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Tio.Faso, escrito desse jeitinho, com espaço e ponto, é muito conhecido nas redes sociais. Quem dá nome ao apelido é Fábio Sousa. Aos 39 anos, ele administra o perfil @seeufalarnaosaidireito que tem 15,2 mil seguidores no Instagram, 7,1 mil no Facebook, 1 mil no YouTube e 2 mil no Twitter. Por esses canais e em inúmeras palestras, Fábio relata experiências sobre o autismo com bom humor e leveza e com um pé na realidade. “Não dá para romantizar”, fala sobre a condição que descobriu aos 35 anos de idade. 

Paulista, morador de São Bernardo do Campo, Fábio usa as redes sociais para desmistificar o universo das pessoas autistas e fala da desigualdade que existe entre uma pessoa autista branca e uma negra. “Se um autista branco tem crise, ele é amparado, já o autista negro na mesma situação, corre o risco de ser preso ou morto por ser lido como uma ameaça”, afirmou à Radis. Segundo ele, o atendimento no SUS para essa população ainda é pautado por uma visão anacrônica. “Infelizmente, muitos profissionais têm uma visão estereotipada do que é um autista, descartando sem muita análise que eu poderia ser um deles, por exemplo”, assume.

Quem é o Tio.Faso?

Sou um designer de formação, bonequeiro e criador de conteúdo infantil que se descobriu autista aos 35 anos de idade e que até esse dia desejava morrer diariamente por não se encaixar no mundo. Hoje, aos 39 anos, eu dedico a minha vida para falar e conscientizar sobre autismo no máximo de lugares possível, por meio do projeto “Se eu falar não sai direito”, para que a triste proporção de 90% de autistas não diagnosticados seja apenas uma péssima lembrança do passado.

Como você descobriu ser autista?

Durante a gestação do meu filho. Durante uma consulta, a minha esposa viu uma matéria que apontava as características do autismo leve em mulheres que obtiveram o diagnóstico tardiamente. Foi no dia Mundial da Conscientização do Autismo [2/4]. A princípio, não concordei, pois possuía uma visão limitada e capacitista sobre o que é ser autista, acreditando que apenas os graus mais severos, atual grau 3, era o único tipo de autista que existia. Com o passar do tempo, comecei a ver vídeos com depoimentos de profissionais e autistas falando sobre o grau 1, que é o leve. Passei a me identificar mais e mais.

Você buscou atendimento no sistema público?

Tentei buscar confirmação profissional via SUS, mas os profissionais também tinham uma visão estereotipada do que é um autista, descartando sem muita análise que eu poderia ser um. Só quando cruzei com o caminho da psicóloga Lucia Silva, diretora da Più Abilità Núcleo Terapêutico, especializada em autismo, que o panorama mudou. Ela foi enfática após 1h30 de conversa analisando o meu histórico de vida: eu me encaixava em todas as características para ser classificado como autista. Passamos mais alguns meses em consulta e, antes do início da pandemia, fui encaminhado ao neurologista que me laudou como autista.

Qual a interseção da luta de uma pessoa autista e negra?

Há uma frase no meio autista que ilustra bem isso: “Se você é branco e estranho pode ser que seja autista, mas se for negro é só frescura”. Os negros estruturalmente levam desvantagem em tudo e na saúde mental não é diferente. Se um autista branco tem crise, ele é amparado, já o autista negro na mesma situação, corre o risco de ser preso ou morto por ser lido como uma ameaça. Quando pensamos na situação econômica, pessoas negras são a maioria dos pobres, logo ter diagnóstico, suporte, medicação e correlatos é um luxo. Essa é a diferença entre colocar comida na mesa e passar fome. Como alguém pode gastar tanto dinheiro em uma avaliação neuropsicológica para talvez confirmar se é ou não autista quando o mesmo dinheiro pode ser a renda familiar para se sustentar por um ou dois meses? Aqui no Brasil, e posso falar que em muitos lugares do mundo, ser autista, negro, pobre e periférico é quase zerar o super trunfo das desgraças que podem acometer a uma pessoa. Eu tive sorte por ser um negro de classe média com suporte familiar que conseguia me manter enquanto eu não funcionava direito. Não precisei fazer meus “corre” sem saber o que acontecia comigo. É por isso que dedico os meus dias a falar de autismo para que mais pessoas possam se entender e receber o apoio que merecem, deixando de sofrer e até mesmo morrer por serem historicamente invisibilizados.

Qual a importância do diagnóstico tardio?

Muitos profissionais que não estão habituados a lidar com autistas leves parecem não ter noção do peso que é ser um autista leve não diagnosticado. Alegam que a gente conseguiu tanta coisa nessa vida – o que o diagnóstico tardio trará de benefício? A real é que isso é a nossa carta de alforria; uma libertação e perdão que ganhamos por tudo que foi difícil em nossas vidas. É poder finalmente deitar na cama sem a sensação de estar sobrando no mundo, que você tem algum defeito e que precisa ser consertado. A morte deixa de ser uma solução e você passa a querer finalmente entender tudo aquilo que aparentemente não tinha resposta. O diagnóstico tardio salva e muda vidas. Permite finalmente nos conhecer por completo. 

De forma prática o que mudou?

Antes do diagnóstico eu não tinha pleno conhecimento sobre mim e o que passava com o meu cérebro, mente e corpo. Estava em piloto automático tentando lutar com algo que eu desconhecia. Como efeito colateral, tenho desde problemas de relacionamento à dificuldade de gerar renda. Hoje sei dos meus limites e aprendi a pedir ajuda. Consigo me policiar para não cair nas armadilhas de uma mente com pensamento rígido que pode me prender durante anos em ciclos sem fim. Agora finalmente estou me entendendo como pessoa e para onde eu quero e posso ir, sem medo de que “do nada” algo dê errado e fuja do meu controle, simplesmente porque não me respeitei. 

Como foi a sua experiência no SUS?

Inicialmente, fui bem acolhido no CAPS, mas com o passar das sessões com psicóloga e em grupo caí na vala de “você não pode ser autista” e me encaminharam para UBS com suspeita de Transtorno de Personalidade Histriônica, na qual uma psiquiatra após 15 minutos de conversa comigo foi categórica: “Meu feeling diz que você não é autista”. Eis que após duas psicólogas, uma neuropsicóloga, dois psiquiatras e um neurologista eu continuo sendo autista, inclusive com avaliação neuropsicológica. Infelizmente, a busca por diagnóstico de TEA para grau 1 no SUS é loteria, pois muitos profissionais estão desatualizados e desconsideram que exista autista que consiga casar, fazer faculdade, ter filhos etc. É por isso que adoro dar palestra para alunos de medicina e psicologia, pois tenho a oportunidade de reforçar que eles nunca podem deixar de se atualizar, que o trabalho deles pode mudar a vida das pessoas e impedir mortes e gerar qualidade de vida que muitos de nós, com diagnóstico tardio, passamos anos ansiando.

Falta, então, informação e melhor qualificação de trabalhadores de saúde?

Os profissionais de saúde precisam se atualizar. Os problemas que encontrei durante a minha busca pelo diagnóstico ainda se repetem diariamente. Um autista leve tem o seu diagnóstico invalidado por não preencher os estereótipos que eles esperam de um autista. ‘Olha no olho?’, não é autista! ‘Veio aqui sozinho na consulta?’, nenhum autista faz isso! ‘Como assim você acha que é autista? Nenhum autista sabe que é autista…’. Essas são coisas que escutamos em consultórios por todo esse país. O autismo é uma deficiência espectral: cada um de nós é diferente. Você não vai ver dois autistas iguais. A única coisa em comum em todos é o tripé do diagnóstico. De resto, é como um enorme buffet onde cada um monta o prato do seu jeito. E, com tudo isso em mente, sejam mais acolhedores. Já é muito difícil para boa parcela de nós tentarmos realizar coisas como ir a um médico por conta própria. Quando vocês nos repelem com base em achismos é garantia de trauma e que nunca mais apareceremos.

O quanto de violento existe no fato de que é preciso um diagnóstico para que as pessoas não se sintam diferentes?

A sociedade em si exclui o diferente. Não siga o padrão hegemônico e será escorraçado. Quando se é um autista, você externamente se encaixa no que a sociedade espera, mas o seu comportamento não. Então, até ter o diagnóstico você é excluído e aparentemente você é a única pessoa com todas as coisas diferentes que faz com que os outros se afastem. No momento em que você descobre que o seu “problema” é o autismo, e que existe um monte de gente parecida com você, que passou pelos mesmos perrengues, você finalmente se sente parte de algo que até aquele momento lhe era proibido – você finalmente encontra os seus pares e não se sente tão só no mundo.´

 O que você espera do mapeamento a ser feito pelo Censo?

É uma das coisas que mais esperamos para ter uma estimativa real de quantos autistas com diagnóstico há por aí, porque é assim que as políticas públicas são feitas: se há uma massa considerável de pessoas com tal condição o Estado precisa dar atenção. O que temos hoje são estimativas baseadas em números de fora. Sem esse número real não tem como, por exemplo, definir um local para ter um centro de apoio para contemplar mais pessoas. E o conhecimento na base de números permitirá, assim espero, que ditos “profissionais” parem de negar a nossa existência, no caso de autista grau 1 muito funcional, e se atualizem. É muito comum um autista grau 1 laudado ir a um médico verificar algum problema e o mesmo negar, sem ser solicitado, que a pessoa seja autista porque “fala/tá casado/sabe que é autista/etc”.

Você fala que teve sorte por ser um negro de classe média que teve suporte familiar. Foi sorte ou privilégio?  

Sorte porque nem toda pessoa tem apoio da família. É muito comum que familiares de autistas neguem essa possibilidade, afinal a visão que temos do autismo é estereotipada. O meu privilégio foi poder suspeitar que sou autista e conseguir a resposta em tão pouco tempo, conseguir fazer terapias, receber suporte medicamentoso e ter uma voz ativa que é reconhecida e apoiada.

Como surgiu o projeto ‘Se eu falar não sai direito’? 

O projeto começou comigo, mas como acabou virando um trabalho que eu nunca daria conta sozinho. A Liz, minha esposa, entrou no barco para me ajudar a cuidar de tudo. Ela começou aparecendo em lives, mas com o tempo a “intimei” a contar sobre como é viver com um autista e ser mãe de um, o que oferece uma visão completa sobre como estar dentro do mundo do TEA.

É possível ser autista e ser feliz? Quais são os seus planos?

Essa é uma questão que sempre é preciso observar não pelo viés macro, mas sim no individual. Quando pensamos de forma coletiva podemos afirmar que dá para ser autista e ser feliz, mas a realidade é que a nossa deficiência está bem no cerne da sociedade, logo, a inclusão que nos deveria ser ofertada é cobrada como se não tivéssemos limitações. Ninguém pede para um cadeirante levantar e andar ou um surdo passar a escutar, mas querem que nós, autistas, sejamos mais sociáveis e que funcionemos como todas as outras pessoas. A nossa cadeira de rodas está dentro das nossas cabeças e por mais que tentamos e queiramos, há coisas que não conseguiremos realizar e fazer. E isso pesa muito para diversos de nós. Eu adoraria não ter problemas com o choro do meu filho ou conseguir gerar renda constante para nos manter – dos dois, o último é a única coisa que está nos meus planos: conseguir ser um adulto financeiramente funcional, coisa que até hoje ainda não consegui.

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