O que o Brasil aprendeu com os 21 anos de repressão política na ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985? O que mudou no modelo de saúde pública brasileira desde então? Que semelhanças podem ser percebidas entre o golpe de 64 e as ameaças recentes sofridas pela democracia?
Passadas seis décadas da intervenção militar, pairam ainda diversas questões. No marco de 60 anos do golpe, completados em 31 de março de 2024, Radis traz reflexões sobre os impactos desse período na saúde e na vida dos brasileiros.
Em 31 de março de 1964, teve início um processo que uniu elites, empresários, grupos conservadores e militares em um pacto golpista que desencadeou o período mais nebuloso e sangrento da história recente do país: a ditadura civil-militar (ou empresarial-militar, como defendem alguns historiadores). O golpe abriu o caminho para a ditadura, mas os dois fatos não devem ser confundidos, como ressalta o historiador Carlos Fico, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das principais referências no tema.
Em conferência realizada na aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS), da Fiocruz, em 15/3, o historiador relatou que setores da sociedade e alguns indivíduos que apoiaram o golpe contra o presidente João Goulart logo adiante voltaram-se contra o regime autoritário e de repressão política ao perceberem o que aquele ato representava. Conscientes ou não de suas contribuições às aspirações militares, fato é que o regime iniciado em 1964 deixou rastros de sangue e sequelas profundas no tecido social brasileiro.
“Ninguém supunha, imagino que inclusive os golpistas, que fosse haver uma ditadura de 21 anos, até porque o Ato Institucional que regulamentou o golpe [AI-1] mantinha as eleições presidenciais de 1965”, ponderou Fico, antes de citar Dom Paulo Evaristo Arns — um dos coordenadores do projeto Brasil Nunca Mais — e órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) como exemplos de apoiadores do golpe que mais tarde se opuseram à ditadura. “Muita gente apoiou o golpe nessa perspectiva autoritária brasileira típica: ‘Vamos tirar isso aí, deixa os militares darem um jeitinho e depois a gente volta’. Não voltaram e depois viraram oposição”.
Para discutir a trágica efeméride dos 60 anos, Radis convidou dois pesquisadores que atuam no campo da saúde coletiva para abordar os efeitos do golpe e da ditadura na saúde pública e no movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), que surgiu no período.
Conversamos com o médico sanitarista e professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Jairnilson Silva Paim, e com o atual presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o historiador e mestre em Saúde Pública, Carlos Fidelis Ponte. Eles teceram suas observações e vivências relacionadas ao período e dividimos suas reflexões em cinco temas que nos ajudam a compreender as consequências do golpe que completa 60 anos em 2024.
1. A mercantilização da saúde
Tanto a literatura especializada quanto os relatos dos entrevistados evidenciam que a privatização dos serviços de saúde foi uma das mudanças mais significativas no aspecto sanitário após a instauração do governo militar.
Impulsionados pelo que se chamou “milagre econômico” e ainda na esteira desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek [1956-1961], os governos militares adotaram uma política liberal e um modelo de assistência voltado à atenção individualizada e curativa, com forte atuação do setor privado e altos investimentos em estrutura médico-hospitalar. Escolhas que relegaram a segundo plano ações de saúde pública e medidas de proteção coletiva que abrangessem questões sociais, econômicas e ambientais.
Em sua obra clássica O que é o SUS, Paim afirma que, na década de 1940, os gastos públicos em saúde eram 80% aplicados em saúde pública e 20% em assistência médica individual, mas a partir de 1964, os recursos passaram a ter destinação inversa e o setor médico recebeu mais atenção e investimentos. Além do próprio autor, Carlos Fidelis também comenta o caráter mercadológico da saúde observado no período da ditadura.
Jairnilson Paim
As forças que tomaram de assalto o Estado brasileiro adotaram o liberalismo econômico como doutrina orientadora das políticas implementadas, cortando gastos sociais, de modo que a privatização da saúde representou uma política estatal, radicalizada entre 1968 e 1973. Entenderam, desde então, que o setor saúde pode ser um lócus de acumulação, realização e reprodução do capital, buscando no Estado o respaldo jurídico-político para o empresariamento da medicina e a expansão dos negócios e do mercado.
Do ponto de vista ideológico, o liberalismo econômico aposta no individualismo e no mercado como ordenador das relações sociais. Só admite, em princípio, a intervenção estatal naquilo, e somente naquilo, que o indivíduo e a iniciativa privada não possam fazer. Não tem compromisso com direitos sociais nem com a redução das desigualdades na sociedade. A saúde pública convencional, derivada e dependente dessa doutrina, fica restrita ao controle de epidemias ou endemias, à vigilância sanitária e epidemiológica, às campanhas sanitárias, programas de imunização e prevenção, ao saneamento e, no limite, à atenção à saúde dos pobres.
Essa política cristalizou uma dicotomia entre a chamada saúde pública, confinada no Ministério da Saúde, e a assistência médico-hospitalar, concentrada na medicina previdenciária dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, nas empresas médicas, nas instituições filantrópicas, nos hospitais, laboratórios e consultórios particulares. A unificação desses serviços em um sistema nacional de saúde foi até tentada nos últimos governos dos generais, mas não obtiveram êxito.
Carlos Fidelis
Os militares atenderam às reivindicações de um setor que vinha crescendo no país. Refiro-me às empresas privadas de medicina que foram altamente beneficiadas durante a ditadura. Como se pode constatar, a saúde virou um negócio extremamente lucrativo. Um setor que foi ampla e magnanimamente financiado por fundos públicos constituídos pelo esforço coletivo.
No manifesto A Questão Democrática na Área da Saúde, elaborado em 1976, e que está na origem do Movimento de Reforma Sanitária, seus autores ao se referirem às causas da degradação da saúde a partir dos anos 1960 não tiveram dúvidas em denunciar a mercantilização da saúde promovida pelos governos militares. Uma política que avaliaram como concentradora, privatizante e antipopular.
Nessa perspectiva, a prioridade conferida à medicina curativa, o financiamento público e o crescimento dos grupos privados no setor saúde constituem-se engrenagens de um processo em que a capitalização e a expansão da rede privada, por um lado, e a degradação dos serviços públicos e a sangria dos recursos do Estado, por outro, são faces da mesma moeda.
Vale notar que em 1973, no auge do chamado milagre econômico, os recursos destinados ao Ministério da Saúde correspondiam a apenas 1% do orçamento da União, enquanto ao Ministério dos Transportes e às Forças Armadas eram reservados 12% e 18%, respectivamente.
2. Desigualdades e prejuízos aos mais pobres
O modelo de saúde pública adotado no período da ditadura impôs piores condições às populações mais vulneráveis socioeconomicamente. Além disso, o regime ocultou uma grave epidemia de meningite, na década de 1970.
Jairnilson Paim
Entre as sequelas dessa política podem ser mencionadas a crise do setor saúde, a redução do orçamento do Ministério da Saúde e a elevação da mortalidade infantil e das taxas de desnutrição, tuberculose, malária, doença de Chagas, transtornos mentais, acidentes de trabalho e de trânsito, entre outros, além de epidemias como a da meningite.
Algumas consequências e impactos atravessaram o setor saúde, comprometeram as condições de saúde da população e seus determinantes, prejudicando até mesmo o saber em saúde. Seja na consciência sanitária dos indivíduos e grupos sociais, seja na produção de conhecimentos científicos, ao ignorar a determinação social e ambiental da saúde.
Um estudo censurado pelo governo militar durante a 5ª Conferência Nacional de Saúde, em 1975, continha argumentos que indicavam um sistema de saúde do período autoritário com as seguintes características: insuficiente, mal distribuído, descoordenado, inadequado, ineficiente e ineficaz.
Carlos Fidelis
A morte de crianças por doenças imunopreveníveis ou devido à falta de saneamento básico estão entre as consequências terríveis de opções políticas destinadas a beneficiar segmentos privilegiados. Por um lado, assistimos à drástica redução e degradação da oferta de leitos públicos. Não houve investimentos de peso na construção de hospitais públicos capazes de atender a uma demanda crescente, por exemplo. Nessa mesma direção, pode-se observar o avanço do setor privado para áreas da atenção primária que, até então, não despertavam interesses dos empresários da saúde. Por outro, vimos surgir programas como o Programa Nacional de Imunizações (PNI), datado de 1973, e a intensificação das campanhas de vacinação.
A urbanização e o êxodo rural, intensificados a partir da década de 1960, também incidem de modo decisivo sobre a conformação dos quadros epidemiológicos e sanitários do país, gerando problemas agudos que passaram a pressionar os governos militares. Nas periferias das grandes cidades, por exemplo, doenças como o sarampo matavam crianças em uma proporção bem maior do que a mortalidade verificada em países inteiros do Primeiro Mundo.
Na primeira metade da década de 1970, o país enfrentou uma epidemia de meningite: sem dúvida alguma, a censura da ditadura sobre sua ocorrência contribuiu de modo decisivo para que a epidemia se espalhasse e fizesse mais vítimas. Com a censura [Radis 123], as pessoas não sabiam que estavam em perigo e, portanto, não buscavam se prevenir ou ficar vigilantes. Por outro lado, sem informações, a máquina pública de atenção à saúde não se preparou. Ressalto também que a censura silenciou os melhores quadros, aqueles que perceberam que o problema era grave. Ocorreu um emburrecimento da estrutura pública de atenção à saúde. Uma estrutura hierárquica muito forte pode servir para um exército em situação de guerra, mas é extremamente nociva para outras organizações.
3. Perseguições e mortes
A ditadura também perseguiu opositores políticos e pensadores, como cientistas, médicos e estudantes — o que acarretou ônus ao desenvolvimento científico do país e um rastro de mortes nos porões da repressão. Que danos esse período deixou ao país? E como foi viver essa época?
Jairnilson Paim
Em 1968, nós nos mobilizamos diante do assassinato, pela repressão militar, do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto no Calabouço [restaurante estudantil no Rio de Janeiro], em março, assim como nas assembleias, nos comícios relâmpagos e nas passeatas do movimento estudantil do Maio 68, nos grupos de estudo, nas greves de estudantes e na ocupação da Faculdade de Medicina [da UFBA], no Terreiro de Jesus, durante o mês de junho — depois invadida pelos milicos.
Ainda em 1968, ‘o ano que não terminou’, conforme o livro de Zuenir Ventura, para mim terminou tentando visitar amigos presos nos quartéis, após o Congresso da UNE [União Nacional dos Estudantes] em Ibiúna (SP). E, finalmente, encarando o AI-5, em 13 de dezembro. Mais um golpe dentro do golpe. Assim, vários colegas foram afastados da Universidade pela aplicação do Decreto 477 (26/2/1969).
Carlos Fidelis
Outra marca da ditadura, a perseguição a intelectuais, cientistas e críticos ao regime militar, também acarretou danos ao desenvolvimento científico do país. A cassação dos direitos políticos [e aposentadoria compulsória] de dez cientistas da Fiocruz, episódio conhecido como Massacre de Manguinhos [Radis 141 e 146], teve um impacto negativo tremendo para a instituição e para o país. Projetos e linhas de pesquisa foram descontinuados e o recrutamento de jovens cientistas também foi afetado. A Fiocruz mergulhou em um dos piores períodos de sua história de 124 anos. A situação se deteriorou tanto que o ministro da Saúde de Geisel [Paulo de Almeida Machado] se referiu a Manguinhos, em 1975, como um cadáver insepulto. Reconhecia assim o estrago feito pela ditadura.
4. O nascimento do Movimento Sanitário
Foi também nos anos da ditadura, mais precisamente na segunda metade da década de 1970, que movimentos em prol da Saúde Coletiva e da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) surgiram no país, amparados na luta pela redemocratização. O período resultou em marcos como o manifesto A Questão Democrática da Saúde (elaborado em 1976), a criação do Cebes (1976) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979.
No cenário internacional, ocorria a Conferência de Alma-Ata (1978), no Cazaquistão, encontro para o qual o governo militar brasileiro não enviou representantes e que originou a Declaração sobre cuidados primários. Jairnilson Paim e Carlos Fidelis também falam sobre a importância do movimento da RSB e o que essa militância representou nos anos de repressão pós-golpe.
Jairnilson Paim
A resposta da nossa geração foi a luta contra a ditadura e a aposta na democratização da sociedade, do Estado, da cultura, da educação e da saúde. Nesse particular, emergem, posteriormente, o movimento da Reforma Sanitária Brasileira, a construção da Saúde Coletiva e o desenvolvimento do SUS.
Ainda que eu tenha participado desse movimento e da criação de entidades como o Cebes e a Abrasco, preciso ressaltar o caráter fundamentalmente coletivo dessa atuação na reforma sanitária.
O livro de Sarah Escorel, intitulado Reviravolta na Saúde, o meu sobre a Reforma Sanitária Brasileira — de livre acesso pela Editora Fiocruz — e dois mais recentes, o de Lígia Vieira da Silva (O campo da Saúde Coletiva) e o organizado por Sonia Fleury (Teoria da Reforma Sanitária Brasileira), recuperam parte dessa história. E, sem dúvida, revelam a importância da militância durante os governos autoritários, assim como da ação política de sujeitos individuais e coletivos para o avanço da RSB, especialmente na 8ª Conferência Nacional de Saúde [1986] e na Assembleia Nacional Constituinte [1988], culminando com a constituição do campo da Saúde Coletiva e com a criação e implantação do SUS.
Apesar dos percalços e do muito que ainda se há de fazer, na minha opinião, essas lutas tiveram êxito. A revista Radis, o Conass [Conselho Nacional dos Secretários de Saúde], o Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], as universidades públicas, a Fiocruz, as escolas de saúde pública e institutos de saúde coletiva têm sido, historicamente, parceiros no processo da RSB.
Carlos Fidelis
Bem diferente do conceito biomédico, o conceito de saúde adotado pelo movimento da Reforma Sanitária — e pelas entidades que, a exemplo do Cebes, estiveram na origem desse processo — compreende a saúde como condicionada por elementos capazes de prover uma boa qualidade de vida. A saúde não é, nessa concepção, apenas a ausência de doença, mas como disse Sergio Arouca, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, a ausência do medo. Do medo do desemprego, do medo do futuro, do medo de uma elite e de um governo que se volta contra o seu povo.
Saúde é educação, trabalho digno, lazer, acesso à cultura e aos benefícios da ciência e tecnologia. Saúde é o direito à cidade. É o direto a um ambiente ecologicamente equilibrado. Direito à moradia, transporte coletivo confortável, alimentação saudável, segurança. É direito a um serviço público de qualidade. É o direito a envelhecer, viver e morrer de forma digna.
Assim, a um conceito que restringia a saúde a seu componente biomédico, o movimento da RSB contrapôs um conceito mais abrangente, que denunciava a impossibilidade de se alcançar uma saúde de qualidade para a população nos marcos de um regime opressor. O foco dos empresários da saúde beneficiados pela ditadura estava na medicina curativa. O foco do movimento reformista da saúde estava na promoção das condições de vida digna e saudável para todos. Essa foi a mensagem que percorreu a 8ª Conferência Nacional de Saúde, desaguou no processo constituinte e culminou com a criação do SUS.
5. Democracia hoje
O Movimento Sanitário esteve intimamente ligado ao processo de redemocratização do país. Ainda hoje, essas lutas não se distinguem. As ameaças à democracia colocam em risco os avanços obtidos na direção da justiça social. Em uma perspectiva mais ampla de saúde e cidadania, um sistema de saúde universal e equânime tem como premissa um governo democrático e comprometido com o combate às desigualdades. Paim e Fidelis explicam a importância de defender esses preceitos e o que devemos lembrar em relação ao período iniciado há 60 anos. Para que não se esqueça e — mais do que isso — não se repita!
Jairnilson Paim
Distintas gerações no Brasil têm lutado pela democratização da saúde, entendendo que defender a democracia é defender o direito à saúde e o SUS. Enquanto muitos de nós denunciávamos o golpe de 2016 contra a presidente Dilma, as ameaças à democracia, o desmonte dos direitos sociais, a ‘cidadania em perigo’ (título do livro lançado neste ano pelo Cebes), as tentativas de golpe perpetradas por neofascistas, desde 2019, que desembocaram nas ações terroristas de dezembro de 2022 e nos ataques golpistas violentos contra os três poderes do Estado brasileiro no dia 8 de janeiro de 2023, outros preferiam acreditar que as instituições estavam funcionando e que a democracia não estava em risco.
Mas a sociedade brasileira continua ameaçada por retrocessos, apesar da eleição do presidente Lula e do empenho desse terceiro governo, composto por forças políticas e sociais muito heterogêneas. Portanto, todas as pessoas, instituições e entidades que defendem efetivamente o SUS precisam se organizar e atuar politicamente, mobilizando corações, mentes e braços para avançar no aprofundamento da democracia e ampliar as bases políticas e sociais que sustentam a RSB, os direitos humanos, o SUS e, em última análise, o direito universal à saúde.
Carlos Fidelis
Vivemos um período em que não somente o presente e o futuro estão em disputa, mas também o passado. Hoje convivemos com gente que diz que a Terra é plana, que o nazismo era um regime de esquerda e que o golpe de 1964 salvou a democracia. Hoje ainda é preciso lutar pela verdade histórica e pela ciência.
Não podemos esquecer todo o tipo de atrocidades cometidas pela ditadura que comandou o país de 1964 até 1985. Não dá para fechar os olhos para as torturas, os assassinatos, as violações de direitos fundamentais, passar por cima de tragédias familiares, da orfandade, da desesperança, da concentração de renda; fingir que os cofres públicos não foram dilapidados, que a corrupção não se alastrou, assim como a impunidade. O golpe de 64 foi um ataque violentíssimo à luta por direitos básicos, como acesso à terra, à organização sindical, à organização política, à saúde e à educação; ele destruiu sonhos e projetos de uma geração que queria construir um país melhor do que aquele que herdaram de seus pais.
Aqui estamos falando de saúde das populações e não de indivíduos. Nosso conceito de saúde ultrapassa o biomédico e engloba os determinantes sociais, políticos, econômicos e culturais que conformam um quadro capaz de proporcionar uma vida saudável para a população. Isso significa justiça social e o reconhecimento de direitos sociais inalienáveis como saúde, educação, emprego digno, lazer, acesso à cultura, à ciência e à tecnologia. Um quadro em que o medo da opressão e do abandono não esteja presente, em que haja de fato democracia e cidadania.
É possível uma vida digna e saudável para todos nos marcos do neoliberalismo ou do fascismo? Não creio. Acredito, sim, na construção de um país democrático, inclusivo, soberano e sustentável. Acredito e luto por isso. Do contrário, ainda vamos viver em meio à miséria material e moral de uma sociedade desigual.
[Leia as entrevistas completas com Jairnilson Paim e Carlos Fidelis no site]
Pesquisa revela atuação de médicos no aparato da repressão durante a ditadura
Ainda que estudantes de medicina e médicos tenham se destacado na oposição ao regime militar, como nos movimentos que mais tarde originariam a RSB, em um estudo inédito o jornalista e historiador César Guerra Chevrand, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/Fiocruz), analisou a atuação desses profissionais na repressão da ditadura. A pesquisa originou a dissertação intitulada Doutores da ditadura: médicos, repressão política e violações de direitos humanos no Brasil (1964-1985), defendida em 2021.
O pesquisador revela que, para sua surpresa, dos 377 agentes de Estado acusados de crimes no relatório da Comissão Nacional da Verdade, 51 eram médicos. César relata que esses profissionais tinham um papel essencial no sistema da repressão: “A conclusão a que chegamos é que essa participação foi ampla, sistemática e estratégica”, disse à Radis. Suas principais atuações ocorriam no auxílio das torturas, durante os interrogatórios, e na função de legistas, na falsificação de laudos necroscópicos, para acobertar os crimes da repressão política e de quebra proteger o regime do desgaste junto à opinião pública.
Por outro lado, o estudo mostra também que foram os médicos que na reabertura política denunciaram os próprios pares em seus respectivos conselhos por infrações éticas. “Se a gente diz que os médicos tiveram esse papel estratégico na repressão, a gente também pode dizer que os médicos tiveram um papel importante na denúncia dos seus próprios pares”, afirma César. Radis voltará a pautar o tema em uma de suas próximas edições e aprofundará as descobertas do estudo, bem como as disputas e tensões existentes na classe médica no contexto da ditadura.
Leia a dissertação de mestrado de César Chevrand em https://bit.ly/doutoresdaditadura
Saiba mais em:
Brasil Nunca mais: https://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/
Memórias da Ditadura: https://memoriasdaditadura.org.br/
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