Respeito, cuidado, escuta, diálogo nas visitas e consultas, interesse genuíno, confiança e vínculo são algumas das palavras que expressam a essência do trabalho das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), que se consolidou nos últimos 30 anos como um modelo estruturante e o coração da atenção básica, a face do SUS mais próxima do cotidiano da população.
Esta edição especial sobre a Estratégia Saúde da Família envolveu toda a equipe da redação. Fizemos reportagens em centros de saúde e nos territórios, ouvindo os trabalhadores e trabalhadoras da ESF e as pessoas atendidas. Acompanhamos eventos profissionais e acadêmicos que discutiram ESF, atenção primária e enfermagem de família e comunidade. Entrevistamos pesquisadores e sanitaristas sobre essa construção singular do SUS.
Como descreve o editor Luiz Felipe Stevanim na abertura da matéria de capa, “ao longo de três décadas, o modelo expandiu a presença do SUS no território brasileiro, tornou-se referência internacional na redução da mortalidade infantil e materna, ajudou a ampliar a cobertura vacinal, sobreviveu às tentativas de desmonte e continua sendo o principal contato da maioria da população com serviços de saúde”.
Dados apresentados no Seminário “30 anos da ESF no SUS: Efeitos no acesso e na saúde da população”, promovido pela Abrasco, atestam que o trabalho das equipes da Estratégia Saúde da Família contribuiu também para a diminuição da ocorrência de desnutrição e diarreia, a redução das internações por doenças crônicas e o aumento da realização de ações de saúde, como atividades educativas, consultas e visitas. Contribuiu ainda para a redução das mortes por aids e tuberculose e das taxas de mortalidade precoce por acidente vascular encefálico, além de favorecer a proteção dos idosos contra a morte por causas evitáveis. Levou o SUS e os serviços de saúde a municípios remotos e reduziu as desigualdades em saúde.
Matérias publicadas pelo Programa Radis na década de 1990 registraram o surgimento dos Programas de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e de Saúde da Família (PSF). Na década de 2000, testemunhamos o fortalecimento e a grande expansão da Estratégia. Durante os governos Temer e Bolsonaro, reportamos o desinvestimento na atenção básica e a desfiguração da saúde da família, além da redução do financiamento do SUS ao impor um “congelamento de gastos”.
Nos dois últimos anos, a ESF foi revigorada, aumentando de 45 mil para 52 mil equipes, que dão cobertura a 70% da população brasileira. As equipes multiprofissionais voltaram a ter como referência de composição com 1 médico, 1 enfermeiro, 1 auxiliar ou técnico, de 4 a 6 agentes e com a possibilidade de acréscimo de profissionais de saúde bucal. Só o contingente de agentes comunitários de saúde representa hoje um total de 280 mil trabalhadores em todos os municípios do país.
Por outro lado, entidades da saúde coletiva e movimentos sociais veem com preocupação os riscos às políticas sociais representados pela atual política econômica do governo e são contrários à alteração da Constituição para flexibilizar os patamares de financiamento das áreas da saúde e educação, proposta vista como uma grande ameaça ao SUS, como argumenta o artigo na seção Pós-Tudo desta edição. Outros problemas e desafios da saúde da família, da atenção básica e do SUS são discutidos na matéria principal.
Os depoimentos dos trabalhadores e trabalhadoras realmente comprometidos com a população nas consultas, visitas às casas e territórios são o cerne da narrativa que perpassa o conjunto de reportagens e entrevistas presentes nesta edição. O leitor vai se emocionar ao acompanhar conosco o cotidiano e as histórias de agentes de saúde, enfermeiros e médicos. A interação com as pessoas é permeada de uma delicadeza e uma intimidade transformadoras.
É preciso ter uma boa formação profissional para atuar nas equipes. Mas a saúde da família é uma nova escola. Residentes em medicina de família e comunidade têm em campo uma formação ímpar em humanização da saúde, uma “medicina da escuta”, como sintetiza o título da matéria que descreve em detalhes uma manhã de visitas domiciliares. Os mais experientes também aprendem nessas interações.
Ao responder a uma mesma pergunta — com que palavra resumiria a saúde da família — cada entrevistado se expressou de modo diferente, embora convergente, ampliando o repertório de sentidos que abre e agora encerra este editorial. São palavras que nos convidam a ler a cobertura jornalística e compreender melhor a realidade e o universo de sentidos que envolvem a Estratégia de Saúde da Família: “Encontro”, “Presença”, “Sonhação”, “Potência”, “Pertencimento”, “Vitalidade”, “Direito”, “Base do SUS”, “Conquista”, “Cuidado”, “Sociedade”, “Vida”, “Acolhimento”, “Vínculo verdadeiro comprometido com a saúde da população”.
■ Rogério Lannes Rocha, coordenador e editor-chefe do Programa Radis
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