“É da nossa cor”
O berimbau chama, soberano, com o som vibrante de sua corda, para o início da roda ritual. O atabaque e o pandeiro respondem, e os adolescentes se reúnem em círculo para a vadiação. No linguajar afro-brasileiro, vadiar é um vocábulo de resistência: utilizado ao longo dos séculos para chamar os negros de preguiçosos, vadios, pois a eles só cabia o trabalho, é hoje sinônimo de “brincar capoeira”, de forma leve e descompromissada.
A capoeira é assim: malandra, troca o sentido das palavras; conta a história do Brasil e da diáspora africana com poesia e ritmo; subverte as relações de dominação e preconceito, como quem inverte os pés pelas mãos; fala de coisas sérias brincando. “Quem faz capoeira resgata o inconsciente coletivo da escravidão que está na cultura brasileira e começa a entender melhor a nossa história e a importância de termos uma postura antirracista”, diz mestre Curumim, nascido Valter Fernandes, 50 anos de vida e 37 de capoeira, diretor da Escola Capoeira Cidadã (ECC), em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
É o fim de uma manhã nublada de dezembro, último treino do ano na Escola Municipal Victor Hugo, no bairro do Anil, na Zona Oeste carioca. As aulas de capoeira são oferecidas como atividade extracurricular a mais de 30 adolescentes do ensino fundamental II, como parte de um projeto social mantido pela ECC há mais de 20 anos para estudantes de escolas públicas da região de Jacarepaguá. A professora Cravo, corda roxa, e a instrutora Canela, corda verde, irmãs gêmeas, organizam os alunos: em dupla, eles repetem os movimentos de meia lua de compasso e rasteira, entre erros e acertos.
Além do projeto em escolas públicas, mestre Curumim coordena um estudo, reconhecido como o primeiro do mundo, que busca medir os efeitos da capoeira no cérebro humano e no desenvolvimento cognitivo infantil, em seu pós-doutorado no Laboratório de Neurociência do Exercício, ligado ao Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). “É sempre um desafio quebrar as barreiras do saber popular para o saber acadêmico”, conta.

A pesquisa — que também foi tema de seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental, no mesmo instituto — já comprovou os benefícios da capoeira para a melhora da coordenação motora e das chamadas funções executivas, que são um conjunto de habilidades cognitivas que permitem controlar pensamentos, emoções e ações. Além dos resultados que a ciência pretende medir, a capoeira transforma vidas de uma forma que somente quem vive é capaz de entender, como ressalta Curumim: “A gente percebe uma melhora no comportamento das crianças e, além disso, uma melhora na autoestima, principalmente quando falamos de uma população de maioria preta e de escola pública” [Leia a entrevista completa com mestre Curumim ].
Nas rodas, há uma canção que diz: “Tá no sangue / Na raça brasileira / O berimbau / É da nossa cor”. Segundo o mestre, a capoeira ajuda a promover consciência e identidade. “A criança que chega começa a se identificar mais com sua cultura, a valorizar sua própria origem, e cada vez mais a se autodescrever como preto”.

Educador físico de formação, Curumim percebe que é comum crianças pretas e pardas terem dificuldade de assim se identificarem. “Isso está relacionado ao racismo estrutural: a criança está imersa nessa cultura racista, mas quando ela pratica a capoeira e começa a entender a importância da raiz africana para a identidade brasileira, ela passa a perceber o valor da sua cultura”.
O atabaque ressoa na quadra da escola, acompanhando o toque de São Bento Grande no berimbau. A cantiga parece ecoar uma memória ancestral africana, unindo passado e presente: “Não tenho navio negreiro pra me transportar/ Não tenho carro de ferro pra ‘mim’ manobrar”. Ao ritmo das palmas, os jovens pedem licença para “comprar” o jogo e alternam acrobacias ousadas, como o beija-flor e o pião de mão, com golpes rodados, como armada, queixada e meia lua. “Andei, andei, mas aqui cheguei / Pra jogar capoeira e vadiar com vocês”, continuam os versos até o refrão, que aumenta o frenesi das palmas, dos golpes e do canto. O axé da roda. “Como vai, como vai, como vai você?”
“Ser feliz é nosso dever ancestral”, afirma a aluna Lavínia Rodrigues, conhecida como Moana. Foto: Renata Spinelli.
“Esse quilombo é nosso”
Para entrar na roda, é preciso pedir licença. Agachar ao pé do berimbau, que comanda a orquestra, é um ato de respeito e reverência à ancestralidade — uma forma de recordar a memória de mestres, mestras e capoeiristas que vieram antes e ajudaram a construir uma história coletiva de resistência. A adolescente Lavínia Rodrigues, de 14 anos, conhecida pelo apelido de Moana, aluna do mestre Curumim na ECC, soube disso desde a primeira vez que pisou em uma roda.
“Quando jogo capoeira, ou toco atabaque, berimbau e pandeiro, eu me sinto levando adiante essa cultura ancestral que puseram na minha mão”, diz. Para ela, a capoeira possibilita um mergulho na história dos povos africanos no Brasil, com suas lutas, resistências e culturas diversas. “Quando ouvi sobre tudo isso, eu me senti parte dessa história. Isso despertou o querer saber mais, conhecer outras histórias de mestres, mestras e ancestrais africanos”, relata.
Corda crua e roxa na capoeira — graduação de crianças de 9 a adolescentes de 16 anos — e aluna da Escola Municipal Victor Hugo, ela ressalta que a capoeira foi fundamental para o seu autoconhecimento e identificação como pessoa negra. “Minha autoestima estava em um nível crítico. Assim que comecei na capoeira, senti um sentimento de identidade se formando, e junto com ela, o orgulho de ser negra”, relembra. O senso de coletividade é reforçado nas músicas, como naquela que lembra a história da preta-velha e líder quilombola Maria Conga: “Maria Conga, esse quilombo é nosso/ Esse quilombo é meu, é seu, esse quilombo é nosso”.

Moana conta que percebeu que várias coisas que fazia, pessoas negras faziam bem antes: “Descobri que não precisava fazer o que não cabia a mim só para tentar me encaixar no espaço branco, e que eu tinha meu próprio lugar como negra”. Habilidosa no toque do berimbau e de outros instrumentos, ela também despertou o interesse pelo desenho, onde retrata figuras de orixás e entidades. “Assim me sinto parte de mais um galho dessa raiz africana enorme. Ser feliz é nosso dever ancestral”, traduz seu sentimento.
A capoeira é uma manifestação cultural brasileira presente em todo o Brasil e em centenas de outros países. Suas origens remontam ao período da escravização e ao pós-abolição. Ela possui duas modalidades ou tradições mais conhecidas: a capoeira angola e a regional. Em 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registrou duas práticas ligadas a essa arte como patrimônio cultural do Brasil: o ofício de mestres e mestras e a roda que reúne todos os seus elementos. Em 2014, a roda de capoeira foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Para o mestre Curumim, que participou do Grupo de Trabalho de Salvaguarda da Capoeira, pelo Iphan/RJ, ela se manter, em si, já é um ato de resistência. Considerada crime após a abolição da escravidão, pelo Código Penal de 1890, a atividade era punida com a prisão de seus praticantes; somente na década de 1930, ela passa a ser, aos poucos, incorporada como símbolo nacional. Mas não de forma simples. “O Estado tentou colocar a capoeira numa caixinha, transformá-la em ginástica nacional”, explica.

“A capoeira é abraçada como símbolo de identidade, mas tentam tirar dela signos que têm mais a ver com a cultura africana e colocá-la somente como ginástica brasileira”, pontua o mestre. Nessa ginga, a capoeira dialoga, reinventa-se, resiste: “O que se manteve foi a capoeira como ritual, como cultura”. Os desafios para a salvaguarda e a manutenção de um saber popular que atravessa o tempo persistem ainda hoje: “Como ritual, jogo, luta, dança e cultura, quando ela é essa coletividade, ela realmente é capoeira”, ressalta Curumim.
“Quero ver dendê”
Olhos atentos de crianças e adolescentes observam os ensinamentos transmitidos durante a roda de conversa com o tema “Capoeira, saúde mental e inconsciente coletivo”, que ocorre durante o Festival Capoeira Cidadã, em novembro de 2024, o 29º evento de batizado e troca de corda promovido pelo mestre Curumim. “A capoeira é uma experiência terapêutica”, afirma contramestre Piloto.
Na capoeira, todo mundo tem um apelido pelo qual é conhecido. A garotada ali presente talvez não se dê conta de que Piloto é na verdade o neurocientista Sidarta Ribeiro, uma das figuras mais renomadas da ciência brasileira, pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, autor dos livros “O oráculo da noite” e “Sonho Manifesto”, entre outras obras — já entrevistado por Radis na edição 209 (fevereiro de 2020). Ao converter “violência em poesia, morte em vida”, ele ressalta, a capoeira é transformadora.
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“A capoeira tem um potencial, talvez maior do que qualquer outra arte, de nos curar”, declara. Ao reunir pessoas e promover acesso aos repertórios coletivos dos povos originários e diaspóricos, a roda é uma prática que promove saúde. “A capoeira é sucesso mundial, porque produz axé, produz energia”, acrescenta Sidarta. Axé é uma palavra de origem iorubá, comum nos terreiros de Candomblé e Umbanda, que designa força vital.

Para Sidarta, o potencial terapêutico da prática já é conhecido pela cultura popular, mas “a academia e a universidade não olham para os mestres da mesma forma”. “Os mestres de capoeira têm muita sabença. Uma pessoa que passou a vida inteira fazendo cultura popular é um baú cheio”, destaca. Contudo, ele se preocupa sobre como transmitir esses saberes à juventude, na “era dos smartphones”, em que crianças e adolescentes têm a atenção “disputada” pelas telas. “Será que a gente vai morrer na praia ao reavivar toda essa cultura popular e não ter para quem transmitir?”, questiona.
Segundo o neurocientista, coorientador de mestre Curumim no doutorado e hoje seu parceiro de pesquisa, a ciência e as universidades precisam dialogar com os saberes tradicionais. “Um mestre de capoeira é um PhD”, afirma. “Se tivesse um grupo de capoeira em cada escola, isso seria melhor para disciplinas como matemática e português”, completa Sidarta.
Na roda de conversa, está também o professor do Departamento de Educação Física e Desportos da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em Minas Gerais, Renato Sobral Jr., que além de pesquisador, é instrutor da atividade. “Para a saúde mental, a capoeira é uma grande ferramenta. Não só pelo que oferece em relação ao movimento, mas pelo senso coletivo, que por si só é um fator protetor contra diversas doenças mentais”, explica. Segundo ele, que possui doutorado em Neurociências pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o pertencimento coletivo trazido pela roda previne contra transtornos como ansiedade e depressão.
Ele recorda um conceito criado por mestre Decanio, médico e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), um dos discípulos de mestre Bimba (1900-1974), criador da capoeira regional: ao falar em “transe capoeirano”, ele se referia à habilidade de estar tão imerso na atividade que se adentra em uma espécie de outra dimensão, em conexão com a ancestralidade. “Quando estamos no ritmo, na energia, na roda, batendo palmas, prestando atenção no jogo, será que pensamos no boleto para pagar?”, indaga, com bom humor.

No jogo aberto entre capoeira e ciência, já se sabe que a prática estimula áreas do cérebro responsáveis por tomar decisões. “A capoeira é muito imprevisível, ela exige planejamento e controle inibitório. É um estímulo para o cérebro e nos deixa mais aptos a melhorar o nosso raciocínio”. Na roda, o jogo é feito por duas pessoas, e uma nunca sabe o movimento que a outra vai fazer: por isso a prática é chamada de “jogo de atenção”.
“Quando estamos jogando capoeira, nosso cérebro precisa tomar uma decisão rápida, fazer uma esquiva para escapar de um golpe. Isso ajuda a proteger áreas do cérebro responsáveis pela memória e pela razão”, constata Renato, acrescentando que a atividade pode auxiliar na prevenção, por exemplo, da doença de Alzheimer. Contudo, apesar dessas evidências, não se pode esquecer que ainda hoje ela sofre com discriminação. “A gente tem muitas barreiras para a inserção da capoeira como instrumento educacional formal, pelo preconceito por conta das raízes colonialistas em nosso país”, declara.

A pesquisa desenvolvida pelo Mestre Curumim, no Laboratório de Neurociência do Exercício (da UFRJ), comprova que a capoeira ajuda no desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes.— Foto: Renata Spinelli.
“Capoeira é antiga arte”
A capoeira tem um quê de “pedagogia das encruzilhadas”, como descreve o pedagogo Luiz Rufino, em seu livro de mesmo título (Editora Mórula). Segundo mestre Curumim, a prática pode ajudar o Brasil a se entender como país e as crianças a experimentarem um aprendizado que valorize saberes tradicionais. “A pedagogia afro-centrada, que é a roda de capoeira — onde há uma horizontalidade, pois dentro da roda todo mundo está olhando todo mundo, todo mundo está aprendendo com todo mundo —, precisa ser trazida para a educação brasileira”, destaca.
Levar a capoeira para as escolas não significa apenas abrir “novas portas” para a prática: como em um jogo de mão dupla, a educação e a ciência também têm muito a ganhar com os saberes da roda de capoeira, ressalta Curumim. “A gente tem uma educação hoje que carece de respostas sobre como diminuir as diferenças de desempenho acadêmico e de desenvolvimento, as chamadas iniquidades, que costumo dizer que são iniquidades de oportunidades para o desenvolvimento”, avalia.

“Finge que vai, mas não vai / Bicho vem, eu me faço de morto”. A malandragem cantada nos versos e praticada na roda, com a finta e a ginga, estimulam crianças e adolescentes a buscarem soluções inteligentes para problemas. Uma das conclusões da pesquisa de Curumim indica que a capoeira melhora a chamada coordenação motora óculo-manual, que envolve a relação olho e mão, como fazer uma esquiva e se proteger de um golpe — e essas habilidades acabam tendo reflexos positivos no aprendizado dos alunos.
Outro benefício é aperfeiçoar as funções executivas: “Elas têm a ver com nossa habilidade de inibir impulsos e focar a nossa atenção num conteúdo específico e com a nossa capacidade de pensar fora da caixa e de repensar decisões, de acordo com as demandas ambientais”. Segundo o mestre e pesquisador, houve melhora nessas habilidades em crianças que mantiveram ao menos 70% de frequência nos treinos. O projeto social da ECC também recebe crianças e jovens com deficiência e transtornos como autismo e TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade).

Curumim começou a capoeira aos 13 anos e conta que a primeira pessoa com quem teve contato disse que ele não levava nenhum jeito. Ele diz que abandonou a aula e só voltou a treinar quando conheceu o mestre Boneco [Beto Simas], que lhe ensinou que era preciso persistir. “A capoeira me permitiu o convívio com pessoas diferentes, de culturas e até países diferentes, pois ela hoje está no mundo todo”, ressalta. Segundo ele, essa competência socioemocional que a atividade traz auxilia nos relacionamentos humanos.
Quem entra na roda sabe que há um risco constante de levar uma cabeçada ou uma rasteira — por isso, costuma-se dizer que “a capoeira ensina a cair e a levantar”. “É um autocontrole constante. É algo que poderia machucar, mas está todo mundo brincando”, explica o mestre, ressaltando que o respeito pela integridade física do camarada de jogo também ensina para “a grande roda da vida”. “O jogo da capoeira mimetiza os relacionamentos humanos. Existe um diálogo, é como se fosse uma conversa”, ensina.
O aprendizado acontece em movimento, lembra Curumim, e essa é outra contribuição da arte para a educação. “Aprende-se em canto, em palmas, em ginga: estudar história, por exemplo, em uma música, contextualizando temas a partir do movimento”, pontua. Nomes da cultura negra e brasileira, muitos esquecidos pelos livros, como Zumbi dos Palmares, Dandara, Rainha Nzinga, Maria Felipa, Besouro de Mangangá, mestre Bimba e mestre Pastinha, são revividos nas canções.
O passado é lembrado, a ancestralidade exaltada e os erros servem de reflexão. “Os traumas da escravidão estão no inconsciente coletivo da capoeira. São cantados nas ladainhas [tipo de canção geralmente lenta e longa, que conta uma história], nas músicas, e de alguma forma a gente revive isso”, afirma o mestre. Como uma tradição que se baseia em um saber circular, esse aprendizado não fica apenas com o aluno. “Isso afeta positivamente não somente as crianças, mas a sua comunidade, as suas famílias, que também participam e estão envolvidas”.

A roda de capoeira é espaço de preservação cultural e promoção de saúde. — Foto: Renata Spinelli.
“Acende o candeeiro, iaiá”
Na roda, há espaço para todas as pessoas: gente de todas as idades, classes sociais, etnias, orientações sexuais, de todos os cantos do mundo. Nas palavras de mestra Morena, nascida Maria Cristina Bahia de Almeida, coordenadora do Grupo Biriba Berimbau, em Guaratinguetá, no estado de São Paulo, a capoeira coloca as pessoas “ombro a ombro”, em pé de igualdade — por isso a roda desperta fascínio em outros povos fora do Brasil. “A visão circular nos remete à ancestralidade, a uma forma diferente de ver o mundo e de praticar a vida comunitária, com os elementos muito presentes nas culturas africanas e indígenas”, ressalta.
Ao longo de uma vida dedicada à capoeira, ela aprendeu a colocar em prática os saberes da roda e transformá-la em espaço de inclusão e diversidade. Desde 1996, quando se mudou para o interior de São Paulo, a carioca formada em jornalismo passou a atuar em um projeto que busca estimular a prática da capoeira por pessoas com deficiência, iniciativa pioneira de seu mestre e companheiro de vida, Ponciano Carlos Santos de Almeida, falecido há quase três anos.
Assim nasceu a capoeira inclusiva e adaptada, em um tempo em que ver uma pessoa com deficiência praticando a atividade era algo raro ou até impensável. “As pessoas com deficiência ficavam em suas casas, guardadas por suas famílias, algumas escondidas”, relembra. O projeto começou nos anos 1980, na APAE [Associação de Pais e Amigos], até que ela e Mestre Ponciano perceberam que os alunos com deficiência que treinavam junto com os demais, ditos “normais”, desenvolviam-se melhor. “Isso abriu um mundo novo para essas pessoas que viviam isoladas dentro de uma instituição, com objetivos educacionais e terapêuticos”, conta.

A experiência, para ela, revela o potencial dessa arte em transformar mentalidades. “Quando se começa a praticar capoeira, ela permite que você inicie uma reflexão: primeiro, sobre você mesmo e suas práticas, o seu dia a dia, o seu entendimento sobre a vida, mas também nos faz refletir sobre as necessidades da liberdade, e isso vai nos remeter à nossa história no Brasil”, pontua.
O aprendizado da roda permite que as pessoas tanto possam se conhecer quanto entenderem melhor o seu entorno, reflete mestra Morena. “Percebemos a valorização do movimento circular, que faz as pessoas se verem, em que ninguém está atrás de ninguém, e que faz com que você sinta que aquilo que faz está dentro de um ritmo”, explica. Afinal, capoeira não é só a luta. “A luta está envolta num ambiente musical, com cantos e outras expressões, que o tempo inteiro estão trabalhando os nossos pensamentos, tanto que as pessoas chegam com muitos problemas e terminam a aula mais leves, despreocupadas”, comenta.

Em suas palavras, a capoeira trabalha com a saúde mental, “por nos colocar com o pé no chão ao mesmo tempo em que nos possibilita trabalhar a nossa mente”. “Fazemos um trabalho que nos liga à Terra e ao mesmo tempo nos equilibra com a extensão que cada ser humano pode alcançar através da sua mentalidade”, diz. Atualmente, ela iniciou um projeto para levar a prática da capoeira para uma Unidade Básica de Saúde (UBS).
Mestra Morena é gestora de projetos, produtora cultural e presidente do Instituto que leva o nome de Mestre Ponciano, seu companheiro de vida, além de cofundadora e vice-presidente do Instituto Baobá, formado por lideranças negras femininas, voltado para a valorização da cultura afro-brasileira na região de Guaratinguetá. Ela conta que, no passado, precisou enfrentar as resistências de uma prática que era predominantemente masculina. “Tive que insistir muito para que as pessoas aceitassem que aquela mulher iria entrar na roda mais vezes do que eles estavam acostumados”, recorda [Leia a entrevista completa com mestra Morena em nosso site].
Para ela, a capoeira é um caminho de promoção da educação antirracista, não só para o povo brasileiro, mas no mundo todo. “A educação antirracista vem para contribuir com a paz mundial”, aponta, ao ressaltar o seu potencial de conscientização e principalmente de mudança de hábitos.

Morena diz que, hoje, no lugar de inclusão, ela passou a falar em diversidade. “Como uma mulher preta, que tem uma formação universitária no campo do jornalismo, como comunicadora, eu vejo que para a gente alcançar a paz, a proteção do nosso globo terrestre, a diversidade se faz necessária”, pontua. Segundo ela, o resgate que as mulheres vêm fazendo de sua liberdade pode contribuir para pensar estratégias sobre o futuro do planeta. “A inclusão também é ambiental. É de novas práticas para que a gente possa manter a nossa floresta de pé e permitir às novas gerações terem ar para respirar no futuro”, defende.
Enraizada nos saberes dos povos indígenas e africanos, a capoeira pode contribuir com a busca de práticas que promovam o respeito à Mãe Terra, acredita a mestra. “Essa luta não é só minha, é da humanidade — e passa por se reconhecer e achar a sua liberdade. Quem é livre realmente? O que é liberdade para você? Você se conhece? Sabe quem você é?”, questiona ela. “É um processo do ser humano que está sendo prensado pelo tempo para que possa reagir”, afirma.
Por isso, segundo ela, tal como na roda de capoeira, é preciso que todos participem. “Nós precisamos acordar todos os segmentos, com esse trabalho circular, deixando os nossos preconceitos, buscando estratégias para sermos rápidos e podermos salvar o nosso planeta”, conclui.
No jogo da capoeira, “dar volta ao mundo” é como se chama um movimento utilizado para pedir uma pausa, tomar um fôlego, enquanto se recalcula a estratégia. Os dois camaradas caminham em círculo, em volta da roda, atentos para não caírem na emboscada de um golpe ou queda surpresa. “Aê, volta do mundo”, diz o cantador. O coro responde: “Ê ê, volta do mundo, camará”. Ao som do berimbau, na malícia da ginga, na vibração das palmas, a roda representa o mundo — e o que vamos fazer com ele? Talvez a resposta esteja na vadiação, nos saberes circulares, no jogo que rememora o passado, vive o presente e sonha com o futuro. “Aruandê, camará!”

Para conhecer e ajudar os projetos:
- Escola Capoeira Cidadã:
https://capoeiracidada.org.br/
- Instituto Mestre Ponciano (capoeira inclusiva e adaptada):
https://www.capoeirainclusivaeadaptada-institutomestreponciano.com/
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