Especialistas de diferentes áreas da saúde estão mobilizados diante da possibilidade de liberação da venda dos chamados cigarros eletrônicos no país e reúnem evidências científicas que comprovam os malefícios que estes dispositivos causam à saúde individual e coletiva. É que está em andamento uma avaliação do processo regulatório pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) iniciada em 2019 — na etapa atual, a agência recebe contribuições da sociedade para que a Diretoria Colegiada possa deliberar sobre o assunto.
Até 16 de junho a chamada Tomada Pública de Subsídios (TPS) recebe, via Internet, informações técnicas de estudiosos (e também de produtores) que devem subsidiar a elaboração de um texto normativo — que futuramente também passará por consulta pública — até que se chegue a uma nova Resolução da Diretoria Colegiada (RDC). A expectativa é que o posicionamento da Anvisa seja divulgado até o fim de 2022.
Até lá, vigora a RDC nº 46, de 2009, “que proíbe comercialização, importação e propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar (DEF), conhecidos como cigarro eletrônico”. Os esforços de associações e sociedades médicas e demais entidades da área de saúde são para que a Anvisa mantenha a proibição. Para isso, apresentam evidências científicas em diferentes áreas médicas que comprovam os malefícios dos dispositivos, ao mesmo tempo que alertam a sociedade sobre as estratégias da indústria em apresentar os DEFs como substitutos ao cigarro tradicional ou inofensivos no que diz respeito aos prejuízos causados pelo fumo.
“Nós já vivemos muitos problemas relacionados ao cigarro tradicional e não queremos ver a história se repetir. Cigarro eletrônico é cigarro”, justificou Irma de Godoy, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), na coletiva de imprensa organizada pela SBPT e pela Associação Médica Brasileira (AMB) no início de maio, para tratar do assunto.
Na entrevista, que contou com a participação de representantes de outras entidades como as sociedades brasileiras de Cardiologia (SBC) e de Pediatria (SBP), Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), os especialistas também divulgaram nota conjunta em que recomendam a manutenção da proibição, ao mesmo tempo em que “exigem medidas mais rigorosas para fiscalização e punição de violadores desta resolução” e ressaltam a preocupação com o aumento do uso desenfreado desses dispositivos, em especial entre os jovens.
No documento, assinado por mais de 50 entidades da saúde e da medicina, os estudiosos chamam atenção ainda para as estratégias usadas pela indústria para atrair novos usuários, advertem que a ampla utilização dos DEFs pode reverter, em pouco tempo, o sucesso das políticas de controle do tabaco obtido em décadas de esforços do Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT) e são enfáticos quanto às expectativas em relação à proibição. “A comunidade científica e de saúde pública brasileira só espera uma coisa da Anvisa: que NÃO libere a comercialização dos DEFs no Brasil e que exerça seu papel de proteger a saúde da população brasileira”.
A seguir, Radis reuniu os principais alertas feitos pelos especialistas durante a coletiva e na carta conjunta que produziram, o que inclui os riscos relacionados à saúde, as estratégias da indústria do tabaco para atrair novos consumidores e sugestões para que o país possa enfrentar o crescente uso entre jovens. A reportagem também ouviu um usuário e uma ex-usuária de cigarros eletrônicos e compilou outras informações relevantes relacionadas ao tema.
O que são DEFS
Cigarros eletrônicos são aparelhos alimentados por bateria de lítio e um cartucho ou refil, que armazena o líquido. Esse aparelho tem um atomizador, que aquece e vaporiza a nicotina. O aparelho traz ainda um sensor, que é acionado no momento da tragada e ativa a bateria e a luz de led (que não está presente em todos). Ao serem aquecidos, os DEFs liberam um vapor líquido parecido com o cigarro convencional.
Os cigarros eletrônicos estão em sua quarta geração, onde é encontrada concentração maior de substâncias tóxicas. Existem ainda os cigarros de tabaco aquecido. São dispositivos eletrônicos para aquecer um bastão ou uma cápsula de tabaco comprimido a uma temperatura de 330°C. Dessa forma, produzem um aerossol inalável que, segundo especialistas, expõe o usuário a emissões tóxicas, muitas das quais causam câncer.
Outro tipo de DEF se parece com um pen drive. São os sais de nicotina (nicotina + ácido benzóico). Esse tipo de cigarro provoca menos irritação no usuário, facilitando a inalação de nicotina. E, assim, provoca maior dependência. Os usuários desse aparelho têm pouca resposta ao tratamento convencional da dependência da nicotina, advertem os especialistas
A indústria contra-ataca
As campanhas publicitárias vendem os DEFs como alternativas “saudáveis” ao cigarro tradicional, o que segundo especialistas é uma informação enganosa. Uma das estratégias utilizadas pelos fabricantes é construir uma imagem positiva para os cigarros eletrônicos, dissociando-os dos cigarros tradicionais.
A começar pela nomeação dos produtos (vaper, pod, e-cigarette, e-ciggy, e-pipe, e-cigar, heat not burn [tabaco aquecido], entre outros) e de seus usuários (vaporizadores ou vapers, em inglês). A ideia é criar uma falsa distinção entre fumantes e vapers, advertiu Paulo Cesar Correia, coordenador da Comissão de Tabagismo da SBPT.
Na apresentação do tema que fez à imprensa, ele mostrou inúmeros exemplos de campanhas publicitárias veiculadas na Internet que apresentam o cigarro tradicional como algo ultrapassado e, em contraposição, os dispositivos eletrônicos, vendidos como alternativa tecnológica, recreativa e segura de uso da nicotina.
Para isso, campanhas atualizam recursos já conhecidos pela publicidade para venda de cigarros tradicionais, como o uso de cores e elementos que o aproximem do público mais jovem, o patrocínio de festas, eventos culturais e esportivos, além da criação de grupos de usuários “independentes” que financiariam “pesquisas” que apresentam falsos dados de redução de danos.
Especialista em controle de tabagismo pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Paulo chamou atenção para a falsidade destes estudos: “Ainda que não tenhamos a descrição completa dos riscos epidemiológicos, as evidências já existentes permitem dizer que o produto é extremamente perigoso e danoso tanto à saúde individual como à saúde pública”, alertou.
Outra ferramenta utilizada pelos produtores é apresentar o cigarro eletrônico como alternativa menos danosa para a “troca” do cigarro tradicional. Investem no público que não consegue ou não deseja parar de fumar — algo que recupera recursos mercadológicos antigos, como o lançamento de filtros para o consumo de cigarros ou a venda de marcas com “baixos teores” — estratégias que nunca impediram ou minimizaram os danos causados à saúde.
Jovens na mira
A indústria investe pesado em estratégias que visam conquistar o público mais jovem, advertiu João Paulo Lotufo, integrante da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Ele contou que, por trás do discurso de “troca”, os produtores têm como objetivo conquistar o jovem, “que tem a sensação de que pode parar quando quiser”. A ciência, no entanto, diz o contrário. João Paulo enfatizou que tabagismo é dependência em nicotina e que, quando ocorre na adolescência, o efeito é muito mais potente do que em adultos, já que o cérebro se desenvolve até os 21 anos. “Qualquer droga iniciada antes disso a dependência é maior”, assegurou.
Ele alertou ainda que já existem estudos que mostram que o jovem que começa a fumar cigarro eletrônico rapidamente migra para o cigarro tradicional ou para o uso de maconha. O especialista considerou que nestes casos há risco de lesão cerebral irreversível, perda de memória e déficit de aprendizado, e afirmou que diante de tantos riscos a SBP considera o tabagismo uma “doença pediátrica”.
Para ele, é preciso retirar do ar a propaganda dos cigarros eletrônicos, aplicar punições exemplares e, sobretudo, tratar as pessoas de modo gratuito. Ele recomendou ainda a criação de campanhas educativas para jovens, pais e educadores, visto que a sociedade ainda desconhece os problemas relacionados ao uso destes dispositivos.
Representante da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), a psicóloga Sabrina Presman lembrou que os fabricantes investem em formatos que são facilmente confundidos com outros dispositivos tecnológicos, como canetas e pen drives, estratégia que dificulta que pais e educadores identifiquem o uso entre jovens, e alertou para o uso de aditivos e aromatizantes diversos para atrair novos consumidores. “Por mais que digam que não é um produto para criança, eu não conheço um adulto que use o sabor algodão-doce. Ele é bem caracterizado com essa ideia da juventude”, enfatizou Sabrina.
Eletrônicos e nocivos
- O cigarro eletrônico contém substâncias nocivas e cancerígenas, como nicotina, propilenoglicol e glicerol, ambos irritantes crônicos; acetona, etilenoglicol, formaldeído, entre outros produtos cancerígenos e metais pesados (níquel, chumbo, cádmio, ferro, sódio e alumínio).
- Os DEFs produzem partículas ultrafinas, que conseguem ultrapassar a barreira dos alvéolos do pulmão e cair na corrente sanguínea, provocando inflamação. Quando essa inflamação ocorre no endotélio (a camada que reveste internamente o vaso), podem aparecer eventos cardiovasculares agudos, como o infarto e a síndrome coronariana aguda, a angina do peito.
- Países que liberaram DEFs registram crescente aumento de doenças cardiovasculares na população abaixo de 50 anos.
- Diferente do cigarro convencional, que demora às vezes 20 ou 30 anos para manifestar doença no usuário, o cigarro eletrônico tem mostrado essa agressividade em menos tempo.
- Alguns cigarros contêm tetrahidrocanabinol (THC), principal componente ativo da maconha, óleo de haxixe e outras drogas ilícitas.
- Usar pen drives (ou sais de nicotina) com 3% a 5% de nicotina equivale a fumar de 10 a 15 cigarros por dia. Dispositivos com 7% de nicotina equivalem a mais de 20 cigarros por dia.
- Cigarros eletrônicos podem causar irritação brônquica e inflamação em quem tem doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC).
- Asdoenças causadas pelos dispositivos para fumar já tem uma denominação em inglês: “evali” (em português, lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico). Até janeiro de 2020, foram registrados 2.711 casos nos Estados Unidos, com 68 mortes.
Margarida, a ex-usuária
A “troca” foi sugerida pela sobrinha, que morava nos Estados Unidos. Em preparação para uma cirurgia bariátrica, a fisioterapeuta aposentada Margarida Amaral precisava parar de fumar. Já fumava há 40 anos; havia se tratado de um câncer de mama, anos antes. Foi então que viu vantagem em substituir os dois maços que fumava por dia pelo cigarro eletrônico, que a sobrinha mandou do exterior para Belo Horizonte, com todos os seus acessórios.
Naquele momento, há mais de 10 anos, quando pouco se falava em cigarro eletrônico no Brasil, Margarida fez os exames prévios, submeteu-se à cirurgia, e passou a ser usuária. Ela conta que imediatamente parou com o cigarro tradicional. Experimentou diferentes modelos, importou líquidos de vários lugares, fabricou algumas vezes para o consumo próprio, até que uma nova cirurgia a fez repensar a prática.
Em 2019, de novo diagnosticada com um câncer (desta vez, no rim), ela se submeteu a novos exames pré-operatórios. “Foi quando descobri que o cigarro eletrônico me fez um mal horrível”. O resultado indicou um enfisema moderado e ela decidiu parar de vez. “Eu já vinha me sentindo muito cansada”, revela, lembrando dos alertas feitos pelo cunhado médico, que ela ignorou.
“Eu era uma defensora ferrenha do cigarro eletrônico, mas estava totalmente enganada”, reconhece. Hoje, aos 68 anos, Margarida parou definitivamente de fumar e investiu em uma rotina mais saudável, com alimentação regrada e atividades físicas regulares. Ela considera importante que haja mais campanhas de conscientização que façam frente às informações produzidas pelos fabricantes. Para que mais pessoas não sejam ludibriadas como ela.
A “troca” foi sugerida pela sobrinha, que morava nos Estados Unidos. Em preparação para uma cirurgia bariátrica, a fisioterapeuta aposentada Margarida Amaral precisava parar de fumar. Já fumava há 40 anos; havia se tratado de um câncer de mama, anos antes. Foi então que viu vantagem em substituir os dois maços que fumava por dia pelo cigarro eletrônico, que a sobrinha mandou do exterior para Belo Horizonte, com todos os seus acessórios.
Naquele momento, há mais de 10 anos, quando pouco se falava em cigarro eletrônico no Brasil, Margarida fez os exames prévios, submeteu-se à cirurgia, e passou a ser usuária. Ela conta que imediatamente parou com o cigarro tradicional. Experimentou diferentes modelos, importou líquidos de vários lugares, fabricou algumas vezes para o consumo próprio, até que uma nova cirurgia a fez repensar a prática.
Em 2019, de novo diagnosticada com um câncer (desta vez, no rim), ela se submeteu a novos exames pré-operatórios. “Foi quando descobri que o cigarro eletrônico me fez um mal horrível”. O resultado indicou um enfisema moderado e ela decidiu parar de vez. “Eu já vinha me sentindo muito cansada”, revela, lembrando dos alertas feitos pelo cunhado médico, que ela ignorou.
“Eu era uma defensora ferrenha do cigarro eletrônico, mas estava totalmente enganada”, reconhece. Hoje, aos 68 anos, Margarida parou definitivamente de fumar e investiu em uma rotina mais saudável, com alimentação regrada e atividades físicas regulares. Ela considera importante que haja mais campanhas de conscientização que façam frente às informações produzidas pelos fabricantes. Para que mais pessoas não sejam ludibriadas como ela.
Felipe, o usuário
A rotina de Felipe Aguiar, em Fortaleza, é corrida. Publicitário, casado, pai de uma filha de cinco anos, sua vida se divide entre o trabalho e uma cervejinha no fim de semana. Atividades físicas já não faz mais, por falta de tempo. Na rotina sedentária ele incluiu o cigarro eletrônico, há quatro anos. Fumante desde os 14 anos, ele fez a transição por sugestão de um amigo. Até então, nunca havia passado um dia sem fumar.
Após experimentar diferentes modelos e um período em que retornou ao cigarro tradicional, ele investiu em um modelo e se acomodou com a troca, que em sua avaliação, melhorou o apetite e até deu maior disposição para jogar umas partidas de futebol com os amigos. “Não sei se foi coincidência, mas notei diferença, não acho que foi a presença do cigarro eletrônico, mas talvez pela ausência do cigarro tradicional”, diz, sem conseguir disfarçar o pigarro entre uma fala e outra da entrevista.
Felipe reconhece que, por ser aceito socialmente, acaba “vaporando” mais do que fumaria. Para sua comodidade, segue “receitas” que encontra na Internet para produzir os líquidos que consome, o que para ele dá segurança sobre a procedência do que está consumindo.
Questionado sobre sua saúde, ele reconhece que nunca se submeteu a um check-up médico, mas indica sua disposição para parar de fumar, no futuro. Avalia que o consumo dos vapers está aumentando por ser moda, não ter a rejeição social e pela ausência do cheiro desagradável do cigarro tradicional — “pessoas que não fumavam estão fumando”.
Para Felipe, novos usuários (e ele mesmo) não têm informação alguma sobre o que estão consumindo, a não ser aquelas produzidas pela indústria fabricante, o que deixa inúmeras interrogações sobre os riscos e faz com que consumidores tomem decisões sem nenhuma orientação de saúde.
SAIBA MAIS Nota conjunta das sociedades e associações médicas e de saúde — https://bit.ly/3wPdN1N Coletiva de imprensa das sociedades médicas sobre cigarro eletrônico — https://bit.ly/3yT3Z9M Íntegra da RDC nº 46/2009 — https://bit.ly/3yZ9fsC
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