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Em dezembro de 2021, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) propôs uma nota técnica que inclui a eletroconvulsoterapia (ECT) como tratamento da agressividade no transtorno do espectro autista, o que provocou reação de diversas instituições e grupos da sociedade civil organizada.

Marcia Baratto, doutora em ciência política pela Unicamp, especialista em direitos humanos e coordenadora geral da Rede Europeia de Apoio às Vítimas Brasileiras de Violência Doméstica (Revibra), vê o encaminhamento da pauta da ECT com preocupação, especialmente quanto à rigidez com que o direito regula aquilo que a justiça considera ou não desumano. Ela alerta que hoje vale, infelizmente, o entendimento de que se o paciente foi avisado dos efeitos colaterais e consentiu, não é tratamento desumano, nem tortura.

A exata natureza do consentimento precisa ser amplamente debatida, se realmente queremos intervenções em saúde alinhadas a princípios éticos. É o que mostra um dos casos mais emblemáticos de uso da ECT, retratado no filme “Um estranho no ninho”, com Jack Nicholson, em que a paciente foi submetida a 21 sessões em um ano — “quase o dobro do recomendado”, conforme matéria do Mail Online, em julho de 2020.

Em uma das internações psiquiátricas pelas quais passei, conheci a psicóloga Valéria (nome fictício), uma mulher com diagnóstico de depressão maior. Ela contou que, em 2019, numa clínica de elite de uma das maiores capitais do país, foi submetida a 21 sessões de ECT, no período de três meses. As sessões, que ela aceitou fazer “por puro desespero”, ocorriam sob monitorização cardíaca e respiratória, em uma sala com o médico responsável, uma médica anestesista, um auxiliar de enfermagem e a mãe da paciente. Em dado momento, o médico responsável disse que ela deveria ser acompanhada por um profissional “que entendesse de ECT”, já que o psiquiatra dela supostamente não entendia.

Valéria amarga terríveis efeitos colaterais. Cita problemas cognitivos em esferas como atenção, percepção e memória, chegando a passar meses sem conseguir manter o foco ou um raciocínio coerente ao conversar. É recorrente que não consiga se lembrar de pessoas e acontecimentos importantes de períodos muito anteriores à ECT: “sinto como se parte de minha vida — e de mim mesma, portanto — tivesse sido retirada”. A questão, entretanto, não tem sido vista de forma humanizada. Marcia Baratto diz que, infelizmente, são raras as vezes em que a perda parcial de memória é classificada como “efeito severo” da ECT.

A interrupção das sessões, no caso de Valéria, deu-se a pedido da própria paciente, já que o médico queria continuar. Ela conta que se ressente por não terem oferecido o tratamento fitoterápico com Cannabis antes de passar por 21 sessões de eletrochoque até que ela mesma — “quem menos tinha condição de decidir algo nessa história” — desse um basta. Ela teve muitos prejuízos cognitivos e não concorda com a imposição dessa abordagem sobre ninguém.

Se uma mulher adulta e formada em psicologia não se sentia apta a decidir sobre a ECT em seu momento de sofrimento, o que dizer de pessoas autistas e suas famílias, muitas vezes abandonadas à própria sorte, dada a generalizada falta de suporte e políticas públicas para pessoas com deficiência?

Quando se trata, sobretudo, de autistas não oralizados e sem acesso à comunicação alternativa, a questão do consentimento requer um olhar ainda mais criterioso e não pode ser delegada à família ou aos responsáveis antes de uma análise do que é realmente consentir, quais os verdadeiros riscos de uma intervenção e qual o limite recomendado. Muito menos antes que se esgotem opções de intervenção não invasivas e não controversas, como a integração sensorial e as adaptações ambientais, por exemplo.

Em mais uma ação de desmonte da Reforma Psiquiátrica empreendida pelo atual governo, há risco flagrante de violação dos direitos humanos dos autistas, tendo em vista principalmente a peculiaridade do consentimento quando há barreiras de comunicação, nos termos da Lei Brasileira de Inclusão. Além disso, ao nos excluir da formulação de suas recomendações, a Conitec viola a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Não fosse o bastante, a nota técnica sequer menciona o consentimento, configurando-se como violência do Estado contra pessoas que deveriam ser protegidas por políticas públicas alinhadas aos direitos humanos, conforme nota da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça).

Não pode haver respeito aos direitos humanos sem a possibilidade do pleno consentimento. Se não sabemos o que é isso, devemos, em comunidade, descobrir.

* Mulher autista adulta, escritora, educadora e empreendedora
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