A maior favela do Brasil. Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, a Rocinha é a comunidade mais populosa do país, com mais de 72 mil moradores. O bairro se encontra nas encostas dos morros Dois Irmãos e Laboriaux na Zona Sul do Rio de Janeiro e tem a maior densidade demográfica do país, com mais de 48 mil habitantes por km², de acordo com o Projeto Unir do Centro de Pesquisas e Articulação de Conhecimentos Rocinha da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
O cenário de aglomeração de habitações com pouca ventilação, falta de luz solar, a maioria bem pequenas e sem saneamento básico adequado é extremamente propício para a proliferação da tuberculose (TB). A incidência na Rocinha é significativamente mais alta do que a média nacional. Em 2023, foram registrados 358 casos na comunidade, segundo o Observatório Epidemiológico da cidade do Rio de Janeiro (EpiRio), chegando a ser dez vezes superior à média nacional, que é de 3,7 casos por 10 mil habitantes.
A pneumologista, professora, escritora e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Margareth Dalcolmo, explica que a situação da transmissão da doença no Rio de Janeiro é grave, em especial nas comunidades como a Rocinha. “A Rocinha é muito paradigmática, por ser uma comunidade que está dentro da Zona Sul do Rio de Janeiro, ao lado dos metros quadrados mais caros e, no entanto, tem uma situação igual à de Bangladesh, 300 casos por 100 mil habitantes”, relata.

Cria da Rocinha
Ruan Juliet ainda era uma criança quando ficou sabendo que o lugar onde morava era um dos que mais tinha casos de tuberculose no Brasil ao assistir a uma reportagem na TV. Hoje, o jovem se tornou um influenciador digital que mostra como é o dia a dia na Rocinha. Em um de seus vídeos recentes, ele decidiu alertar a população sobre a TB.
Com imagens dos becos, casas apertadas e esgoto a céu aberto, ele declara: “Não é porque as pessoas não se cuidam, não. É porque o ambiente faz a doença circular”, mostrando como é a realidade de moradias que são construídas em cima de outras casas. Quando questionado sobre a motivação do vídeo, explica: “Às vezes os moradores têm tuberculose e não sabem nem os sintomas”.
Ruan conta que é comum para quem mora na Rocinha ficar meses com sintomas antes do diagnóstico e início do tratamento, porque as próprias pessoas não têm conhecimento de que podem estar com a doença. Ele acredita que o assunto deveria ser mais divulgado.
“A minha tia teve tuberculose, ela morava numa casa que não tinha ventilação. Era uma casa abafada, pequena, tinha muita infiltração e era muito úmida”, conta. A tia do hoje influencer estava com tosse há três semanas e a família achou estranho. Ela foi acompanhada na Clínica da Família Rinaldo de Lamare e precisou fazer tratamento durante um ano, em que o agente comunitário de saúde (ACS) passava sempre para levar medicação e ver como ela estava.
“A galera que trabalha aqui, os agentes de saúde da Rocinha, temos que tirar o chapéu pra eles, de verdade, tem que bater palma”, declara Ruan. Segundo ele, a situação é desafiadora, uma vez que não é possível mudar as condições em que a pessoa vive. “Não tinha o que fazer. Não tinha condição de sair dali pra ir pra outro local”. Ele ressalta como a atenção básica do SUS ajudou para que as outras três pessoas que moravam com ela não fossem infectadas.
“Existem casas em que moram cinco, seis pessoas, às vezes até nove. Eu cresci num ambiente com meu pai, minha mãe, meu irmão e minha irmã. Cinco pessoas. E aí você vai ver o tamanho da casa: uma sala, uma cozinha, um banheiro e um quarto”, conta. Ele relata que se uma pessoa da família pega tuberculose, o risco de outra ser infectada é muito grande — por isso a doença se espalha tanto.

Papel da atenção primária
Durante a entrevista à Radis, Ruan mostra uma pequena casa na comunidade em que moram cinco pessoas. O domicílio até tem uma janela, mas ela não pode ficar aberta porque está de frente para uma vala na qual corre esgoto a céu aberto. “Se tiver alguém com tuberculose ali, como que vai cumprir as recomendações de deixar a janela aberta?”, comenta.
Isso também foi o que Renato Cony Seródio observou quando começou a trabalhar como médico residente na Clínica da Família Maria do Socorro, unidade básica que atende a Rocinha. O médico de família e comunidade, hoje também subsecretário de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde do Rio de Janeiro, assustou-se com a quantidade de casos de tuberculose, uma vez que na graduação a TB era considerada uma doença de exceção. Ele comenta que as equipes precisam adaptar o raciocínio clínico-diagnóstico para considerar a TB como primeira opção em caso de tosse crônica. “Ainda que a taxa de incidência no Rio de Janeiro seja muito alta, na Rocinha ela se aproxima dos países do Sudeste Asiático”, aponta.
Renato relata alguns desafios, como a determinação social da doença. “As condições de vida, falta de circulação de ar e de incidência de luz solar, aglomeração, tudo isso ajuda que o agente causador da doença esteja ali de forma endêmica”, declara.
O médico de família explica que não há como combater a doença sem enfrentar a desigualdade. “Entre os anos de 2002 e 2014, teve uma obra do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] que abriu uma rua, antes conhecida como Beco da Tuberculose. Todo mundo que morava na região já tinha tido a doença pelo menos uma vez na vida”, conta.
O beco era estreito, escuro e o ar não circulava, fazendo com que a bactéria estivesse ali endemicamente. “Fica muito claro para a gente que não são só as políticas de saúde que vão permitir que o Rio de Janeiro enfrente a tuberculose. A gente precisa de políticas de habitação, de reforma urbana, que aumentem a nossa capacidade de enfrentar a micobactéria”, comenta.
Ele também reafirma a importância da atenção primária que visita as pessoas com TB durante todos os dias do tratamento, para levar a medicação e garantir que a pessoa tome, além de verificar como o paciente está. Renato relembra o caso de uma jovem que começou o tratamento contra a TB e a equipe da Saúde da Família observou que ela nunca tinha sido orientada sobre planejamento reprodutivo. Decidiu, então, colocar o DIU — tudo pelo SUS. “Isso mostra a potência da atenção primária”, afirma.
Outro caso foi o de uma paciente que chegou com suspeita de tuberculose e foi identificada a coinfecção com o HIV. Era uma senhora idosa que tinha redescoberto a sua sexualidade após se tornar viúva e estava em um novo relacionamento em que ela não era acostumada a usar camisinha. Com a coinfecção, o caso de TB se tornou mais grave e ela teve o acompanhamento de todo o manejo, além de iniciar o tratamento também para o HIV.

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