Menu

Na noite de domingo 17 de abril, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou em cadeia de rádio e televisão: “Temos hoje condições de anunciar o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin)” vinculada à covid-19. A medida significa que dentro do território nacional não há mais emergência sanitária decorrente da infecção pelo novo coronavírus, mesmo que o poder para decretar o fim de uma pandemia não caiba ao Ministério da Saúde: a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda mantém o alerta de pandemia para a covid-19. 

Nos sete dias anteriores, o Brasil registrou média diária de 103 mortes relacionadas à covid-19 e 14.910 novos casos da doença por dia, segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa, feito a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde. Somava, assim, mais de 660 mil vidas perdidas pela pandemia, dentre ao menos 30.245.839 casos conhecidos.

“A revogação da emergência precisa estar ancorada em critérios epidemiológicos, o que ainda não temos”, afirmou a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no seminário virtual A pandemia em Transição, promovido em 20 de abril pelo Observatório Covid-19 da Fiocruz. “Não há consenso internacional do que vai ser considerado aceitável em termos de óbitos e casos, o que dificulta falar em fase endêmica”.

O estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional por conta da covid entrou em vigor em fevereiro de 2020, poucos dias depois de a OMS declarar emergência internacional de saúde pública (Radis 210). Foi essa norma que possibilitou, por exemplo, o registro emergencial de vacinas, a obrigatoriedade das máscaras e a compra de insumos médicos sem licitação.

Em entrevista à Radis, Ethel Maciel apontou que a revogação da emergência sanitária por conta da covid-19 no Brasil representa uma dificuldade, principalmente para estados e municípios, porque não há um prazo de transição para adequação das ações, como a contratação de serviços e de pessoal. A decisão adotada pelo Ministério, sem critérios claros, pode provocar desassistência no SUS. “Serviços serão descontinuados. Profissionais que estão contratados via decreto terão seus contratos finalizados e isso vai ser bastante prejudicial para a população”, avalia.

Apesar de uma série de críticas por parte de especialistas, a revogação foi confirmada em 22 de abril, quando o governo publicou portaria determinando o fim da Espin em um prazo de 30 dias. O Ministério da Saúde calcula que mais de 2 mil normas devem deixar de valer em todo o país, esvaziando a autonomia dos gestores locais. Entre elas, está a autorização de uso emergencial da Coronavac, que ainda não tem registro definitivo, a regulamentação da telemedicina e do teletrabalho, e o uso de máscaras.

“O que muda é essa questão de se restringir as liberdades individuais de um gestor local. Isso cria mais divergência do que uma situação efetiva de combate à situação pandêmica no Brasil”, analisou o próprio ministro, que ainda exaltou a “autonomia médica defendida pelo governo federal” — conceito que possibilitou a prescrição de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19 (Radis 226). De acordo com apuração da Folha de S.Paulo (17/4), Queiroga vinha sendo pressionado pelo Planalto a tomar tal atitude desde fevereiro, com a expectativa de reforçar uma versão de que o governo venceu a crise sanitária.

Começo, meio… e fim?

O que determina o fim de uma pandemia? No seminário da Fiocruz, Ethel resgatou estudo da Universidade Johns Hopkins destinado a gestores que estabelecia uma coordenação em quatro fases. A primeira estava baseada no distanciamento físico para diminuir a propagação da doença, preparar os sistemas de saúde e desenvolver insumos. A segunda, com o início de uma reabertura, deveria estar focada em testes diagnósticos e rastreamento de contatos próximos. Na fase três, de abertura de comércio e equipamentos de ensino, o foco deveria estar no rastreamento de casos antes que chegassem aos serviços de saúde. A última seria de preparação para um momento interpandêmico.

O problema, segundo ela, foi que o Brasil parou na primeira fase: “Polarizamos a discussão entre ‘fica em casa ou abre para salvar a economia’, sem direcionamento federal, e em vez de testarmos, testarmos, testarmos, investimos na alta complexidade via abertura de leitos”. Em conversa com a Radis, Ethel lembrou que houve um movimento internacional desde o início da pandemia, liberado pelo então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de enfraquecimento da OMS — o que fez com que as ações coordenadas e articuladas fossem sendo minadas intencionalmente. “Dentro do Brasil, isso foi um pouco pior, porque com o negacionismo científico como a espinha dorsal desse governo, nós não tivemos estratégias de controle”, disse.

A epidemiologista ressaltou que a revogação do decreto demanda necessariamente a preparação de um plano de transição com ações concretas sob coordenação nacional, com a transformação de recursos extraordinários em recursos ordinários, incorporados na vigilância em saúde e na assistência. Também exige que o SUS incorpore medicamentos efetivos contra a covid já autorizados por agências de saúde de outros países, que haja protocolos de atendimento para todos os níveis de atenção, que campanhas comuniquem sobre a importância das doses de reforço, que laboratórios sejam reforçados e serviços sejam implantados para o atendimento das sequelas da covid, a chamada covid longa ou a síndrome pós-covid.

Divergência com a OMS

O médico sanitarista Eduardo Hage, pesquisador da Fiocruz Brasília, lembrou que a OMS determinou, em 13 de abril, que a covid-19 continue a constituir uma emergência de saúde pública de importância internacional, mesmo o mundo tendo registrado naquele mês o menor número de mortes pela doença em dois anos. A decisão seguiu o parecer do comitê de emergências da organização, que destacou que o Sars-CoV-2 continua a ter uma evolução “imprevisível, agravada por sua ampla circulação e intensa transmissão em humanos” e em outras espécies, e a causar “altos níveis de morbidade e mortalidade, particularmente entre populações vulneráveis”.

“A OMS considerou que este novo patógeno respiratório ainda não estabeleceu seu nicho ecológico, o que abre a possibilidade de continuar mudando, como aconteceu com o Mers-CoV, outro tipo de coronavírus que causou uma emergência no Oriente Médio e em países da Ásia e ainda persiste com casos”, explicou Hage, durante o seminário na Fiocruz. Soma-se a isso a circulação generalizada do vírus, a transmissão intensa e a persistência de níveis elevados de morbidade e mortalidade comparados a de outras doenças transmissíveis.

O comitê da OMS ainda alertou que o uso inapropriado de antivirais pode fazer emergir variantes resistentes da covid-19. O órgão demonstrou preocupação com o fato de que alguns países membros já começaram a relaxar medidas de proteção e a reduzir testagem, impactando a capacidade global de monitoramento da evolução do vírus. Levantamento da Fundação para Novos Diagnósticos Inovadores (FIND, na sigla em inglês), centro colaborador da OMS para a promoção de diagnóstico, indica queda de 70% a 90% na testagem no mundo.

Reino Unido, Dinamarca, França e Espanha são países que já flexibilizaram medidas de proteção contra a covid — desobrigaram o uso de máscaras e o isolamento de pessoas infectadas, por exemplo. Em alguns, como na Áustria, o governo precisou voltar atrás do relaxamento, após novo pico de casos. No lugar do relaxamento, a OMS recomendou fortalecer as respostas nacionais, com a atualização dos planos de preparação e resposta, o que inclui redução de riscos em eventos de massa e intensificar as medidas não farmacológicas (uso de máscara, isolamento de pessoas infectadas) se houver agravamento da situação epidemiológica.

Entenda: fim ou não da pandemia?

Na prática, a caneta do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, ao assinar a portaria que declarou o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), não tem o poder de acabar com uma pandemia. O alerta de pandemia cabe à Organização Mundial da Saúde (OMS) e continua mantido. Segundo a organização, pandemia é a disseminação mundial de uma doença — o termo é adotado quando uma epidemia ou surto que afeta uma região se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa, assim como a covid-19 atualmente.

A portaria nº 913, publicada pelo Ministério da Saúde em 22 de abril de 2022, encerrou a emergência sanitária relacionada ao novo coronavírus em território nacional. O texto afirma ainda que o Ministério vai orientar estados e municípios sobre “a continuidade das ações que compõem o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus, com base na constante avaliação técnica dos possíveis riscos à saúde pública brasileira e das necessárias ações para seu enfrentamento”.

Sanitaristas se opõem

Entidades e movimentos organizados da sociedade civil historicamente ligados à saúde pública se manifestaram contra o fim da emergência, argumentando que a medida não está respaldada pelo cenário epidemiológico. “Representa mais uma ação do governo federal contra o povo brasileiro”, diz texto assinado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMP), Associação Rede Unida e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), entre outras.

Segundo esse grupo, o fim da emergência sanitária significa acabar com a tramitação para aprovação em caráter de urgência de insumos como vacinas e medicamentos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ainda em um cenário de cobertura vacinal não homogênea no país. A decisão também pode induzir, na opinião desses sanitaristas, à interrupção intempestiva do uso de máscaras em locais fechados e ambientes com aglomeração, à não vacinação em crianças, à permanência de populações incompletamente vacinadas — todas medidas que favoreceriam o surgimento de novas variantes ou os repiques de novos casos.

Secretários de Saúde pedem mais prazo

Em carta pública conjunta a Queiroga, os presidentes do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Wilames Freire Bezerra, e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Nésio Fernandes de Medeiros Junior, se disseram preocupados com o “impacto de um encerramento abrupto”, reforçando que há considerável número de normativas municipais e estaduais respaldadas na declaração de emergência publicada pelo Ministério da Saúde, assim como há diretrizes do próprio governo federal que impactam estados e municípios também vinculados à vigência da Espin.

Na avaliação de ambos, há risco de desassistência à população. Por isso, pediram que a revogação da portaria estabelecesse prazo de 90 dias e que fosse acompanhada de medidas de transição pactuadas, focadas na mobilização pela vacinação e na elaboração de um plano de retomada capaz de definir indicadores e estratégias de controle com vigilância integrada das síndromes respiratórias.

Eles ressaltaram que a ampliação da vigilância em saúde e dos serviços assistenciais, sobretudo com a ampliação de leitos, levou à contratação temporária de um grande contingente de profissionais, que agora precisariam ser remanejados em curto espaço de tempo. “Importa destacar também que a pandemia de covid-19, não obstante seu arrefecimento, ainda não acabou”, destacaram. “Desse modo, é necessária a manutenção das ações de serviços de saúde, sobretudo as da atenção primária, responsáveis pela vacinação e pela capacidade laboral dos leitos hospitalares ampliados”. À imprensa, Queiroga respondeu que não via “muita dificuldade para que secretarias estaduais e municipais se adequem ao que já existe na prática”.

Raphael Guimarães, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), lembrou que foi justamente a falta de uma coordenação nacional que forçou estados e municípios a adotarem estratégias de combate à covid que, por um lado, refletiam seus cenários específicos, mas, por outro, gerou uma miríade de problemas que culminou na politização da pandemia. “No fosso que a politização cria, acontecem rupturas na forma de entender a saúde pública, colocando-a em um campo distinto e muitas vezes competitivo em relação à economia e deixando de lado a tarefa central da política pública de reduzir iniquidades”, avaliou, também durante o seminário promovido pelo Observatório Covid-19 da Fiocruz.

O risco do negglicenciamento

No atual cenário epidemiológico, seria possível falar em extinção da covid-19? Para Daniel Vilela, coordenador do Programa de Computação Científica (Procc) da Fiocruz, é mais provável haver uma extinção da onda de casos: “É difícil acreditar na ausência de circulação do vírus, dada sua transmissibilidade e seus aspectos evolutivos”. No caso das síndromes respiratórias agudas graves, observa-se um padrão sazonal esperado, com quedas e altas regulares.

Vilela recomendou evitar o clima de fim da pandemia, que poderia enfraquecer as medidas de controle da covid e transformá-la em uma doença negligenciada. O risco seria repetir com a síndrome pós-covid e a covid longa o que aconteceu com a zika, em que famílias afetadas tiveram o cuidado restringido após o fim daquela epidemia.

Mais do que estimar quando será possível decretar o fim da pandemia de fato, é preciso refletir sobre quais aprendizados o mundo levará dessa crise sanitária internacional, observou a presidente da Fundação Oswaldo Cruz, a cientista social e socióloga Nísia Trindade Lima. Ela apontou indícios: a necessidade de investimento permanente em ciência, tecnologia e inovação, fundamental para o rápido desenvolvimento de vacinas contra a covid. “Foi uma resposta rápida, mas que não veio do nada; veio de uma base, de investimentos anteriores”, pontuou, durante o seminário. Nísia também indicou a necessidade de descentralização dos centros de produção no mundo, o fortalecimento dos sistemas de saúde e de proteção social e o reforço do multilateralismo. (B.D)

Pandemia em transição

“A pandemia não acabou e seus riscos continuam presentes, de modo que a transição para as próximas fases deve vir acompanhada de planos e planejamento de curto, médio e longo prazos”, afirma o Boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz (29/4). O documento, que analisa o cenário brasileiro até o final de abril, indica que a pandemia de covid-19 continua em fase de transição, com a manutenção da tendência de queda dos principais indicadores — casos, internações e mortes, graças aos avanços na vacinação.

Segundo o boletim, 83% da população brasileira recebeu a primeira dose da vacina, 76,8% encontra-se com o esquema vacinal completo e 40,4% com a dose de reforço/terceira dose. Porém, a desigualdade na vacinação ainda preocupa. O Observatório Covid-19 Fiocruz recomenda políticas e ações para a ampliação da vacinação nos estados e municípios que apresentam menor cobertura, como campanhas estimulando a vacinação nos diversos meios de comunicação. Também adverte sobre a necessidade do “passaporte vacinal” em prédios públicos e locais de trabalho, além do uso de máscaras de proteção individual em determinadas condições, como aglomerações em ambientes pouco ventilados, como transporte público, e também para pessoas vulneráveis ou com sintomas de síndrome gripal.

https://radis.ensp.fiocruz.br
Sem comentários
Comentários para: Seria o fim da pandemia?

Seu endereço de e-mail não será divulgado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Leia também

Próximo

Radis Digital

Leia, curta, favorite e compartilhe as matérias de Radis de onde você estiver
Cadastre-se

Revista Impressa

Área de novos cadastros e acesso aos assinantes da Revista Radis Impressa
Assine grátis