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Para que os fatos ocorridos não fiquem no passado, movimentos de parentes de vítimas da covid-19 buscam resgatar vivências e histórias por meio de testemunhos dos que ficaram. As vítimas são lembradas em lugares de memória erguidos em todo o país. São espaços que podem levar ao reconhecimento do trauma, servir como instrumentos para uma cultura de paz e respeito e atuar como locais de prevenção para evitar práticas semelhantes no futuro. 

No Rio de Janeiro, um painel de azulejos com 18 metros de largura e quase 10 metros de altura homenageia as vítimas da covid-19 na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré. O mural está situado na rua Bittencourt Sampaio, próximo ao Centro de Artes da Maré. Após a identificação dos nomes, houve uma oficina para a produção dos azulejos, coordenada pela artista plástica Laura Taves, que há 20 anos atua na região. Foi nessa oficina que os familiares recontaram e reviveram histórias de vida de seus familiares.

Para chegar aos nomes que ilustram esse mural de memórias afetivas, a Redes da Maré, responsável pelo projeto, identificou as vítimas de covid pelas equipes sociais de programas que atuam nas comunidades e a partir do acolhimento e atendimento psicossocial aos familiares. Os 74 nomes que estampam os azulejos do mural inaugurado em novembro de 2021 homenageiam e dão significado à vida de pelo menos 400 desses moradores de uma das 16 favelas da região que morreram devido à covid-19. 

Entre os nomes está o de Neusa Muniz, paraibana de 78 anos que fincou raízes no Complexo. Ela morreu de covid-19 em 11 de junho de 2020, depois de ficar 42 dias internada. Seu azulejo foi pintado pela neta Laíza Diniz e o bisneto Nicholas. Neusa é lembrada por eles como “uma pessoa de luz e bondosa”. “Não gostava de brigas e mentiras. Com isso, sempre se mostrava acolhedora. Em sua casa, nunca faltavam frutas e não entrava ou saía alguém de lá sem comer. Por ter passado fome, reunir a família para comer era a forma que demonstrava seus afetos”, diz o texto que testemunha parte de sua vida.

Clínica do testemunho

Por trás de cada azulejo, há uma história contada por filhos, netos, sobrinhos, vizinhos ou amigos. “É quase como uma clínica do testemunho [projeto da Comissão de Anistia aos afetados e torturados pela ditadura civil-militar no Brasil]. Isso ajuda a processar esse acontecimento brutal”, diz Vanessa Lima, psicóloga do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça (DSPJ) da Redes da Maré. 

Ela também diz que o memorial resguarda o direito à memória individual e coletiva. Segundo Vanessa, é imprescindível não esquecer essas vidas. “A memória é importante não só para a gente olhar para o passado, mas também para o futuro”, salienta. Patricia Ramalho Gonçalves, assistente social e coordenadora de projetos nos eixos DSPJ e Direito à Saúde, registra que é importante marcar como a pandemia ocorreu na Maré. “Mais uma vez as pessoas faveladas, pretas e pobres foram muito afetadas. É sempre para elas que as políticas não chegam de forma mais eficaz”, aponta.

O número de vítimas na Maré é subnotificado, afirma Patrícia. “No início da doença, além de tudo o que sofreram, havia o estigma e houve pessoas que não quiseram participar desse projeto e revelar que seus familiares tinham morrido de covid”, afirma. Ela conta que, durante a pandemia, a Redes da Maré também atuou com parceiros como a Fiocruz e a Prefeitura do Rio para a distribuição de alimentos e kits de higiene com álcool e sabonete, além de participar da campanha de vacinação em massa contra a covid-19.

[Conheça outros lugares de memória da covid e leia mais sobre a importância de preservar a história da pandemia no site de Radis]

Lugares de memória

Em São Paulo, a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil) instalou um painel na Avenida Paulista, de mais de 20 metros, com corações pintados em homenagem às vítimas da pandemia. “Decidimos não ficar parados assistindo ao Estado brasileiro contribuir com o adoecimento e morte de nosso povo pela covid-19”, disse a entidade na data da instalação, em outubro de 2022. 

Em Brasília, o Senado Federal inaugurou, em 15 de fevereiro de 2022, o Memorial às Vítimas da Covid-19 no Brasil. A instalação tem 27 prismas de mármore, representando as unidades da Federação. Os prismas são iluminados e simbolizam velas em honra às vítimas da doença no Brasil.

No final de julho, a ministra Nísia Trindade anunciou que o Governo Federal vai instalar um memorial no Centro Cultural do Ministério da Saúde, no Rio, para que a covid-19 e a conduta desastrosa do governo anterior em relação à pandemia não sejam esquecidas — e assim lembrar, segundo ela, não só da pandemia, mas da forma como o Brasil a abordou. “A política de governo absolutamente desastrosa que nos levou a 700 mil vidas perdidas não pode ser esquecida”, disse. 

Rosângela Dornelles, presidente da Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 Vida e Justiça, disse à Radis que será fundamental o envolvimento direto das pessoas afetadas e de seus parentes nesse processo de construção do memorial público. “É preciso buscar o engajamento das associações de vítimas e familiares que lutam pela responsabilização, memória e justiça”, afirmou. Segundo ela, o Ministério da Saúde tem ouvido as entidades e está “tentando construir conjuntamente uma caminhada”. 

Na internet, fotografias, textos e vídeos fazem parte do projeto #MemóriasCovid19 [Link: https://memoriascovid19.unicamp.br/], realizado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e lançado em maio de 2020. No site, são compartilhados relatos escritos, fotografias, desenhos, cartas, áudios, canções e vídeos sobre experiências pessoais formando um retrato sensível da vida na pandemia.

O site Inumeráveis [https://inumeraveis.com.br/] é um memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do novo coronavírus no Brasil com resumos que resgatam a humanidade dos mortos. A iniciativa surgiu em 2020 e, à época, deu identidade e alma para além de estatísticas. “Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa. E não há como acolher gente em prosa sem acolher suas histórias e seus amores”, como descrevem posts no Instagram do projeto.

Cultura do esquecimento

Os memoriais e as homenagens são importantes para lembrar, mas não suficientes para evitar uma nova tragédia. Pesquisadores afirmam que, no futuro, os dias intermináveis da pandemia vão se fundir em episódios mais curtos, em um evento mais uniforme, cujos detalhes serão difíceis de lembrar. “A maneira como a sociedade decidir rememorar a pandemia provavelmente afetará se e como ela vai viver na memória coletiva de nossa sociedade e o que as gerações futuras vão aprender com nossas experiências”, disse Dorthe Berntsen, professora de psicologia especializada em memória autobiográfica na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, em matéria publicada no Estadão (15/3).

Para Wilson Couto Borges, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), a construção da memória da pandemia ainda está em disputa. Segundo ele, é preciso esclarecer a verdade sobre o que ocorreu, as consequências e as responsabilidades dos municípios, dos estados e da União. O pesquisador entende que os crimes devem ser punidos e deve ocorrer reparação para as vítimas. Só assim, acredita, essa memória se tornará coletiva, comunitária e nacional. 

Ele avalia que a responsabilidade da sociedade brasileira sobre a memória da pandemia tem que estar à altura da tragédia pela qual o Brasil passou. “É preciso assegurar o compartilhamento dos sofrimentos e das memórias em contextos protegidos e acolhedores, abrindo a possibilidade de curar feridas pela identificação de solidariedades e pelo desfazimento dos nós das dores. Isso deve acontecer para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, observa.  

Wilson lembra ainda que o Brasil criou impasses por meio do esquecimento. “Como se não falar, não julgar, não elaborar, pudesse nos garantir alguma forma de paz. Foi assim em vários momentos da história, criando uma verdadeira compulsão de repetição”. O professor lembra que as violências coloniais nunca foram objeto de elaboração; já os crimes da ditadura militar foram calados por meio da anistia. “Longe de ter sido resultado de algum ‘acordo nacional’, a anistia foi fruto de uma imposição dos próprios militares e da conveniência de seus aliados civis. Este é um país de silêncio”, sentencia. 

O pesquisador observa ainda que o silêncio custa caro ao presente e ao futuro do país. “Um país que ignora a força histórica da justiça e da reparação condena-se a estar sempre acorrentado ao seu próprio passado. Ele não pode nunca ver o passado passar, porque aqui não há luto, não há dolo, não há responsabilização”. Wilson entende que as mortes na pandemia resultaram da “negligência criminosa e indiferença atroz”. “O que ocorreu entre nós foi um crime de Estado e deve ser tratado como tal. Por isso, chamamos todes à luta pela instalação de um Tribunal Popular que tem como função forçar o debate público e a ação do governo [federal]”. 

Luto inacabado

Nesse contexto, a construção da memória da covid-19 tira os mortos da invisibilidade e ajuda os sobreviventes a processarem o luto, que ainda é vivo e presente. Por medo ou excesso de responsabilidade, o carioca Wilson Cotrim de Carvalho pensou na família, no fato de que não poderia adoecer, e evitou contato com a mãe e seus dois irmãos infectados por covid-19. 

Houve conversas por telefone e WhatsApp com os familiares e, hoje, o designer carrega a culpa por ter estado fisicamente distante de seus familiares, que morreram de covid-19, em abril de 2021. “Em termos práticos, eu nada poderia fazer, mas em termos emocionais eu ficaria mais tranquilo. A gente sempre alimenta a possibilidade de que a pessoa vai sair dessa”, contou em entrevista à Radis (249).

O que Wilson Cotrim viveu é também partilhado por milhares de brasileiros que perderam familiares e amigos para a covid-19. Isso porque as medidas adotadas para controlar a propagação do vírus transformaram a experiência de perda, desencadeando mudanças e afetando negativamente o processo de luto na pandemia. 

Artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, em fevereiro de 2023, mostrou que o luto pandêmico é solitário e inacabado. Mortes inesperadas, regras de distanciamento social e restrições de visitantes em unidades de saúde, como aconteceu na pandemia, representam o fardo que Wilson relata e aumentam o risco de luto persistente.

Em uma revisão sistemática da literatura, os autores ligados à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), observaram que o processo de adoecimento e morte durante a pandemia pode ser compreendido a partir de dois momentos distintos, antes e depois da morte, que são permeados pelo sofrimento decorrente de situações de abandono e isolamento. 

Ressentimento e culpa 

Muitas famílias não conseguiram se despedir dos seus mortos já que as medidas de contenção do vírus impediram a realização do ritual fúnebre. Como os ritos fazem da morte um caminho menos aflitivo, a forma de morrer na pandemia acarretou mais desgaste mental e psicológico aos que já tinham passado por uma experiência de dor e solidão.

A psicóloga Maria Helena Franco disse, em entrevista à Radis (214), que a covid trazia uma nova experiência do luto, com contornos próprios e uma forte “reação do sobrevivente”. “Na covid, esse questionamento está muito presente. Se ele adoeceu por uma falha e foi uma falha minha, eu vivo esse ressentimento”.

O luto de Lucynier Omena já dura dois anos. Tiago, seu filho, morreu em 2 de abril de 2021 depois de 25 dias de internação. De lá para cá, a vida de Lucynier não foi a mesma. Em casa, ela mantém o quarto de Tiago do mesmo jeito que ele deixou. “É um sofrimento horrível voltar para casa e saber que eu não vou encontrar meu filho”, disse à Radis (249).

Leia também:
Crime e Reparação
https://radis.ensp.fiocruz.br/reportagem/covid-19/crime-e-reparacao/

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