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■ Colaborou Giovanna Garcia (Estágio supervisionado)

A frase “Criança não é mãe” estampou cartazes, circulou nas redes sociais e repercutiu nas ruas para lembrar o óbvio: meninas e mulheres não podem ser obrigadas a levar adiante uma gestação resultante de estupro. Depois que a Câmara dos Deputados aprovou, em 12 de junho, o regime de urgência para o Projeto de Lei (PL) 1.904/24 que equipara o aborto acima de 22 semanas, em qualquer situação, ao crime de homicídio, manifestações em diversas cidades brasileiras reagiram à proposta que pode penalizar ainda mais mulheres que foram vítimas de violência sexual.

Que não reste dúvida: a legislação brasileira considera legal o aborto em três casos. De acordo com o Código Penal, a gravidez pode ser interrompida quando apresenta riscos de vida à gestante ou quando for resultado de um estupro; e, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o mesmo vale para situações em que o feto é anencéfalo [má-formação que inviabiliza a vida fora do útero].

Mesmo nessas situações em que o aborto é permitido por lei, as mulheres encontram dificuldades para acessar esse direito, como Radis mostrou na reportagem de capa da edição 258. A pressão de grupos religiosos e políticos conservadores se faz presente não somente no Legislativo, mas até mesmo para coagir as famílias e dificultar o acesso ao serviço de interrupção da gravidez. 

“Precisamos levar em conta os casos de mulheres que morrem por falta de acesso ao aborto legal, seja porque recorreram a um aborto clandestino perigoso ou porque a gravidez apresentava risco de vida e ela precisava interromper para salvar sua vida e não interrompeu”, afirmou a coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta, Angela Freitas, à repórter Licia Oliveira na edição de março.

Portanto, o PL 1.904, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), é parte de uma ofensiva contra o direito ao aborto legal. A proposta aumenta para 20 anos a pena máxima para o procedimento realizado a partir da 22ª semana de gestação. Isso significa que, se o PL for aprovado, uma mulher que foi estuprada e abortar pode receber uma punição maior que a pena máxima para o estuprador, que é de 12 anos.

Atualmente, a legislação brasileira não prevê limite gestacional para os três casos de aborto legal. Movimentos de mulheres se mobilizaram nas ruas e nas redes na campanha “Criança não é mãe” e chamaram o projeto de “PL da gravidez infantil” ou “PL dos estupradores”, por penalizar ainda mais aquelas que sofreram violência sexual. Ao aprovar o regime de urgência para a tramitação do texto, a Câmara abriu o precedente para que ele fosse levado direto ao Plenário, sem passar pelas comissões da Casa e sem discussão com a sociedade.

— Foto: Juliana Duarte.

Lira recua

Após as manifestações que aconteceram em diversas cidades brasileiras, como Brasília, Florianópolis, Recife, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), recuou e, em 18 de junho, anunciou que vai criar uma comissão representativa para discutir o projeto. Ele afirmou ainda que o debate deve ficar para o segundo semestre, após o recesso parlamentar.

Segundo a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), o recuo ocorreu diante “diante da pressão da opinião pública, dos movimentos feministas e das mobilizações de mulheres que ainda estão sendo convocadas pelo Brasil inteiro”. “Isso não significa que devemos baixar a guarda, pois a gente sabe que esse tema pode aparecer novamente no final do ano, quando a discussão sobre a presidência da Câmara vai estar em jogo”, declarou.

— Foto: Juliana Duarte.

É preciso voltar alguns meses no tempo para entender como começou a atual ofensiva contra o direito ao aborto legal. No início de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução nº 2.378/2024 a fim de proibir a assistolia fetal para a interrupção de gestações acima de 22 semanas nos casos previstos em lei. A assistolia consiste em uma injeção de substâncias que levam à parada dos batimentos cardíacos do feto antes de ser retirado do útero. É um procedimento seguro e recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de interrupção depois de 22 semanas.

Em 17 de maio, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a resolução do CFM, o que gerou uma movimentação dos setores antiaborto, com a apresentação do PL 1.409. Em 12 de junho, a Câmara aprovou a urgência do projeto em uma votação simbólica — o que desencadeou diversos protestos pelo país.

Cultura do estupro

“O movimento proposto pelo projeto de lei em questão nos coloca em um lugar de imenso atraso, pois ignora direitos sexuais, reprodutivos e humanos conquistados pelas mulheres no Brasil, desde a Constituição de 1940”, declarou Karina Calife, médica sanitarista e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. 

Em artigo publicado no site Teoria e Debate (24/6), ela lembrou que, segundo a OMS, não há a diminuição do número de abortos por conta de sua criminalização. “O que acontece é um aumento dos abortos inseguros por conta da dificuldade de acesso que, além de agravar esta questão, impacta os índices de mortalidade materna especialmente entre as vítimas mais pobres e as vítimas negras”, ressaltou. A médica descreveu como “perversidade” o fato de condenar mulheres que sofreram estupro à prisão e pontuou que estipular um prazo para que a vítima consiga denunciar é parte de um grande ciclo de violência. “É, em síntese, um reforço à cultura do estupro tão arraigada em nosso país”, escreveu. Leia completo aqui: https://bit.ly/teoriaedebatepl1904.

Violência sexual infantil

  • De cada quatro vítimas de violência sexual no Brasil, três são crianças e adolescentes. Em 68,7% dos casos, o abuso ocorreu no ambiente residencial.

(Fonte: Fundação Abrinq)

— Foto: Juliana Duarte.

Fake news sobre o PL da Gravidez infantil

“Como assim você só procurou o sistema de saúde agora?”. Esse é um argumento muito utilizado para condenar meninas e mulheres que buscam a interrupção da gestação em um período mais avançado, após as 22 semanas. Para desmascarar essa e outras mentiras sobre o assunto, a comunicadora Kawany Tamoyos (@vulgokakaw) publicou um vídeo no Instagram com Top 5 Fake news sobre o PL da gravidez infantil.

“A cada 10 casos [de estupro], 6 são contra meninas de até 13 anos e, em sua maioria, os abusadores são pessoas próximas ou familiares. Diante desse fato, se mulheres em idade adulta já têm dificuldade para controlar seu ciclo menstrual e de perceber quando estão grávidas, imagina uma menina de 13 e 14 anos, quando ela vai perceber que está grávida e especialmente de um abuso? Ela tem realmente liberdade pra poder contar para alguma pessoa próxima que ela está grávida de um abuso e, provavelmente, de um ente ou parente próximo?”, questionou.

— Foto: Juliana Duarte.

Aborto legal no Brasil

São três situações em que o aborto é legal no Brasil:

  • Gravidez resultante de estupro
  • Gravidez de feto anencéfalo (malformação fetal)
  • Quando não há outro meio de salvar a vida da gestante

Aborto legal no SUS

Apenas 3,6% dos municípios brasileiros contam com serviço de aborto para os casos previstos em lei. O número baixíssimo retrata a realidade de que meninas e mulheres vítimas de estupro e que engravidaram, ou cuja gravidez apresente risco para sua própria vida ou em caso de feto anencéfalo, estão impedidas de interromper a gestação simplesmente porque o serviço não se encontra disponível no SUS, em seu município ou estado.

O acesso ao aborto legal no SUS foi tema de debate promovido pelo Observatório do SUS, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), em 3 de julho. Confira algumas falas marcantes.

— Foto: Acervo Pessoal.

“O PL causou uma extrema indignação na sociedade brasileira. Ao contrário do que imaginaram os seus proponentes, o debate não foi em torno de qual é a técnica médica ou de qual é o tempo gestacional. Circulou a imaginação sobre quem é a vítima quando se criminaliza o acesso à saúde em uma situação tão brutal quanto o estupro.

A questão do aborto não é matéria de contra ou a favor. Não é questão para confundirmos ao invés de falarmos sobre ciência. As religiões devem ser respeitadas, mas não são elas que determinam a vida pública e o bem comum. Que tal fazermos dessas semanas intensas de aprendizado um exercício de reflexão sobre como devemos continuar o debate sobre a descriminalização do aborto?”

(Debora Diniz, fundadora da Anis — Instituto de Bioética)

— Foto: Acervo Pessoal.

“Na última década, com a chegada da extrema direita ao poder no Brasil, tivemos uma cultura maior de ódio e de desvalorização das mulheres, que se acompanhou de uma política de facilitação da compra de armas. Obrigar uma menina a levar adiante uma gravidez decorrente de um estupro é de uma crueldade inominável, um trauma imenso com impacto em sua saúde mental, na evasão escolar, na carreira profissional e é expô-la ao risco de morte.”

(Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Ensp e coordenadora da pesquisa Nascer no Brasil)

— Foto: Divulgação.

“Há duas maneiras de tratar o aborto: através da ciência ou através de um negacionismo de crenças. Não há soluções para questões da saúde sem ciência. Essa menina [que foi estuprada] não sabe muitas vezes nem o que é menstruar. Quando descobre a gravidez, é visível a barriga. Quando procura um serviço, ela não recebe orientação. Sem orientação, não existe cidadania e saúde. 80% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes. Em 70% dos casos, a vítima conhece o agressor. É um tio ‘querido’, um parente ‘caridoso’, um padrasto. E pior: às vezes, o pai.”

(Olímpio Moraes, diretor médico da Univesidade Federal de Pernambuco, um dos poucos serviços habilitados para aborto legal)

— Foto: Divulgação.

“Somente nas ruas e nas redes sociais, conseguiremos brecar o avanço da teocracia e da ruptura laica que avança nesse país. Não podemos retroceder do ponto de vista civilizatório. Precisamos quebrar o pacto de silêncio que mantém meninas espalhadas por esse país, sendo violentadas todos os dias por seus pais, tios, irmãos, primos e por religiosos que se assumem como cristãos, mas que na realidade são pseudocristãos.”

(Elda Bussinguer, presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética — SBB)

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