“Quando a guerra terminar / Vou levar você a um restaurante luxuoso / Sem ter medo da morte/ E vou lhe comprar um café / Vou cantar diante do mar / Pra você esquecer o que aconteceu esta noite. / Agora sob o bombardeio / Nós seremos heróis, / Mas quando a guerra terminar / vou convidar você para dançar / (…) / Uma semana e tudo vai acabar / Vamos ficar bem… / O mundo vai abrir o jornal / E vir correndo nos socorrer. / (…) / A guerra é dura, mas me leva a amar mais ainda. / Vamos brindar a estes tempos / E o mundo será testemunha /De que estávamos juntos sob o bombardeio.”
Na noite nublada de sexta-feira, 18 de outubro de 2024, num sebo de livros e discos no bairro carioca de Botafogo, cerca de 50 pessoas atenderam ao convite de ativistas do coletivo Árabes e Judeus pela Paz para ouvir poesia palestina como o texto acima, “Esperando por você”, de Ahmad Assunq.
Nos últimos doze meses, cerca de 75 mil toneladas de bombas foram lançadas por Israel sobre Gaza, uma carga cinco vezes maior que a da bomba nuclear atirada pelos EUA sobre Hiroshima. Mas ao contrário do que deseja o poema de Assunq, o mundo ainda não correu em socorro do povo que hoje está sendo cruelmente dizimado.
A reportagem de Glauber Tiburtino e Jesuan Xavier atualiza os números da catástrofe, detalha o quadro sanitário no território, trata do direito dos palestinos ao seu território originário, à liberdade e à autodeterminação, aborda os interesses da guerra, a coragem dos jornalistas locais e a leniência e cumplicidade da mídia.
O balanço da tragédia sanitária em Gaza aponta a destruição das unidades de saúde e a ausência de equipamentos, anestésicos e medicamentos para realizar adequadamente cirurgias e outros cuidados. Mais de 300 mil pessoas abandonaram tratamentos. Novas doenças atingem mais de 600 mil e são uma calamidade em meio ao desabrigo, aglomeração e falta de saneamento. A poliomielite, erradicada, voltou à região. Há mais de 60 mil mulheres sem acompanhamento pré-natal e outras 64 mil subnutridas demais para amamentar. A Organização Mundial da Saúde relata que 96% da população está sob elevada insegurança alimentar, agravada pelo bloqueio à ajuda humanitária.
O ex-presidente da Fiocruz e atual coordenador do Centro de Relações Internacionais da instituição, Paulo Buss, afirma em entrevista à Radis que o massacre em curso contra os palestinos não deve ser relativizado. “No século 21, nunca houve no mesmo território, em uma área tão concentrada, um número tão grande de civis mortos em tão curto espaço de tempo”.
“Há um genocídio em curso”, afirma à Radis o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah. “Trata-se de uma guerra colonial de décadas que visa ao extermínio da população palestina (…) busca eliminar ao menos algumas centenas de milhares imediatamente e impedir sua capacidade reprodutiva e de continuidade com a morte de mulheres e crianças”.
Até o início de outubro, estimava-se mais de 50 mil pessoas mortas, 96 mil feridas, a maioria mulheres e crianças, e mais de 2 milhões de pessoas desalojadas. Em seus perfis das redes sociais, os próprios soldados israelenses divulgam vídeos que comprovam os crimes de guerra e contra a humanidade que organizações internacionais e diversos países denunciam à ONU: destruição sistemática de residências e infraestrutura urbanas, reservatórios de água, igrejas e mesquitas, escolas e universidades, hospitais e ambulâncias, assim como o assassinato de civis e profissionais de saúde e da imprensa. Nos vídeos dos militares é possível constatar execuções aleatórias e o sequestro e aprisionamento de palestinos, incluindo jovens e crianças, mantidos em cárceres subumanos e sob tortura.
Em 13 de outubro, o exército de Israel perpetrou mais um violento ataque a famílias e pacientes abrigados sob tendas ao redor de um hospital, no norte de Gaza. Nas redes sociais, as imagens de crianças, jovens e mulheres se movendo desesperados com os corpos em chamas assombraram o mundo. O médico e psicoterapeuta húngaro-canadense, Gabor Maté, de origem judaica e sobrevivente do Holocausto da Segunda Guerra, comparou os vídeos do genocídio em Gaza a “assistir Auschwitz no TikTok”.
“Se tivéssemos YouTube, Instagram ou TikTok na época de Auschwitz, é isso que teríamos visto: pessoas queimadas vivas. É muito mais do que horrível e incompreensível”, refletiu o autor de estudos sobre saúde da família, traumas infantis, compulsão e saúde mental. “Pensávamos que acabaria a certo momento. Na verdade, é exatamente o contrário. Quando pessoas como essas são empoderadas, encorajadas, avalizadas e apoiadas em cometer seus horrores, tornam-se mais extremas, mais cruéis, mais implacáveis e sem piedade. Os nazistas não começaram já com as câmaras de gás.”
Na noite de 18 de outubro, sob o mesmo céu que envolve todo o planeta e com uma lua cheia encoberta pela fina chuva que caía sobre o Rio de Janeiro, pessoas de origem árabe, judia e brasileira solidárias à libertação da Palestina seguiam ouvindo a poesia do renomado escritor Khaled Juma, nascido em Rafah e criado em um campo de refugiados:
“Oh crianças malcriadas de Gaza. / Vocês que me perturbavam o tempo todo com seus gritos debaixo da minha janela. / Vocês que quebraram meu vaso e roubaram a flor solitária em minha varanda. / Voltem, e gritem o quanto quiserem e quebrem todos os vasos. / Voltem. / Apenas voltem.”
■ Rogério Lannes Rocha, coordenador e editor-chefe do Programa Radis
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