula todos os dias. Tive um mal-estar entre fevereiro e março de 1994, uma sensação esquisita, era como se fosse uma virose. Fui ao médico, minha mãe foi junto, sempre presente. Pelos resultados, ele falou que realmente tinha sido uma virose. Eu já estava melhor, mas minha mãe disse: “Não seria melhor pedir um exame de HIV?” Ele disse que não. Quando foi em abril, eu fiquei rouca, o que era comum em quem trabalha com a voz. Fui ficando afônica. Fui em um otorrino e ele recomendou parar de dar aula por 30 dias. Eu diminui as aulas, fiz o tratamento e o teste para o HIV. O primeiro teste deu inconclusivo. Porém, claro, fiquei com a pulga atrás da orelha, comecei a pensar que era o universo conspirando para eu me preparar, porque eu poderia ter um diagnóstico positivo. 

Eu nada sabia de HIV, eu não era ativista. Fiz o segundo exame, peguei o envelope no balcão no dia 6 de junho, sem nenhum aconselhamento. Não tive coragem de abrir, segui até à casa da minha mãe. Parei o carro numa praça. Fiquei olhando para as árvores e abri o exame. (pausa) E deu positivo. Foi terrível, era sinônimo de morte rápida, eu estava com 34 anos. 

Foi triste, desesperador. Cheguei na casa da minha mãe com o olho inchado. Quando ela me olhou na porta, ela já abriu os braços e chorou comigo, sem que eu falasse uma palavra. Minha mãe me deu todo o apoio. Eu fui num médico, um infectologista, e fiz a fatídica pergunta: “Quanto tempo eu tenho de vida?” O médico disse que nós não somos deuses, não podemos afirmar. Mas eu insisti e ele disse que a prática tem mostrado que a sobrevida chegava a no máximo 18 meses. Um ano e meio? Então eu posso estar morta com 35 anos? 

Aí que eu caí na deprê. A minha relação inicial com o HIV foi horrível. Eu passei por todas as fases que a gente passava na época. Primeiro, a incredulidade, a não aceitação. A negação. Depois, vem a revolta. Eu me sentia uma arma ambulante. Que eu poderia matar alguém a qualquer momento. Depois da raiva e do ódio, vem a grande tristeza, a desesperança e a depressão. Até que num momento, a minha mãe segurou meus braços com força, ela era muito positiva na vida: “Chega de sofrer! Você não vai morrer de aids!” E bateu no peito: “Porque eu não vou deixar! Você está viva, você anda, você fala, deixa para chorar quando morrer”. Foi o que me ajudou a sair do quadro depressivo. 

Eu tinha a cabeça preconceituosa como todo mundo, eu achava que era coisa de gente promíscua. (Apesar de eu ser uma trans, na época teoricamente um gay, porque eu ainda não tinha feito a transição, sempre fui menina desde pequena e sabia disso, e nunca vivi a vida da homossexualidade, nunca tive um namorado gay.)

Minha amiga me levou numa ONG, Grupo de Incentivo à Vida (GIV). Aí tive contato com outras pessoas vivendo com HIV, todos os tipos de pessoas: homens, héteros, cisgêneros, mulheres, gays, travestis, jovens, idosos, pobres, usuários de drogas, prostitutas, empresários. Ali todo mundo tinha HIV. Eu fui me envolvendo, a gente não tinha acesso à literatura específica, passei a ser uma voluntária na ONG e a traduzir a literatura. Fui conhecendo o mundo da aids e a gente começou a se unir para montar uma rede só de pessoas vivendo com HIV/aids no Brasil. Aí montamos a RNP, da qual eu sou uma cofundadora. 

Viajei muito, fiz projetos de capacitação para pessoas vivendo com HIV, comecei a participar de mesas no Brasil afora, me empoderar e entender da política, me tornei ativista. Botei a cara a tapa. Eu não ia viver escondida. Aí pronto: a Jacqueline se tornou uma figura pública com um monte de entrevista. Foi assim que começou o meu ativismo: ele foi ocupando o lugar da tristeza e eu falo da importância do não isolamento. O isolamento acaba com a pessoa. Se isolou, morre. Eu comecei a ver que a vida continuava. Já tinha passado dois anos e não morri. Então essa ideia começou a deixar de existir.

Da minha família eu tive total apoio. Meu pai falou que esperava fibra de mim, esteve ao meu lado o tempo inteiro até a sua morte. Minha mãe, meus irmãos, fizeram uma grande diferença. 

Em 2002, surgiu o movimento [das Cidadãs PositHIVas]. Eu entrei como integrante. Em 2005, teve o primeiro encontro nacional das Cidadãs Positivas. Eu coordenei o planejamento estratégico. Passei a militar nas duas instâncias. Comecei a me identificar muito com as mulheres, porque era a minha essência. Passei a me identificar também com o trabalho, porque envolvia a questão de ajudar outras mulheres a não se infectarem. 

O mais bonito de tudo é que o MNCP, sempre que junta todo mundo, é uma comoção muito grande. É uma sororidade, sabe? A gente se apoia umas nas outras. A gente vê as jurássicas, em que eu me incluo, as que descobriram o HIV agora, é outro momento da aids. Elas têm como referência toda essa mulherada que está viva, que lutou e preparou um caminho. Não dá para pensar em não participar de movimentos sociais. 

Tive uma trajetória ativista muito grande, fui consultora do Ministério da Saúde, fui assessora técnica de cooperação internacional. Hoje estou fazendo graduação em gestão pública. Fiquei três anos no MS. Depois houve um processo seletivo e me tornei funcionária da ONU.

Eu fiz minha transição de gênero em 2001. Mudei minha certidão e casei em cartório em 2004. Vivo com meu marido até hoje, adotamos dois filhos, faz quase 11 anos. Minha filha tinha dois aninhos, meu filho já tinha nove. Hoje ele está com 19 anos, ontem ele prestou o Enem. É uma gratidão. Eu estou viva, mãe, redesignada, vivendo com HIV. Eu pedi demissão da ONU. Meu marido também vive com HIV e atualmente está desempregado. Somos quatro pessoas para viver com a minha aposentadoria.

Que desafios e vulnerabilidades são vivenciados pelas mulheres vivendo com HIV/aids? E no caso das mulheres trans?

Primeiro, vem o desafio da próxima aids. Muitas mulheres são as provedoras financeiras, têm uma jornada dupla ou tripla, muitas não têm marido, ou têm maridos desestruturados, que bebem, violentam. As vulnerabilidades vão muito em cima de manter o tratamento, manter a sua família, conseguir trabalhar. A maioria das mulheres com HIV não tem formação acadêmica. Têm dificuldades em conseguir trabalho. Sem considerar esses quase dois anos de covid que redimensionaram as coisas de uma maneira absurda. Muitas que faziam artesanato, que vendiam em feiras, deixaram de fazer. Nós fizemos uma campanha no ano passado que trabalhava em três linhas: ajuda assistencial, com cesta básica; apoio psicológico; e apoio para a retirada de medicamentos que não podiam buscar, por conta da idade ou porque era grupo de risco. Foi um trabalho muito bonito, em rede. A mulher tem a questão da menstruação, tem a questão da maternidade, da gestação. A violência doméstica é muito grande. Muitas mulheres lidam com a questão da lipodistrofia, por conta do uso dos medicamentos. No caso das mulheres trans, isso é ainda acrescido de um grande preconceito e discriminação. O acesso é prejudicado porque a trans não tem seu nome social respeitado, então ela não quer voltar no serviço de saúde. Muitas delas ainda vivem da prostituição, então não querem ter a sua sorologia pública. Quando temos pessoas públicas, como eu e tantas outras, é muito importante porque a gente dá voz a muitas que não podem ter voz.

Como enfrentar as desigualdades e garantir equidade para as mulheres que vivem com HIV/aids, seja no acesso ao tratamento, à prevenção e ao apoio?

É lutando, é participando, é ocupando espaços de controle social, como conselhos municipais, locais, estaduais e nacionais. Ali podemos legitimamente intervir na construção de políticas públicas, levar a voz das pessoas vivendo com HIV/aids. É ocupando espaços políticos que vamos enfrentar as desigualdades. É fundamentalmente importante dialogar sobre HIV e sobre sexualidade humana, sobre uso de drogas, mercado de trabalho, segurança pública. É participar da construção de políticas públicas. Saber em quem votar e não colocar déspotas que querem invisibilizar a aids no Brasil. Ele [Bolsonaro] acabou com as Câmaras Técnicas e vários comitês consultivos. A melhor maneira de enfrentar é participar, é estar em grupo, é viver. É não entregar a toalha. É viver e exigir que o que nós conquistamos não seja jogado por água abaixo.

Como a pandemia de covid-19 impactou a vida das mulheres vivendo com HIV/aids? Que ameaças estão colocadas no atual contexto? E que lacunas ainda existem nos serviços de saúde?

A saúde mental foi muito impactada. Muitas mulheres ficaram depressivas e tiveram crise de ansiedade, de transtorno fóbico-ansioso. Muitas mulheres perderam sua casa. Para a mulher sempre é pior. Para a mulher em situação de rua, por exemplo, ninguém lembra de doar absorvente. Mas isso tem mudado, com as mulheres ocupando seu espaço. Há desafios de contexto. Há locais em que o SUS funciona melhor do que em outros, porque a gestão é mais inclusiva. Atende melhor à necessidade de seu povo. Quando há controle social, há uma tendência de cumprimento das obrigações do gestor. Eu sou SUS defensora e SUS dependente. 

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