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Ivone Costa se apresenta e logo nota-se uma mulher de muitas faces: “Sou profissional de enfermagem, professora e pesquisadora em políticas públicas, mulher preta, quilombola e mãe de uma criança autista”. Ao detalhar suas credenciais, ela conta que além de enfermeira tem formação superior em Gestão da Vigilância e Saúde Pública, é mestra em Saúde Coletiva e doutoranda em Políticas Públicas. Tem 37 anos, preside a Associação TEA – Tecendo Redes para Neurodiversidade (Aterne), e é mãe da Vanessa e do Vinícius — um menino autista de 8 anos. 

Ivone Costa durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde. — Foto: acervo pessoal.
Ivone Costa durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde. — Foto: acervo pessoal.

Ivone atua nas causas do autismo e de outras deficiências, do movimento negro quilombola, da comunidade LGBTQIAPN+ e das mulheres. Materializa o conceito de interseccionalidade, que fala sobre as interações de opressões e discriminações na vida de grupos minorizados. Até estrear na etapa nacional, em Brasília, participou de algumas conferências livres no ciclo preparatório. À 17ª, chegou como delegada do município de Piraquara (PR), na Grande Curitiba, representando o segmento dos trabalhadores, pelo Conselho Regional de Enfermagem do Paraná (Coren-PR). 

Todas essas vozes e bandeiras de lutas foram apresentadas em sua fala na tribuna livre do último eixo de palestras da conferência, em 3 de julho. “Minhas principais reivindicações giram em torno do que chamo do ‘chão que eu piso’; há anos participando ativamente de movimentos sociais, pude perceber que ativismo sem impacto social não adianta”, disse à reportagem. 

Ivone espera que o SUS possa auxiliá-la no enfrentamento às desigualdades sociais e raciais: “Busco oportunidades para promover avanços no atendimento a pessoas autistas e suas famílias, melhoria da qualidade de vida da população negra, população LGBTQIAPN+, prevenção e combate à violência de gênero”.

Além disso, ela diz buscar valorização e inclusão dos profissionais de enfermagem e demais áreas da saúde nas discussões e tomada de decisões: “Basta ver a necessidade de ampliação da participação e representatividade desses profissionais nas formulações de políticas públicas do SUS”.

Ela define a Conferência Nacional de Saúde como um importante instrumento de mobilização social e participação popular na formulação de políticas públicas: “Essa participação aberta e democrática, envolvendo representantes de diversos setores da sociedade na definição de diretrizes e propostas, acredito ser extremamente positiva, promovendo o diálogo e o engajamento entre governo e sociedade”. Ela complementa afirmando que o evento também garante a transparência e a inclusão na formulação de políticas. 

A delegada reforçou a necessidade de prestação de contas e de monitoramento do impacto dessas decisões junto à sociedade, no pós-conferência. E apontou o caminho para o êxito dessa parceria entre povo e governo para a construção de políticas públicas mais democráticas, justas e efetivas: “É fundamental que a participação popular seja ampla e inclusiva, superando barreiras como falta de acesso à informação, desigualdades socioeconômicas e exclusão de minorias”.

Ivone diz o que anseia encontrar daqui a quatro anos, na 18ª: “Espero que o SUS avance em direção a uma saúde universal, equitativa e de qualidade para todos os brasileiros, incluindo o fortalecimento da atenção primária à saúde, a melhoria na qualidade do atendimento, a participação social, a promoção da saúde e a prevenção de doenças, a integração e regionalização dos serviços de saúde, além da busca pela sustentabilidade e eficiência na gestão dos recursos”.

Voz do quilombo

Ananias Nery Viana. — Foto: Glauber Tiburtino.
Ananias Nery Viana. — Foto: Glauber Tiburtino.

A 2,5 mil km de Piraquara fica o município de Cachoeira (BA), de onde saiu outro representante de um segmento importante da população brasileira. Segmento esse, em suas palavras, “esquecido e invisibilizado há cerca de 500 anos”. Trata-se do quilombola Ananias Viana, conselheiro estadual de saúde da Bahia. O ativista, que reside na comunidade Kaonge, 120 km distante de Salvador, foi à 17ª defender o reconhecimento dos saberes ancestrais de seu povo como proposta de um novo modelo de saúde e modo de fazer ciência. Além de reivindicar políticas de saúde específicas para as comunidades quilombolas. 

“O SUS chega para nós em nível municipal, mas outras políticas públicas não chegam nas comunidades quilombolas. O SUS que queremos, a saúde que queremos, é a saúde que respeite a nossa ciência, porque também sabemos fazer ciência. E o Estado brasileiro tem que reconhecer que essa ciência existe”, declarou.

O baiano orgulhou-se ao afirmar ser o primeiro quilombola a integrar o conselho de saúde do seu estado, e em seguida falou das lutas que envolvem a conquista desse espaço: “É muito difícil chegar aqui, ninguém quer saber de saúde quilombola e indígena. A gente tem que estar em luta o tempo todo para ser visto”, desabafou. 

Ananias tornou a envaidecer-se ao mencionar a Bahia como o estado precursor da Conferência Livre de Saúde Quilombola, culminando depois na 1ª Conferência Nacional Livre de Saúde Quilombola. A conferência temática reuniu mais de mil participantes, conseguindo eleger dez delegados para a etapa nacional da 17ª. Como já integrava a comitiva baiana, Ananias não ocupou uma dessas vagas, ampliando a participação quilombola no evento.

Sobre o modelo de saúde praticado em sua comunidade, destacou o “laboratório ao ar livre” e citou o êxito no enfrentamento à pandemia de covid-19 para enaltecer os saberes quilombolas e defender a medicina tradicional. Apesar do abandono por parte das autoridades, segundo ele, “nenhum quilombola [de sua comunidade] morreu por covid”. 

Ananias acredita e defende que cuidados de ordem religiosa devem ser compreendidos como medida terapêutica. Ele relatou uma experiência que tem implementado em seu território, com apoio da gestão municipal, ao disponibilizar uma sala de saúde na comunidade para orientação espiritual e serviço de psicologia. E explicou a estratégia de cuidado empregada: “Existem várias pessoas doentes em hospitais que não são doentes de hospital”.

Antes mesmo de serem finalizadas as votações, Ananias já destacava a importância de estarem ali, presentes, e serem vistos no maior evento de participação popular do país: “A participação da comunidade quilombola é um avanço. Nosso objetivo é dar visibilidade às comunidades. Mesmo que as propostas trazidas não sejam aprovadas, elas serão conhecidas e discutidas. E a gente precisa estar aqui”, declarou à reportagem. 

A conferência quilombola encaminhou 20 propostas e quatro diretrizes a Brasília. Todas aprovadas, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ao fim do encontro, em nova conversa com Radis, o conselheiro mostrou-se satisfeito com o resultado: “Apesar de algumas dificuldades e problemas, o encontro foi um grande avanço na defesa do SUS. Nossas propostas foram aceitas, inclusive aquelas que foram direcionadas a povos e comunidades tradicionais”, celebrou. “Agora, a nossa discussão não pode ficar só aqui [na conferência], ela tem que ir para as bases transformadas em políticas públicas”, complementou. 

Apesar do saldo positivo, uma peculiaridade chamou a atenção de Ananias no evento: “O que achei estranho foi a quantidade de propostas para beneficiar as empresas privadas. Mas, conseguimos derrubar todas na plenária final. O SUS é nosso!”, afirmou. E que continue sendo!

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