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Os dias de terror vividos por Manaus em janeiro — com a morte de pacientes por asfixia devido à falta de oxigênio nos hospitais, à ausência de vagas em UTIs e à chegada de uma nova variante mais transmissível do vírus — são uma tragédia difícil de esquecer e ainda longe de acabar. Foram muitos os relatos de desespero e incontáveis as imagens de dor daqueles que tentavam buscar por conta própria cilindros de oxigênio para que seus familiares não morressem sufocados, enquanto médicos no limite da exaustão precisavam decidir quem receberia oxigênio suplementar, levando em conta as chances de sobrevivência. “Os hospitais de Manaus viraram câmaras de asfixia”, resumiu na coluna de Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo (14/1), o pesquisador da Fiocruz Jesen Orellana, que há tempos vem denunciando a situação na região.

A tragédia revelou a falta de coordenação e as decisões erradas das autoridades, como mostraram as reportagens exibidas em rede nacional. Segundo a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério da Saúde teve conhecimento da escassez do insumo no estado, pela própria empresa que fabrica o produto, em 8 de janeiro (Agência Brasil,18/1). Ao G1 (15/1), o procurador da República do Amazonas, Igor da Silva Spindola, que atua na área da saúde no Estado, disse que abriu um processo contra o governo estadual e federal para apurar a responsabilidade pela falta de oxigênio. Após dias minimizando a crise — noticiou o El Pais Brasil (14/1) — planalto e governo do Amazonas passaram a correr contra o relógio para transferir pacientes a outros estados e conseguir importar insumo.

Em meio ao caos, a solidariedade veio por parte da sociedade civil organizada, artistas, jornalistas, gente famosa e anônima, que se mobilizou para ajudar. Cilindros extras de oxigênio foram enviados a Manaus inclusive pelo governo da Venezuela. Nos primeiros dias de janeiro, morreram no Amazonas 1.654 pessoas, mais do que entre abril e dezembro do ano passado. Dados do final do mês (27/1) davam conta de que, no total, mais de 7 mil pessoas já haviam morrido por covid-19 no estado.

Uma crise com muitos fatores

A crise no Amazonas é resultado de medidas de prevenção inadequadas e um contexto extremamente desfavorável, avalia Luiza Garnelo, pesquisadora do Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia). Em análise apresentada no painel virtual “Pandemia na Amazônia: crise e caos”, organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 27/1, ela ressaltou que a situação caótica na região “não surge do nada”, mas se assenta em indicadores sociais e sanitários muito precários, característicos dos estados que compõem a Amazônia.

Luiza apresentou dados recentes que mostram o baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) na região — o que por si já caracteriza uma situação de pobreza e desigualdade acentuada —, além de números desfavoráveis na composição do Índice de Progresso Social (IPS), de 2018 — que também demonstram uma baixa performance social e ambiental regional em três quesitos (necessidades básicas, fundamentos para o bem-estar e oportunidades). Acrescente-se a isso um cenário com uma proporção muito elevada de indivíduos em situação de extrema pobreza, e os menores números de domicílios com banheiros e água encanada no país, segundo dados do IBGE. “Estes dados são muito relevantes para o contexto de pandemia que vivemos”, sinalizou a pesquisadora, lembrando que estas condições de vida não ajudam as pessoas a manter as medidas necessárias de higiene individual.

Em relação a Manaus, Luiza observou que mais de 50% da população vive em domicílios considerados inadequados, segundo dados do IBGE. Para além disso, ela relatou iniquidades no financiamento à saúde: pesquisa recente verificou que, na comparação com as outras regiões de saúde com características semelhantes, a capital amazonense e seu entorno têm o pior IDH e o mais baixo repasse per capita do Ministério da Saúde. Para se ter uma ideia, o repasse seria de R$ 663,20 para o entorno de Manaus, contra R$ 4.797,40 para a região Sul-Barretos, em São Paulo. Ainda segundo Luiza, a capital não alcança 40% de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF).

“A epidemia exacerbou a situação”, sinalizou, ressaltando a grande concentração de equipamentos e serviços de saúde em Manaus, em comparação ao restante do estado. Na capital, encontram-se mais de 300 estabelecimentos públicos de saúde, estão 89% dos serviços de média complexidade disponíveis no estado e todos os serviços públicos e privados de alta complexidade — o que obriga os usuários do interior do Amazonas a se deslocarem para a capital em busca de atenção especializada. A pesquisadora considerou ainda que, ao não se privilegiar medidas de prevenção na atenção primária, houve uma sobrecarga na demanda pelos serviços de alta e média complexidade na capital.

Ela também chamou atenção para a concentração das equipes de atenção primária em alguns municípios do estado, deixando muitas regiões com a população desassistida. “São iniquidades estruturais, associadas, não apenas ao isolamento geográfico e político, mas também aos limites de renda na região, ao repasse inadequado do governo federal, à limitada capacidade de gestão e arrecadação dos municípios menores, o que dificulta a incorporação tecnológica nos seus serviços e perpetua a baixa resolubilidade e os precários níveis de IDH”, ressaltou.

No que diz respeito ao perfil recente da covid-19 no Amazonas, Luiza apontou uma baixa adesão à estratégia de isolamento social e demonstrou preocupação quanto aos números que revelam que 55% dos casos são oriundos da capital e 44% do interior do estado. Ela argumentou que a população do interior é pequena e a capacidade de testagem muito limitada, o que leva a crer que os percentuais registrados revelam uma proporção certamente maior e invisível de casos.

A isso somam-se resultados de outra pesquisa, que demonstra uma maior prevalência de anticorpos para a covid entre a população de baixa renda. “Um caminho muito fértil para situações desastrosas como a que se vive no momento”, avaliou. Luiza também citou o aumento na taxa de ocupação de leitos clínicos (100%) e de UTI (95,8%) por pacientes com covid-19 e o contraste entre a alta de internações no início de 2021 e a ausência de prioridades dada às políticas de contenção e de isolamento social.

Outro estudo apresentado pela pesquisadora, realizado pela USP, mostra as diferenças observadas na região Norte em relação ao restante do país: 6 em cada 10 pessoas internadas na UTI com covid-19 morreram, no Brasil. Na região Norte, o número foi de 8 mortes; enquanto o tempo entre dar entrada no hospital até a morte chegava a 12 dias nas outras regiões, no Norte era de apenas 7 dias. A pesquisa demonstra que, a despeito da importância em se investir recursos em equipamentos e leitos, eles não foram acompanhados de outras medidas importantes, como o treinamento de profissionais. “Essas iniciativas monopolizaram a atenção, a discussão e a alocação de recursos, com pouco investimento na atenção básica, na ampliação da testagem e nas medidas de contenção social. Não é que a transferência de pacientes e investimentos em hospitais não sejam necessários, mas não são capazes de conter uma epidemia”, explicou.

Nova cepa e investimentos

Luiza considerou ainda que o monitoramento genético é crucial. Ela relatou um aumento substancial na frequência da linhagem P 1 no Amazonas, lembrando que o primeiro caso da cepa foi identificado em amostra coletada no início de dezembro de 2020. No fim do mês, esses casos já representavam 51% das amostras; em janeiro de 2021, eram 91% — já identificadas em 11 municípios do estado, segundo levantamento feito pela Rede CIEVS e a Fiocruz Amazônia. Ela defendeu a importância em se investir na capacidade instalada no sentido de ampliar este monitoramento genético.

A pesquisadora também salientou que não era possível avaliar estes dados sem levar em consideração os contextos sociais, políticos e econômicos da Amazônia, que incluem: a economia de fronteira e seu olhar predatório para a região, que trazem consigo inúmeras consequências sociais; um esforço massivo e sistemático de disseminação de fake news por meio das redes sociais — que se apoiam em uma ofensiva a qualquer iniciativa científica que busque reduzir as desigualdades sociais; a vinculação de parte da população regional a este modelo de extrativismo predatório que aprofunda as desigualdades, sociais e sanitárias. Por fim, ela ainda destacou a insuficiência prévia da rede assistencial de saúde, fortemente tensionada pela emergência gerada pela epidemia — que se liga ao subfinanciamento e à falta de investimentos em pesquisa científica.

A situação aqui é desesperadora

Foto: Reprodução.

“Gratidão — Estou vivo graças à dedicação dos profissionais da saúde do Hospital Delphina e da UPA Campos Sales. Depois de 8 dias internado, com 50% dos pulmões comprometidos, lutando pra viver, seria impossível vencer essa batalha sem a ajuda desses soldados de luz. Muito obrigado e viva ao SUS!” O relato de Marcelo Ferreira, de 49 anos, publicado na rede social Facebook, após receber alta da covid-19, no dia 6 de janeiro, em Manaus, resume a saga vivida desde que contraiu a doença. “Eu venci a covid”, escreveu na legenda das fotos feitas no hospital e que acompanhavam a postagem.

Marcelo tinha motivos para comemorar. Desde que recebeu o diagnóstico, ainda em dezembro de 2020, ele e sua família protagonizaram momentos de angústia e perda, mas também de alívio, com a sua volta para casa. A alegria, no entanto, não foi completa. Ele, a esposa, dois dos filhos, sogro e sogra foram contaminados com o novo coronavírus. Um deles não sobreviveu.

Tudo começou no dia 18 de dezembro, quando ele e o sogro Enéas Silva, 68 anos, procuraram o posto no bairro da Glória, na capital amazonense, com os primeiros sintomas. Depois de longa espera sem atendimento, decidiram ir à UPA Campos Sales, no bairro do Tarumã. Lá, encontraram muita gente à espera, “mas não estava essa loucura que está hoje”, lembra Marcelo. Mesmo assim, foram informados de que já não havia mais leito para internação.

Enéas estava um pouco sonolento, mas sem febre e com boa saturação de oxigênio. Saiu de lá medicado e voltou para casa. Já a saturação de Marcelo estava baixa. Ele foi encaminhado à sala vermelha da UPA, onde permaneceu por 24 horas. Depois de mais um dia na ala de observação de alto risco, foi transferido para o hospital Delphina Aziz, também na capital, onde permaneceu internado por mais oito dias.

“Nos primeiros dias, minha cabeça estava fora de ordem”, conta Marcelo à Radis. Ele também mostrou um vídeo, gravado com o celular, onde registrou um dos momentos mais críticos de sua internação. Na gravação, ele registrou, com a voz quase inaudível: “Estou falando desse jeito para não me cansar, para economizar. Estou com o pulmão comprometido e temos que seguir um rito de espera. Neste momento, estou usando três litros de oxigênio, estou com um pouco de tosse, mas em geral estou bem”. Naquele momento ele mantinha o otimismo e alertava família e amigos: “Quero reforçar que vocês se cuidem. Esse vírus bate muito forte. Cuidado”.

Do lado de fora, a covid avançava em sua família: A esposa Elta, 37 anos, e os filhos Pedro, de 7, e Rian, de 16, testaram positivo, mas sem sintomas. O filho mais velho, Mateus, de 18, não se contaminou. Lautecília Souza, 65, sua sogra, também foi contaminada, porém assintomática. Mas o sogro voltou a se sentir mal, dias depois do primeiro atendimento. Já era 4 de janeiro quando Enéas procurou o hospital São Raimundo, com pressão alta. Um novo raio-x revelou um pulmão comprometido, mas a saturação ainda era boa.  Encaminhado para o hospital 28 de agosto, chegou lá com a saturação baixíssima, onde foi direto para o setor de urgência. Cinquenta minutos depois, foi intubado e sedado. Foi a última vez que sua filha o viu. Quatro dias depois, ele faleceu. “Meu sogro não teve funeral. Nós passamos meia hora perto do caixão na funerária”, contou Marcelo, destacando que o sepultamento foi feito com um trator. Ele assistiu a tudo de longe, dentro de um carro, já que ainda se recuperava da mesma doença.

Na conversa que teve com a Radis, Marcelo lamentou a situação de Manaus, em relação à pandemia de covid-19, e enumerou alguns contextos, como denúncias de superfaturamento na compra de respiradores; governo negacionista, sem experiência em gestão; pressão dos comerciantes pelo fim das medidas restritivas de circulação e o pior — a falta de oxigênio. “Não temos nenhum tipo de amparo do Estado”, criticou, apontando também a responsabilidade da população. Ele também revelou a dura realidade de quem vive a constante tensão da proximidade com o risco. “Toda hora é um amigo próximo que morre. Mães e pais jovens. Um amigo perdeu sete pessoas da família, incluindo filha, irmão e mãe. A situação aqui é desesperadora”, afirmou, destacando que, naquele momento (16/1), ainda havia gente procurando ajuda nas redes sociais para comprar oxigênio. “Imagina um pedido desse? Estão cobrando 6 mil reais por um cilindro”. Sem conseguir prever quando e qual será o desfecho da crise, ele ainda reclama da dificuldade que é manter a saúde pós-covid: ainda sente falta de ar, cansaço e ansiedade com tantas notícias ruins.

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